Junto com A vida invisível, de Karim Aïnouz, Greta é também uma reinvenção do melodrama. Não por acaso, estão na Continente de outubro esses dois filmes, dirigidos por cineastas cearenses que se permitem ativar e ser ativados pelos afetos. Na edição deste mês, publicamos uma reportagem sobre a obra de Karim, escolhida para representar o Brasil na disputa por uma indicação ao Oscar de melhor filme internacional (e com estreia nacional confirmada para o próximo dia 31), e trouxemos o depoimento de Marco Nanini sobre a feitura deste que é o primeiro longa-metragem de Armando Praça.
Conversei tanto com Nanini e Démick como com o próprio Armando em Berlim, numa tarde fria de uma quarta-feira, logo depois da primeira exibição de Greta na mostra Panorama, a segunda mais relevante da Berlinale. Armando não demorou a me contextualizar sobre o tempo que levou para adaptar a peça: “Participei do laboratório Sesc de Roteiros de 2012, entrei em dois editais de baixo orçamento do Ministério da Cultura, quando o MinC ainda existia, e fiquei dois anos consecutivos como primeiro suplente, acredita? Foram dez anos”. Leia mais sobre suas escolhas estéticas, o arrojo em retratar a sexualidade LGBT no outono da vida e o vínculo de respeito e admiração com os seus personagens.
CONTINENTE Como foi o processo de transposição da peça para o filme?
ARMANDO PRAÇA Eu conhecia o texto, porque estudei dramaturgia antes de estudar cinema, mas só vi uma montagem em 2007. É uma comédia, mas, como todas as comédias boas, tem um drama ali atrás. O ser humano ri da tragédia do outro, não é mesmo? Eu achava esse texto muito bem escrito por isso, mas a montagem que vi ainda seguia a proposta original, de tratamento caricatural, debochado, cômico, e de um jeito ruim. Eu estou falando mal da comédia, que é perfeita para tocar em temas difíceis, e esse tema ainda é difícil, mas é que já não pode ser olhado dessa maneira, como algo risível. Então vi a peça montada, pensei que o texto era incrível, mas que havia um jeito ruim de olhar para esses personagens e essas histórias. São três personagens marginalizados... Como poderia ficar rindo deles? Até pela perspectiva de que um dia eu, como homem gay, venha a me tornar uma bicha velha como Pedro. Meus desejos e anseios não podem ser algo de riso, deboche e chacota. Então me propus um desafio: será que consigo pegar essa peça e adaptar, virá-la do avesso, mudar o código e o registro de gênero dela e ir, de fato, para um drama? Esse desafio teve um tempo de maturação: foram dez anos até conseguir filmar.
CONTINENTE Algo mudou ao longo do processo?
ARMANDO PRAÇA O que nunca mudou, o que sempre tive muito caro, era a vontade de falar de um drama existencial humano. Na perspectiva do homem LGBT, sim, mas um drama humano, que tivesse à frente das questões de uma causa. Queria que o filme pudesse se comunicar com qualquer pessoa. O que cai mais forte para mim, da peça e do filme, é a questão da solidão, que atravessa todo mundo: eu, você, quem é jovem, velho, gay ou não. Faz parte da condição humana, ainda mais nas grandes cidades e ainda mais para quem é mais velho.
CONTINENTE A solidão foi a condutora, então?
ARMANDO PRAÇA Sim, pois aquelas pessoas certamente sofrem uma solidão maior. São pessoas postas à margem o tempo inteiro e em todos os sentidos. Uma pessoa travesti e um gay são marginalizados o tempo inteiro. Queria pegar alguém que estava lá na base da pirâmide social e dizer “deixa eu olhar para isso aqui”. Pedro é enfermeiro, de classe baixa, gay, pobre e velho e a única amiga dele é uma travesti. Queria olhar para isso, mas, espera aí, chega: não dá mais para rir dessas pessoas. Queria olhar e entender como uma pessoa é cheia de desejos, sentimentos, com vontade de realizar, viver experiências amorosas.Marco Nanini em ação como Pedro. FOTO: Aline Belfort/Divulgação
CONTINENTE Como trabalhou com o diretor de fotografia Ivo Lopes Araújo para criar aquela imagem? O que há por trás daquela composição pictórica?
