"A ópera depende do apoio do poder público"
Maestro e idealizador do Festival de Ópera de Pernambuco, que chega à quinta edição, Wendell Kettle fala sobre os desafios de produzir espetáculos no Nordeste e as políticas públicas
29 de Agosto de 2024
Foto Divulgação
Wendell Kettle é um maestro dedicado, cuja paixão pela música começou cedo, ainda aos 5 anos. Desde então, a música tem sido uma constante em sua vida. Inicialmente, ingressou no curso de Engenharia Civil na Unicamp, onde cursou dois anos antes de decidir seguir sua verdadeira paixão pela música. Em seguida, transferiu-se para a Universidade Estadual Paulista (Unesp), em São Paulo, onde concluiu o bacharelado em Música com habilitação em composição e regência. Durante sua graduação, teve a oportunidade de aprender com renomados professores e maestros, como Samuel Kerr, Marisa Fonterrada, Villani Cortes, Eduardo Escalante, Sérgio Vasconcelos Correia e Yara Caznok.
Após o término da graduação, Wendell continuou seus estudos na Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde concluiu o mestrado em Música com ênfase em regência, sob a orientação do maestro Henrique Morelenbaum. Posteriormente, obteve uma bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) para um doutorado no exterior, que o levou ao Conservatório Rimsky-Korsakov de São Petersburgo, na Rússia. Durante cinco anos, especializou-se em regência, participando de várias produções em teatros como o Zazerkale e o Hermitage.
De volta ao Brasil, Wendell foi aprovado em concurso para professor de Regência no Departamento de Música do Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Além de suas atividades acadêmicas, ele realizou um sonho: fundar o Festival de Ópera de Pernambuco (FOPE), em 2019.
Wendell Kettle continua a promover a música clássica e o repertório operístico, mesclando obras consagradas internacionalmente com composições novas e que também refletem a cultura nordestina e valorizam figuras históricas locais.
O que o inspirou a se tornar um regente de ópera?
WENDELL KETTLE Eu sempre gostei muito de cantar, de lidar com vozes, de ensaiar grupos vocais, conjuntos. Desde a época da minha adolescência, quando eu fiz o curso técnico de piano, sempre gostei muito de trabalhar com vozes. Quando eu entrei na graduação, foi quando eu descobri mais propriamente o canto lírico, e comecei a acompanhar o trabalho de alguns professores no Teatro Municipal de São Paulo, especialmente o maestro Samuel Kerr, que era o maestro do Coral Paulistano.
Lá também, conheci também o maestro Mário Zaccaro, que foi durante muitos anos o maestro do Coral Lírico do Teatro Municipal de São Paulo. E aí vendo aquela conjectura nova para mim, vocal somada à atuação cênica e ao acoplamento das artes visuais, eu me apaixonei completamente e desejei não ser um regente de ópera só, mas um diretor de ópera, que é quando nós concebemos a ligação, a combinação de todas as artes que compõem o espetáculo operístico ao longo do espetáculo, como você vai ligar a música, a atuação cênica, a questão da iluminação, a movimentação.
Como a cultura pernambucana e nordestina influencia seu trabalho como regente?
WENDELL KETTLE A cultura pernambucana e nordestina têm influenciado a minha atuação, primeiramente como compositor. Eu procuro colocar os elementos da nossa cultura nas composições que tenho feito. No caso da ópera, esse é um gênero universal que carrega as manifestações populares estilizadas na linguagem operística. Então, com certeza, eu procuro colocar os elementos da nossa cultura nas composições, porque isso é um legado que fica, como testemunha da nossa cultura para outras civilizações, para outros países, para outras culturas.
Quais compositores e obras você considera fundamentais para a ópera no Nordeste?
WENDELL KETTLE No Nordeste, nós não temos muitos compositores de ópera nacionalmente conhecidos. Depois que eu me estabeleci aqui no Recife, como professor da Universidade Federal de Pernambuco, conheci, então, a obra de Euclides Fonseca. E não há como negar que ele é um compositor referencial de óperas, inclusive tem aí todo um pioneirismo por parte dele na composição de óperas aqui em Pernambuco. Ele é um pilar da composição operística nordestina. E, logicamente, a primeira composição dele, a obra Leonor, que é baseada numa história que se passa na Ilha de Itamaracá, é, sem dúvida, uma obra referencial para entender como nasceu a ópera no nosso estado e na região Nordeste.
