Ensaio

A nova dança de Aline Bei

Em 'Pequena coreografia do adeus', a autora de 'O peso do pássaro morto' faz do descompasso e do desengano familiar uma bonita coreografia de libertação

TEXTO Raíza Hanna

09 de Julho de 2021

Foto Renato Parada/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Será o amor apenas uma dança para espantar a solidão? Será o sonho a presença ambivalente do corpo que, regido pela música, atravessa o sono e deságua na ação? Foram essas algumas das perguntas que ficaram bombardeando minha cabeça após a leitura da nova obra de Aline Bei, um dos nomes mais badalados da literatura brasileira contemporânea. Seu livro lançado pela Companhia das Letras, Pequena coreografia do adeus (2021), tem nome de despedida apesar de falar sobre começos, estes que acompanham todos os términos para não nos deixar parar frente à dança da vida. 

Em Pequena coreografia do adeus, acompanhamos a personagem-narradora Júlia Terra, uma mulher solitária e sofrida que, desde pequena, tem que lidar com uma mãe violenta e um pai ausente, que se abandonam ao mesmo tempo em que também abandonam a filha. Com esse livro, a autora consagra o seu estilo único e nos apresenta a uma mulher que conta situações de sua vida e nos faz acompanhá-la por certo período de tempo, assim como no seu livro de estreia, O peso do pássaro morto (editora Nós, 2017). O tema da violência do corpo feminino e da maternidade foi também assunto tratado em sua primeira obra, ganhadora dos prêmios Toca e São Paulo de Literatura. 

Quanto à forma de Pequena coreografia do adeus, Aline, que já tinha construído um romance através de uma prosa poética com versos livres, agora chega com mais ousadias na concretude das palavras: usa de tamanhos tipográficos menores em palavras específicas para dar-lhes um tom mais baixo; elementos de pontuação para criar uma dança desarmônica, ou uma porta/janela por onde é possível espiar; e deixa o vazio falar, apostando no silêncio e na simplicidade da narrativa. 

Aline, que se descreve como “uma escritora que já foi atriz e que ainda sente queimar por dentro a menina que outrora morava em seu rosto”, começou “a escrever em 2009, na faculdade de Letras e, desde então, é o que tenho feito, apaixonadamente”, como nos contou em entrevista por e-mail. Ela também nos disse que aprecia a singeleza na escrita: “gosto da escrita límpida. autores como Raymond Carver e Lucia Berlin me influenciam profundamente. prefiro não fechar o caminho com árvores sinuosas que protejam o núcleo vital da floresta. não, eu prefiro expor a flor”, nos revela. 

Sobre as influências para a escrita de Pequena..., ela aponta “Pina Bausch e a peça Café Müller. Henry James e o livro Pelos olhos de Maisie” como as mais presentes. Ao perguntá-la sobre a ligação de sua literatura com outras artes, ela me diz que há ligação, “especialmente o teatro, sim. por ter sido atriz de teatro em tenra idade. mas também amo o cinema, a música, as artes plásticas. a Dança” e que não acredita que seu estilo de escrita já está sedimentado pois “a palavra precisa estar em Movimento, como tudo. encontrar um modo e sedimentá-lo é enterrá-lo, é morrer”. 

Sobre ter sido lançada pela Companhia das Letras, uma das maiores editoras brasileiras, ela nos conta que a conversa entre ela e a editora “foi natural. eles acolheram a minha Pequena ainda em fase de gestação com uma carta cheia de afetos e caminhos que me ajudaram muito no processo criativo. tenho orgulho de fazer parte dessas duas editoras, Nós e Companhia das Letras. são casas sérias, sensíveis. que evocam o coletivo. fundamentais para a literatura contemporânea brasileira”, e que a recepção do novo livro tem sido “muito bonita. a Pequena tem encontrado o caminho aberto. e ela é grata ao irmão mais velho, é claro. o admira muito. sinto a Pequena mais esperançosa do que ele, talvez por ser mais jovem”. 