ARMANDO PRAÇA Para mim e para Ivo, Pedro é um personagem muito desesperado de solidão. Uma das coisas é ele ter idealizado as possibilidades de relacionamento, a ideia de felicidade... Tudo dele é muito idealizado: beleza, felicidade, relação e romance, como nos filmes de Greta Garbo nos anos 1930. Mas a vida é muito diferente do cinema, sobretudo do cinema daquela época. A gente queria imaginar Pedro tentando se encaixar nessa norma, nessas idealizações, por isso os enquadramentos muito fechados, claustrofóbicos e muito escuros. Só no final, depois que ele atravessa a relação com Jean e se dá conta de que precisa se abrir para a vida, e viver a vida como ela é, encontrando a Greta dentro dele, a gente veria esse personagem em enquadramentos mais amplos, iluminados, com a casa menos abarrotada.
CONTINENTE A imagem parece até granulada.
ARMANDO PRAÇA Com relação à granulação e à imagem em si, tinha um desejo nosso de tentar trazer pra hoje uma imagem que talvez passasse pela cabeça de Pedro quando ele próprio idealiza as suas relações e sua vida. A imagem que ele provavelmente pensa, a memória dele, é de um tempo em que a imagem era mais granulada, mais escura... Se filmássemos em 16mm ou 35mm, a imagem seria menos nítida e menos translúcida do que é hoje, então nossa ideia era tentar aproximar o espectador da forma de ver e realizar de Pedro. Com essa tecnologia digital, a imagem é muito cristalina, e eu achava que isso de alguma forma contradizia o discurso do próprio filme.
CONTINENTE Na tela, é como se a imagem em si já contivesse as nuances, as contradições e as imperfeições daqueles personagens.
ARMANDO PRAÇA Sim, pois uma imagem nítida demais tornaria difícil para o espectador se aproximar do filme, daqueles personagens. A imagem conduz a gente a uma viagem para o mundo de Pedro, ao mesmo tempo respeitando a condição daquele homem, um viado velho, que frequenta um submundo.
CONTINENTE Falando em respeito, as cenas de sexo são mostradas com muita naturalidade e delicadeza, mas também sem pudor algum de mostrar o amor entre iguais.
ARMANDO PRAÇA Pra mim a questão era essa: se vou mostrar esse personagem, tenho que primeiro respeitá-lo. Imagina o pavor que sentiria ao ter que filmar algo sem ter o maior respeito pelo meu personagem? Além dos oito anos que passei escrevendo o roteiro, passei dois anos trabalhando com essa imagem... como é que eu entraria na armadilha de tratar de alguém que não me interessasse, que eu não respeitasse? Se eu abracei essa história, é por alguma razão, muito misteriosa, que me levou a amar esse personagem desde que o vi pela primeira vez. Talvez pela fragilidade dele, por ele ter sido muito maltratado na vida... Essa minha relação com Pedro foi mudando ao longo dos anos: passa por compaixão, respeito, por uma sensação de que eu talvez pudesse ser igual a ele. Foram muitas camadas em muitos anos de trabalho, mas o que preciso sentir, desde o primeiro momento, é um amor e um respeito incondicionais por aquela pessoa. Se não, eu não conseguiria filmar e olhar para aquilo tudo de maneira natural, respeitosa, amorosa, como algo digno de se mostrar. Não gosto de expor o personagem, mas em se tratando desse universo, do submundo, pois é possível chamá-lo assim, era impossível não ir até o limite. E assim eu quis mostrar até o limite que os atores me permitissem.
CONTINENTE Como foi a relação com eles? Aliás, você escreveu o roteiro pensando em Marco Nanini ou teria outras possibilidades para interpretar Pedro?
ARMANDO PRAÇA Cheguei a conversar com outros atores. Eu tinha plano B caso o Nanini não topasse fazer o filme, mas eu sempre pensei muito nele. Precisava ter opções para caso ele não topasse, mas sabia que era um filme que exigia uma entrega e uma coragem grandes. “Não faço cena de sexo, não faço nu.” Nanini nunca tocou nesse assunto. A gente teve uma primeira conversa, contei a história, depois mandei uma sinopse longa, depois o roteiro, e isso nunca foi uma questão. Estava tudo posto no roteiro. Eu também nunca fui dizer para ele “vamos filmar assim, vamos filmar assado”. Sempre achei que partíamos do princípio de que iríamos contar aquela história da maneira mais honesta e verdadeira possível. Na hora de filmar a cena do quarto entre Pedro e Jean, chamei Nanini e Démick no set, no quarto, pedi que o resto da equipe saísse e expliquei a cena: eu acho que tem que ser aqui, a câmera aqui, e nenhuma questão surgiu, embora eu estivesse absolutamente aberto para caso houvesse algum limite.
