Ensaio

Um escritor e uma burrinha pelos solos das Cevenas

Interessado em “sentir as necessidades e os percalços da vida mais de perto”, Stevenson nos presenteou com uma narrativa de viagem que agora pode ser lida em português, na edição da Carambaia

TEXTO Adriana Dória Matos

14 de Novembro de 2017

O escritor escocês Robert Louis Stevenson percorreu quase 250 km pelo Sul da França, em 1878

O escritor escocês Robert Louis Stevenson percorreu quase 250 km pelo Sul da França, em 1878

Foto Reprodução

Se você vai viajar, além do roteiro, uma escolha fundamental são as companhias. Elas vão lhe ajudar ou atrapalhar a realizar as travessias. É verdade que você pode escolher viajar sozinho, isso lhe poupa o trabalho da escolha, embora nem sempre gostemos de andar por aí sem ter com quem trocar ideias, comentários e deslumbres. Quando decidiu fazer uma viagem a pé pela região montanhosa da Occitânia, ao sul da França, em 1878, o escritor escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894) pensou logo em quem lhe faria companhia, não exatamente para aplacar uma possível solidão, mas para aguentar o peso dos seus pertences.

E nessa escolha e no que dela advirá reside um dos saborosos trunfos dessa narrativa de viagem. “Faltava escolher uma besta de carga”, diz o autor. “Ora, o cavalo é a dama requintada dos animais: volúvel, tímido, delicado no comer e frágil de saúde; é valioso demais e irrequieto demais para ser deixado só, de modo que ficamos acorrentados a essa criatura como a um companheiro de escravidão nas galés. Uma estrada perigosa o faz perder o controle. Em resumo, trata-se de um aliado incerto e exigente, que multiplicaria por 30 o trabalho do viajante. Eu precisava era de algo barato e pequeno e robusto, de temperamento impassível e sereno. E todos esses requisitos apontavam para um burrinho.”

Modestine, a burrinha que, segundo o autor, era um pouco maior do que um cão, foi a escolhida. Por conta desse coprotagonismo, o livro se chama Viagem com um burro pelas Cevenas (o mais justo seria com “uma burra”) e foi escrito quando Stevenson tinha 28 anos e antes de ele se tornar o famoso autor de A Ilha do Tesouro e O médico e o monstro (ou O estranho caso do Doutor Jekyll e do Senhor Hyde).

Com primeira edição inglesa de 1879, O livro não tinha sido ainda traduzido no Brasil, o que ficou a cargo da editora Carambaia, que realizou, em 2016, uma edição caprichada, com 144 páginas e uma capa que simula o pelo do animal e um miolo interessante, sem divisão de parágrafos (as marcações são feitas por sinais) e com alinhamento nas margens externas das páginas, deixando o texto fluir ao centro, contando também com um mapa do percurso feito pelo escritor impresso em páginas verde-grama. A isso, acrescente-se a tradução correta de Cristian Clemente e um posfácio ótimo do jornalista e escritor francês Gilles Lapouge (que também se encarregou de uma breve cronologia de Stevenson), e você tem um livro pra lá de simpático em mãos. Fora esses elementos externos convidativos, o que é bom mesmo é o texto de Stevenson, esse autor que tem o dom de nos fisgar com suas narrativas inteligentes, irônicas e com o pendor à aventura.



No caso de Viagem com um burro pelas Cevenas, acompanhamos o seu deslocamento de 12 dias pela região, entrecortada por rios como o Loire, o Allier e o Tarn, atravessada por ventos impiedosos – sobretudo no outono, quando o escritor faz a travessia –, repleta de vales escarpados e pontuada por cidadezinhas de cultura tradicional arraigada. Stevenson saiu de Le Monastier, no Alto Loire, em 22 de setembro do mencionado ano de 1878, e foi caminhando e parando até chegar a Saint-Jean-du-Gard, em 3 de outubro, onde se despediu de Modestine, e de onde seguiu para Alais, para pegar uma condução de volta pra casa. Tudo o que se apresentava pelo caminho era de seu interesse, que rapidamente se torna o nosso também: as paisagens, as pessoas, os lugares e suas histórias.

O texto é adorável porque é íntimo e despretensioso, não tendo a ambição da pesquisa de campo científica, histórica ou antropológica – comum às viagens expedicionárias em curso desde o século XVIII –, ou de abarcar verdades e conhecimentos; tudo passa pela capacidade de observação e pela sensibilidade do escritor. Além de escrever, Stevenson também fez desenhos ao longo do caminho.