Nessa época, 1883, final do século XIX, havia um movimento operístico mais centrado na capital, na época a cidade do Rio de Janeiro. Então, é possível que compositores de todas as regiões do Brasil, na época, tenham ido para lá para poder fazer valer as suas obras. Acredito que ele ficou aqui em Pernambuco. Talvez por isso, ele não seja tão conhecido e as obras dele também. Então o consideramos um pilar do nosso repertório operístico nordestino e trabalhamos com afinco para divulgar essa obra maravilhosa dele, como já fizemos com a obra Leonor, com Il Maledetto e, agora, com A Princesa do Catete, que é uma parceria de grande valor cultural, que ele fez com o Carneiro Vilella, que escreveu o libreto da ópera.
Quais são os principais desafios de se produzir ópera no nordeste do Brasil?
WENDELL KETTLE É um grande desafio realmente atuar na produção operística aqui no Nordeste. Nós ainda não temos, em alguns estados, os corpos artísticos estáveis para essa produção. Seria ótimo que aqui em Pernambuco tivéssemos esses corpos artísticos, um coral lírico, um balé do estado, por exemplo, para manter uma produção profícua, anual e periódica, como acontece no Teatro Municipal de São Paulo, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, no Palácio das Artes em Belo Horizonte, no Teatro Amazonas em Manaus, no Teatro da Paz em Belém. Aqui no Nordeste, não tenho conhecimento de nenhum estado que ofereça essa estrutura para a ópera.
Aqui em Pernambuco, nós temos a sorte de ter um fomento por parte do estado através do Funcultura. Então isso nos ajudou a iniciar e a manter, de alguma forma, mesmo que com muito sacrifício, uma produção operística regular através do Festival de Ópera de Pernambuco, que segue para a quinta edição.
Nós esperamos que o festival possa despertar o interesse dos nossos gestores, dos nossos governantes, para que eles possam viabilizar uma estabilidade profissional, um mercado profissional da ópera em Pernambuco.
Como você enxerga o futuro da ópera na região? Há interesse e apoio suficientes para o desenvolvimento desse gênero?
WENDELL KETTLE O futuro da ópera no Nordeste, para mim, é uma incógnita, porque a ópera depende do apoio do poder público. Não há como realizar uma ópera sem o apoio do poder público, e isso passa por projetos, atividades, fomento, pela formação dos cantores líricos, dos instrumentistas, dos técnicos, de cenógrafos, figurinistas, visagistas. A ópera requer uma infraestrutura complexa, tanto de estrutura em si, quanto de pessoal, de pessoas habilitadas, capacitadas, formadas para a realização operística.
Nós precisamos que haja uma sensibilidade dos gestores de cultura e dos governantes para a ópera, não sei se no momento atual há esse quadro favorável. Independentemente disso, nós estamos realizando de alguma forma, com muito esforço, para poder tornar a ópera aqui na região mais conhecida, para desmistificar muitas ideias equivocadas, que se tem sobre a ópera. A ópera é uma linguagem artística eminentemente popular, é a estilização de uma cultura, onde nós demonstramos temas, motivos, histórias eminentemente da nossa cultura, mas tratadas na linguagem operística.
Por outro lado, nós vemos um futuro promissor, porque as apresentações que temos feito ao longo desses anos têm atraído um público considerável, um público muito significativo em termos de quantidade, o que denota um interesse grande pelo gênero.
Qual a importância do Fope dentro deste contexto? E como o festival busca valorizar artistas locais?
WENDELL KETTLE O Fope tem sido fundamental para o desenvolvimento do setor operístico aqui em Pernambuco, mas também na região Nordeste. Temos atraído estudantes de canto lírico, cantores recém-formados, cantores já formados há algum tempo, professores de canto lírico e outros profissionais de outras áreas, instrumentistas de orquestra, técnicos, artistas das áreas das artes visuais. Pernambuco, com esse festival, tem se tornado um núcleo de fomento da ópera na região, com a valorização da ópera e dos nossos artistas.
Quais são os seus próximos projetos ou produções? Há algo especial que o público possa esperar?