A autora ainda nos conta que a urgência de falar sobre temas como a violência do corpo feminino e outros desdobramentos do sistema patriarcal é a de “nos curar”, sentencia. 

***

Dançando sobre a repetição,
tramando a invenção da tradição

Ainda durante entrevista à Continente, a autora conta que foi “especialmente da personagem Júlia Terra” e do “desejo de colocar uma artista em cena”, assim como da “vontade de falar sobre começos”, que surgiu essa coreografia. O romance consegue construir uma narrativa onde todos esses desejos são estruturados de forma harmoniosa, ainda que traga à superfície o tema da desarmonia entre ser o que se é e estar entre pessoas tão íntimas que nos impedem de sermos nós por inteiro, é por isso que, em dado momento, a narradora se pergunta “por que será que os estranhos sempre nos pesam menos?”, ao passo que ela mesma logo tenta se responder: “talvez por serem terra desconhecida, é o que abre espaço para nossa imaginação (...) os estranhos não nos doem porque ainda não

É talvez por isso que Júlia nos abre sua casa, seu quarto, suas dores, suas manias e medos, sua infância sem-infância e até mesmo seu diário. Na verdade, a narradora nos leva à sua despedida da infância ainda nas primeiras páginas do livro: passamos a acompanhar uma menina que, filha única, tem que lidar com a desesperança violenta de sua mãe, que a espanca rotineiramente. Dentro de casa, a menina se esconde pelos cantos, solitária e calada, andando a passos silenciosos para não acordar o monstro raivoso que mora dentro daquela mulher que a gerou. Já seu pai parece não se importar com os mandos e desmandos da esposa, pelo menos não o suficiente para interrompê-la e curar as feridas da filha. Ele apenas aguenta a situação até onde dá, até onde o divórcio os alcança. 

Apesar de não compreender inteiramente todas as ações de seus pais, a menina parece estar muito consciente dos profundos buracos emocionais que rodeiam seus entes: “nosso jeito de conversar, diretora, é nos machucando // não por mal, não somos maus // somos tristes e isso é o que fazemos com a nossa 

A criação dos personagens Vera e Sérgio, pais de Júlia, é atravessada por muitos lugares-comuns: a mãe que larga tudo após se casar e passa a cuidar exclusivamente da casa e da família; o pai, cheio de machismos, que assiste a jogos de futebol tomando cerveja enquanto a esposa bota a casa em ordem; a esposa que briga com o marido por ciúmes enquanto vive pelos afazeres domésticos; o marido que chega tarde em casa por causa do trabalho. Esses clichês são usados na narrativa de maneira proposital: pois o que vira clichê é o que se repete e o que continua se repetindo, geração após geração. Quantas famílias conhecemos que usam ainda da mesma estrutura tradicionalissimamente brasileira? 

A repetição é o carma, que demanda reencarnações. No budismo, o carma é ligado ao samsara, à roda da vida, a um ciclo em que a alma está presa. No budismo, aliás, a quebra desse ciclo, é a extinção do carma, é a libertação do sofrimento. A repetição no romance acontece a todo instante, não só na cópia do cotidiano de tantas famílias que conhecemos, mas também nos sonhos de Júlia que são relatados durante a narrativa, como a chinela que atinge seu corpo sozinha, magicamente, com sua mãe se divertindo ao ver a cena enquanto Júlia sente prazer na surra enquanto sonha. 

Mas o carma é também a tradição, e não há tradição sem invenção. Isso é o que nos aponta os estudos culturais que seguem o viés da Nova História. O historiador Eric Hobsbawm criou o termo “tradição inventada”, pelo qual ele propõe um olhar diferente para o conceito convencional de tradição, que é o da repetição de práticas fixas que são passadas de geração a geração. A tradição inventada entende a repetição com a instauração de modificações, de alterações que vão sendo construídas ou reconstruídas ao longo do tempo, uma vez que cada geração entende o mundo atual de uma nova maneira, pois o mundo está sendo, a todo instante, atualizado. Portanto, a invenção está também contaminada de tradição, de repetição e de continuísmo. Ao andarem juntas, tradição e invenção, espantam-se as mazelas dos conservadorismos, permitindo que haja rupturas necessárias para o desenvolvimento humano e social. Entender esse conceito é perceber que o carma pode ser quebrado, e que ele é, na verdade, quebrado todos os dias, através de atualizações. 