Desenho de Stevenson no caminho da viagem. 
Imagem: Reprodução


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O artigo Viagens e viajantes: uma literatura de viagens contemporâneas, do professor da UFPA Luís Antônio Contatori Romano, inicia-se com uma eficaz síntese da história das viagens, tipo de deslocamento que sempre atraiu a humanidade. A citação é longa, mas vale a pena:

O pensador alemão Hans Magnus Enzensberger (1985), no ensaio Uma
Teoria do Turismo, de 1958, observa o fato de a história do turismo ainda não haver sido escrita. Afirma que as pessoas sempre viajaram, pois há referências sobre esse tema já em textos, imaginários ou supostamente verossímeis, da Antiguidade, como a Odisseia, de Homero, ou as Histórias, de Heródoto. Mas as viagens que se estendem desde a Antiguidade até inícios do século XIX eram motivadas principalmente por fins práticos; em geral, cumpriam razões de Estado, testemunhadas, por exemplo, nas paredes do Palácio de Persépolis, que ilustram as missões diplomáticas na Antiga Pérsia do rei Dario; religiosas, como Édipo indo a Delfos consultar o oráculo; ou comerciais, registradas, por exemplo, no Livro das Maravilhas, de Marco Polo. Principalmente os comerciantes frequentavam as estradas e os caminhos marítimos. Em menor proporção, também andarilhos, escritores e estudiosos viajavam.

A finalidade das viagens começa a se modificar no auge do capitalismo mercantil, a partir do século XVI, quando empreendedores individuais, como o francês Paulmier de Gonneville; aventureiros, como Hans Staden; ou eruditos, como Michel de Montaigne, passam a viajar por razões de cunho pessoal. No século XVI ressurgem também as mansões de verão na Itália, o que marca o início da moderna villegiatura. Em fins do século XVII, sobretudo jovens aristocratas britânicos empreendem longas excursões pelo Velho Continente, que duravam de seis meses a dois anos, com o intuito de conhecerem a vida mundana e distinguirem-se da mentalidade utilitária da burguesia ascendente, exaltando valores da gratuidade, entre os quais o das viagens sem obrigação. Para esses jovens, a educação recebia seu acabamento com The Grand Tour, de onde advém a palavra turismo. Acompanhados de seus preceptores, munidos de Guias, eles faziam o tour da Europa Continental, Roma era uma das paragens obrigatórias. Além disso, pessoas abastadas passam, a partir do século XVIII, a frequentar estações balneárias para tratamento de saúde. Ressurge, na Inglaterra, a estação termal de Bath, de origem romana; mais tarde, outros balneários são criados, como os de Spa e de Baden-Baden. Também no século XVIII, inicia-se o turismo na cidade litorânea de Brighton, na Inglaterra. Mas, aos poucos, o propósito do tratamento de saúde vai cedendo lugar à viagem mundana pelas estações balneárias, onde as hospedarias vão sendo substituídas por hotéis e passam a contar com cassinos. A partir do Romantismo, em fins do século XVIII, intensificam-se as viagens de estudiosos, artistas e poetas, principalmente à Itália, Grécia, Oriente Médio e Norte da África.

Quando Stevenson fez essa viagem pelas Cevenas, portanto, outros viajantes das mais diversas origens, escritores e artistas já haviam empreendido as suas, e alguns estavam também em trânsito naquele final de século. O que o distingue, portanto, é o seu espírito. Enquanto havia os que se interessavam por mundos distantes, exotismo, conhecimento e erudição, nosso escritor estava numa espécie de peregrinação àquilo que hoje chamamos de autoconhecimento, e também em busca de evasão.

Nas cartas que escreveu para sua mãe antes da partida de Le Monastier, o escritor afirmava o seu prazer de estar entre estrangeiros e numa região geograficamente muito semelhante às Highlands escocesas. Ele avisa que não esperem notícias suas nos próximos 15 dias, pois não terá como enviar correspondência, mas já aponta para a possibilidade de um novo livro surgir, enquanto comenta que melhorou bastante no desenho.