WENDELL KETTLE Teremos pela frente a montagem da ópera Gianni Schicchi, de Giacomo Puccini, que é uma obra muito interessante, uma escrita musical muito elaborada, é uma obra para solistas, não tem a participação de coro. É uma obra muito pitoresca para ser apreciada, digamos, por um público que ainda não está muito afeito à ópera. Pode parecer um pouco estranho no começo, mas sem dúvida vai ser uma experiência artística muito interessante, até de desmistificação do gênero operístico, como se fosse um gênero complexo. Na verdade, o gênero pode ter uma complexidade, mas ele se mostra muito comunicativo, muito acessível, à fruição artística por parte do público.
Como é a formação de músicos e cantores de ópera na região? Existe uma rede de ensino e formação adequada?
WENDELL KETTLE Nós temos escolas e universidades aqui na região Nordeste que se prestam à formação do canto lírico, que é um elemento chave na composição do espetáculo de ópera. Temos, por exemplo, aqui na Região Metropolitana do Recife, instituições públicas como o Centro de Educação Musical de Olinda, o Conservatório Pernambucano de Música, o Centro de Criatividade Musical, e temos também o bacharelado na Universidade Federal de Pernambuco. E temos também outras instituições de ensino na região como, por exemplo, a Universidade Federal da Paraíba, a Universidade Federal de Campina Grande e a Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Como você percebe o interesse do público local pela ópera? Quais estratégias têm sido usadas para atrair novos públicos?
WENDELL KETTLE Eu vejo um interesse muito bom do público local pela ópera. Os teatros estão sempre cheios nos espetáculos que temos apresentado nos festivais de ópera. No ano passado, por exemplo, na 4ª edição do Fope, tivemos casa cheia nos espetáculos e eu acho isso um sinal muito interessante, porque não é um gênero que tem uma oferta muito abundante, com muita frequência. Então, quando tem ópera, temos público, de modo que precisamos ter mais óperas ao longo do ano, talvez estruturar uma temporada. E o interesse não é só do pernambucano. No ano passado, recebemos um público de outros estados, o que denota um interesse muito significativo do público pela ópera.
Há colaborações entre artistas do Nordeste e de outras regiões do Brasil ou do exterior? Como essas parcerias podem fortalecer a cena operística local?
WENDELL KETTLE Nós iniciamos algumas parcerias com outros artistas do Brasil, com outros núcleos de ópera em outras universidades, e isso tem enriquecido o nosso evento aqui, tem dado visibilidade nacional da realização operística aqui em Pernambuco. E nós tentaremos, nas próximas edições, ampliar essas parcerias, com a participação de estudantes de outras instituições de ensino do exterior. Esse intercâmbio é muito importante para o desenvolvimento do setor, porque há trocas de informações muito grandes.
Isso é muito legal, porque os cantores, os nossos alunos, os extensionistas locais, ficam muito incentivados em seguir nos estudos, em se desenvolver cada vez mais, então é muito importante esse intercâmbio, tanto com cantores e estudantes de outros lugares, de outras regiões do Brasil, como do exterior também. Agora, por exemplo, para o V Fope, nós vamos receber cantores da Universidade Federal do Rio de Janeiro, da Universidade Federal de Goiás, de Minas Gerais. E esse congraçamento vai ser de grande valor para o desenvolvimento das nossas atividades operísticas.
Como as políticas culturais podem apoiar e fomentar o crescimento da ópera no Nordeste?
WENDELL KETTLE Nós temos o Funcultura, que tem um apoio específico para a ópera, temos também o edital do Sistema de Incentivo à Cultura da Prefeitura do Recife. Precisamos que os gestores tenham um olhar mais específico sobre a dimensão desse tipo de espetáculo, para que possamos fazer sempre da forma mais digna, honrando todos os artistas que participam, até a melhor forma possível. E eu digo isso em termos financeiros, porque os valores estão muito defasados, fazemos os eventos por teimosia para poder manter viva a chama do setor, mas precisamos realmente que o investimento seja adequado às necessidades da linguagem que estamos realizando. Existem óperas de várias dimensões, óperas de quatro atos, de um ato, ópera de 40 minutos de duração, ópera de câmara, ópera com quatro horas. Então sempre procuramos adequar as montagens da melhor forma possível, mas precisamos que o poder público possa apoiar, atualizar, quem sabe, os valores para o fomento da ópera aqui na nossa cidade, no nosso estado.