Démick Lopes vive Jean. FOTO: Aline Belfort/Divulgação
CONTINENTE Vocês ensaiaram antes?
ARMANDO PRAÇA Sim, teve muita leitura e muita conversa. No set, a gente ensaiava uma ou duas vezes para marcar e depois começava a rodar. Como acho que existia um entendimento anterior, de muita conversa, eles sabiam o que era necessário para aquilo. Quando terminamos de filmar a cena de sexo deles no quarto, perguntei a Démick e a Nanini se queriam ver, e eles disseram que não. A confiança que depositaram em mim foi reforçada.
CONTINENTE Tanto Pedro como Jean são personagens complexos, que têm suas contradições, que fazem algo por motivos nobres e também torpes, que são capazes de amor e manipulação. Isso é algo que os aproxima e também aproxima os dois de nós, que os vemos na tela. É muito forte e bonita a construção dramática de Greta.
ARMANDO PRAÇA Eu amo meus personagens, mas não preciso que eles sejam honestos e carinhosos o tempo todo. Tenho amigos que são como irmãos para mim e, quando eles fazem uma merda, digo “puta que pariu, que diabo foi que tu fez?”, mas não vou deixar de amá-los. Para mim, o exercício é esse. Nos filmes que gosto, os personagens que mais me encantam são os absolutamente contraditórios. No processo de adaptação para Greta, de sair da peça e vir para um drama, estudei muito melodrama, vi muitos filmes de Rainer Werner Fassbinder, Douglas Sirk, Pedro Almodóvar nos anos 1980 e 1990, Todd Haynes nos Estados Unidos. São cineastas que adoro e que estudei muito, na tentativa de aproximar essa história do gênero cinematográfico do melodrama.
CONTINENTE Como foi para você, então, se relacionar com esses cineastas e essas obras melodramáticas quando preparava Greta?
ARMANDO PRAÇA Acho Todd Haynes e seu cinema quase uma literalidade de Douglas Sirk. Já Almodóvar pende muito para uma coisa cômica, que era de onde eu queria fugir no roteiro. Para mim, o mais vibrante era Fassbinder, principalmente em O medo devora a alma, que é uma refilmagem de uma obra de Douglas Sirk da década de 1950, Tudo o que o céu permite. Uma mulher mais velha se apaixona por um imigrante árabe e é massacrada pelos colegas de trabalho e pelos próprios filhos, que fazem de tudo para acabar. Pois era absolutamente improvável na Alemanha dos anos 1970 que uma mulher de 60 anos se apaixonasse por um imigrante árabe de 20, 30 anos. Esse tipo de abordagem e as atualizações que Fassbinder fazia do melodrama de Sirk, incluindo a figura do imigrante, o amor proibido e as questões raciais e políticas, se assemelhavam ao que eu queria fazer. Revi muito Fassbinder, pensando e pesquisando a maneira como ele atualizou os códigos cinematográficos de Sirl, tanto na forma de filmar – através de janelas, de espelhos – como no modo como ele observou o melodrama tradicional e trouxe para o tempo dele.
CONTINENTE Vejo em Greta um filme feito por alguém que entende de linguagem.
ARMANDO PRAÇA Estudei muito o melodrama, mas não queria que o filme ficasse uma cópia. É super importante que Greta tenha uma identidade visual, na fotografia, no jeito de interpretar... Não acho que Fassbinder tenha ficado datado, e Almodóvar, quando passa na televisão, qualquer um reconhece. Ou seja, são cineastas com identidade própria. Meu cuidado não era reproduzir, nem nunca chegaria naquilo, mas construir a identidade própria do meu filme.
CONTINENTE E como você percebe Greta no contexto do Brasil atual?
ARMANDO PRAÇA Nesse momento que estamos atravessando, essa é uma temática importante de ser abordada, de ser tocada, trabalhada. Não sabemos o que vem por aí: estamos em um momento de impasse, incerteza, com o Ministério da Cultura extinto, todo tipo de verba sendo cortada. E ainda somos um dos países que mais matam transexuais e travestis, onde temos um índice elevado de violência contra os LGBT. É importante demais falar de tudo isso, no filme e para além dele.
LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente e crítica de cinema.