Desenho foi capa da 1ª edição, de 1879

Aquele era um jovem ainda dependente financeiramente da família, ansiando por liberdade e autonomia. Havia também, nessa caminhada de Stevenson, o desejo de conhecer o Outro, de estar junto de gente de quem ele desconhecesse os costumes e que pudesse “pesquisar” de forma intuitiva e informal.

No Estudo genealógico das viagens, dos viajantes e dos turistas, os pesquisadores Silvio Lima Figueiredo e Doris Van de Meene Ruschmann escrevem que a errância tem uma função cultural e citam Sobre o nomadismo, de Michel Maffesoli: “Estamos divididos entre a nostalgia do lar, pelo que ele tem de seguro, de matricial, pelo que ele tem de coercitivo e sufocante também, e a atração pela vida aventurosa, que se move, vida aberta sobre o infinito e o indefinido, com o que comporta de angústias e de periculosidades”. O nosso herói estava, assim, em busca de se despregar das condições familiares e “locais”, que nos aprisionam em estereótipos e na zona de conforto. Ali, na região montanhosa francesa, Stevenson podia ser confundido com um mascate, um andarilho, não era o filho e neto de faroleiros respeitáveis da Escócia. Não era ninguém e estava sozinho com a natureza selvagem.

***

Viagem com burro pelas Cevenas nos oferece, assim, o prazer da viagem sem propósitos: o viajante não ia vender nada, comprar nada, estudar nada, saber coisa nenhuma. “De minha parte, não viajo para ir a algum lugar, mas para ir. Viajo por viajar. A grande questão é mover-se; sentir as necessidades e os percalços da vida mais de perto; sair do leito de penas que é a civilização e encontrar sob os pés o globo granítico cheio de farpas cortantes. Aí, quando despertamos para a vida e nos preocupamos mais com os nossos negócios, mesmo um feriado precisa ser preparado com trabalho. Segurar um fardo sobre uma albarda contra uma ventania do norte não é proeza, mas serve para ocupar e ordenar a mente. E, com um presente tão imperioso, quem é capaz de incomodar-se com o futuro?” Possivelmente, esse é o trecho que melhor sintetiza sua jornada.

Se a questão é estar em intimidade com a natureza e, de vez em quando, tomar contato com gentes e vilarejos isolados, tudo ali está adequado. No início, desajustada e errante, emperrando aqui e ali e entrando nos lugares para onde não é chamada, a burrinha Modestine se mostrará, ao longo do caminho, uma companhia discreta e eficaz. As paisagens são deslumbrantes ou banais, mas quase sempre inóspitas, e Stevenson sabe contá-las para os leitores, desde as suas mais variadas manifestações e horários do dia e da noite, como se elas fossem capazes de expressar nossos sentimentos profundos. Ainda no início da viagem, ele relata:

Apenas um viajante, passando apressado como uma pessoa de outro planeta, pode desfrutar corretamente da paz e da beleza da grande festa ascética. A vista de um povoado em descanso lhe faz bem ao espírito. Há algo melhor do que a música nesse silêncio geral e incomum; e esse algo o inclina a pensamentos amáveis, como o som de um riacho ou o calor da luz do sol. Nesse estado de espírito agradável, desci o morro até onde se situa o Goudet, na ponta verde de um vale, com o Château de Belfort do lado oposto, sobre um rochedo íngreme, e com o córrego, límpido como um cristal, formando uma piscina profunda entre eles. De alto a baixo, era possível ouvi-lo ondear sobre as pedras, um rio moço que parecia absurdo chamar de Loire.

Stevenson não se incomoda de deitar ao relento – e até o prefere, servindo-se apenas do seu saco de dormir para se abrigar. Ali, despojado de teto e paredes, se integra ao entorno.

O vento entre as árvores foi minha cantiga de ninar. Às vezes, soava por minutos seguidos num sopro firme e constante, que não aumentava nem diminuía; e então inflava-se e rebentava feitos as ondas, e então as árvores aspergiam-me com gotas grandes da chuva da tarde. Noite após noite, no meu dormitório privado no campo, dei ouvidos a esse concerto perturbador por entre os bosques, mas fosse pela diferença nas árvores, ou pela posição do terreno, ou porque eu estava do lado de fora e no meio dele, o fato é que o vento cantava num tom diferente entre esses bosques de Gévaudan.

Além do contato com a natureza, Stevenson nos conta a respeito dos encontros que travou com os moradores dos vilarejos e paragens do caminho. É divertido notar – nesse contexto – as suas diferentes reações aos católicos e protestantes, com uma clara vantagem para esses últimos, muito provavelmente pelo fato de o escritor ter sido protestante e pertencido a uma família fortemente ligada à religião que, àquela época, ainda era vítima de perseguições pela maioria católica. A experiência um tanto defensiva e irônica dele no mosteiro trapista de Nossa Senhora das Neves, em La Bastide, contrasta com a acolhida e a identificação que encontrará mais adiante, em Lozère e Pont-de-Montvert, enclave de protestantes calvinistas que resistiu por quase duas décadas a emboscadas, perseguições e assassinatos de seus membros naquela que ficou conhecida como a Revolta dos Camisards.

“Nesse indecifrável labirinto de colinas, uma guerra de bandidos, uma guerra de bestas selvagens, arrastou-se por dois anos entre o Grande Monarca, com todas as suas tropas e marechais de um lado, e uns poucos milhares de montanheses protestantes do outro”, descreve o autor. “Cento e oitenta anos atrás, os camisards tiveram um posto exatamente no Lozère, onde eu estava; tinham organização, arsenais, uma hierarquia militar e religiosa; as suas ações eram ‘a conversa de todos os cafés’ de Londres; a Inglaterra enviou esquadras para apoiá-los; os seus líderes profetizavam e matavam; com cores, tambores e cantos de salmos em francês antigo, as suas bandas às vezes afrontavam à luz do dia, marchavam até os muros da cidade e dispersavam os generais do rei; e às vezes à noite, ou disfarçados, tomavam fortificações e vingavam a traição dos aliados e a crueldade dos inimigos.” A narrativa, nesse trecho de Viagem com burros sobre as Cevenas, já na sua última terça parte, é empolgada e heroica, na qual Stevenson se dedica a fazer justiça aos bravos camisards.




Mapas da travessia de Stevenson.
Imagens: Reprodução


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Mas, por que viajamos? Cada um de nós certamente apresentará uma lista de justificativas e variantes. “Viajo para descansar; viajo para me divertir; viajo para me instruir; viajo para trabalhar; viajo para estudar; viajo para me curar; viajo para me exercitar; viajo para comer e beber; viajo para competir”, seriam respostas comuns, embora saibamos que muitas pessoas hoje em dia viajam para gravar, fotografar e tirar selfies, material exaustivamente postado nas redes sociais (e a resposta, nessas circunstâncias, seria “viajo para me exibir”). Também devemos admitir respostas como: “não sei por que viajo; viajo para fugir do tédio e da banalidade; viajo para me perder; viajo para me encontrar”.

O filósofo pop Alain de Botton, em A arte de viajar, conta que foi até Barbados motivado por um folheto publicitário que oferecia a ilha como o paraíso terrestre; o que ele encontrou por lá foi o inferno – que era ele mesmo, ou melhor, sua mente iludida. “O corpo encontrava dificuldade para dormir e se queixava do calor, dos mosquitos e dos problemas de digerir a comida do hotel. A mente mostrava-se apegada à ansiedade, ao tédio, a uma tristeza descontrolada e ao alarme financeiro”, escreve.

De sua parte, o poeta russo Joseph Brodsky empreendeu, durante duas décadas seguidas, até morrer, viagens peculiares à Veneza: sempre no inverno, em janeiro, quando a horda de turistas que vemos acorrer anualmente à cidade italiana em dias de sol desaparece. Nas páginas de Marca-d’água, Brodsky conta como foi levado aos poucos a amar a Veneza invernal, muito antes de conhecê-la ou mesmo vislumbrar a possibilidade financeira de um dia poder visitá-la.

Esse é um estranho e fascinante “livro de viagem”, em que o autor narra suas pequenas descobertas, hábitos e pensamentos enquanto esquadrinha a cidade aquática. Muitos de nós petrificariam diante da possibilidade de sermos pegos por um tempo ruim em qualquer viagem, mas isso não assusta o poeta, que comenta a respeito das neblinas espessas que frequentemente encurralam Veneza no inverno: “Os serviços de barcos são interrompidos, os aviões nem chegam nem decolam por semanas, as lojas fecham e o correio deixa de pôr lixo na sua porta. O efeito é como se uma mão desleal tivesse virado do avesso todas essas sucessões de cômodos e coberto a cidade com um forro”. E emenda: “Essa é uma época boa para ler, para gastar eletricidade o dia inteiro, para se entregar a pensamentos depreciativos sobre si mesmo ou ao café, para ouvir o Serviço Mundial da BBC, para ir cedo para cama. Em suma, época para o esquecimento de si mesmo, induzido por uma cidade que deixou de ser vista”.

Quando foi a Marraquexe, em 1954, o escritor de origem búlgara Elias Canetti tomou a providência de se manter ignorante quanto aos costumes e à língua do país. Assim, no campo do desconhecido, poderia sorver tudo que se lhe apresentasse. Claro, seus condicionantes culturais determinariam várias de suas reações, mas era como se, naquele estado intencionalmente “ausente”, ele estivesse com os sentidos mais afiados que a razão. As narrativas de Vozes de Marrakesh dão perfeitamente conta desse estado sensorial.

Noturno indiano, de Antonio Tabucchi, coloca-nos diante de uma viagem metafísica pela Índia, alguém viaja em busca de alguém que desapareceu anos atrás. Realidade ou sonho? Isso importa?

O que fazemos dentro destes corpos – disse o senhor que se preparava para deitar-se na cama perto da minha.

Sua voz não tinha tom interrogativo, talvez não fosse uma pergunta, era apenas, a seu modo, uma constatação; de qualquer forma seria uma pergunta a que eu não poderia responder. A luz que vinha da plataforma da estação era amarela e desenhava nas paredes descascadas sua sombra magra, que se movia com leveza, com prudência e discrição, me pareceu, como se movem os indianos. De longe vinha uma voz lenta e monótona, talvez uma prece ou um lamento solitário e sem esperança, como os lamentos que exprimem só a si mesmos, sem pedir nada. Para mim era impossível decifrá-lo. A Índia era também isto: um universo de sons monótonos, indiferenciados, indistintos.

Talvez viajemos dentro deles – eu disse.

Devia ter passado um certo tempo desde sua primeira frase, perdera-me em considerações distantes: alguns minutos de sono, talvez. Eu estava muito cansado.

Como disse? – ele falou.

Referia-me aos corpos, talvez sejam como malas, nos transportamos a nós mesmos.

Numa medida mais econômica, o autor do posfácio de Viagem com burro pelas Cevenas, Gilles Lapouge, oferece duas justificativas para viagens: aquilo que ele chama de “exotismo tradicional”, personificado por deslocamentos realizados, entre outros, por Heródoto, Malinovski e Lévi-Strauss, “cuja ambição é resolver o outro no mesmo, esclarecer e portanto abolir o desconhecido”, e a “viagem zen”, procedimento que ele associa aos passos da burrinha Modestine. “Preconiza peregrinações de cegos no nada, essa ausência, essa irrealidade que é a terra.” Seriam, de um lado, justificativas racionais, totalizadoras, e, de outro, filosóficas, necessariamente inconclusivas, e mesmo arbitrárias.

Agora, retornamos a você, leitor, que nos acompanhou nessa jornada até aqui, e lhe devolvemos a pergunta, para a qual você não precisa lançar imediata resposta: por que você viaja?

P.S.: A viagem empreendida por Robert Louis Stevenson naquele último quarto do século XIX é hoje repetida por milhares de andarilhos, num percurso conhecido, em francês, como Le Chemin de Stevenson e Grande Randonnée ou, em inglês, por The GR 70 (The Grand Route 70) ou The Robert Louis Stevenson Trail. Esses turistas são atraídos pelo patrimônio natural e histórico das Cevenas, que foram transformadas, em 1970, num parque natural de 15 mil hectares. Nem todos fazem o trajeto total de 252 quilômetros, geralmente percorrido em 14 dias, preferindo fracioná-lo. Existe, inclusive, a Association sur Le Chemin de Stevenson, que preserva esse roteiro, atuando também para evitar que a indústria do turismo – o que é muito frequente em relação a vários lugares hoje no mundo – destrua as qualidades do lugar, aquilo que o torna justamente uma rota agradável e, de certo modo, intocada. Em 2014, o repórter de O Globo Bolívar Torres cumpriu parte do roteiro. A reportagem é uma versão interessante, e contemporânea, do trajeto realizado por Stevenson e pode ser lida aqui.

Assista também ao vídeo abaixo pelo caminho (em francês):



ADRIANA DÓRIA, jornalista editora da Continente, bibliófila e professora da Unicap.

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