O sofrimento que todos os membros dessa família, mãe, pai e filha, carregam silenciosamente dentro da mesma casa é, ao longo do romance, investigado e, ao final, torna-se perceptível a sua ligação a essas tradições fixas, a esse futuro diferente que não se concretiza, mas que Júlia deseja a todo instante. Na busca por sua própria libertação, ela tenta tomar consciência dos motivos sociais e psicológicos que fazem sua mãe agir daquela forma: 

as surras que eu levava
eram as surras que a minha mãe levou
em looping
na minha pele, na pele dos filhos que ainda não 

***

É a genealogia feminina que Júlia parece querer investigar, para tentar compreender o porquê de tanta violência e tristeza dentro de sua casa. Compreender o passado, mesmo que nas brechas do silêncio, quando sua mãe está envolvida pelo sono e acaba se abrindo mais para a filha, contando o seu desejo de ter sido cantora, como seu pai fora; ou como sua mãe (a avó de Júlia) engravidou dela a partir de uma relação com esse cantador viajante que logo foi embora, deixando-a sozinha, grávida, completamente devastada. Vera também não se dava bem com a sua própria mãe, a avó de Júlia, e vivia se comparando com ela. O desengano dessas mulheres então deságua na relação com sua prole feminina.

Júlia logo percebe que o vazio que sua mãe carrega é o desejo forte por ser amada, pois amando intensamente seu marido, não possui a relação que desejava com esse homem: 

(...)
o rosto da minha Mãe em Fúria impressionava
até mesmo nós dois, que já estamos bem acostumados
com a Tempestade, a boca
siderava, os olhos se tornavam uma mistura improvável
de água com fogo, uma verdadeira Rainha
de um pequeno país em guerra que era o seu corpo não
amado
ou nunca amado do jeito que ela

Logo, a personagem-narradora também percebe os desfortúnios que seu pai, mesmo estando em lugar privilegiado, também passa, por estar alocado nessa mesma sociedade patriarcal e capitalista.

A sanidade começa a chegar com as tentativas de libertação de Júlia. Os seus começos e empenhos, ao iniciar o balé, e ver na Dança um movimento de alforria; ou ao sair de casa, quando temos contato com uma Júlia Terra já adulta, trabalhando em um café; ou ainda quando decide se lançar numa carreira literária trazida a partir do hábito de escrever em seu diário. Aos poucos, Júlia vai encontrando seu próprio caminho autônomo, sua própria invenção de vida, de rotina. 

Seu pai também passa pela catarse da libertação, que não acontece ao se divorciar da esposa e ser visto por aí parecendo muito mais jovem, bonito e cheio de novas namoradas, mas no seu encontro também com a arte, com a escultura, quando, de repente, ele encontra na tristeza a sua real libertação: 

(...)
o curioso é que meu pai estava se transformando
também no rosto, parecia abatido, mais magro
como um artista que se dedica sem descanso a um projeto
que ele precisa terminar.
agora ele tinha até barba por fazer, mas não era só isso,
seus olhos
andavam sempre marejados
como se tivessem descoberto onde dói
em si, no mundo
e agora não sabiam o que fazer com esse sangue, se era
mesmo
sangue
então ficavam assim
confusos,

Já sua mãe parece não encontrar saída para seu desespero e, quando Júlia já não mora com ela, fica sozinha em casa apenas vivendo do passado, sem nunca olhar pra frente, sem nunca conseguir se libertar de suas dores, de seu amor devastado, de seu completo Abandono. Porém, após um acontecimento terrível, a loucura toma conta dela até que a autora cria a simbologia da mudança radical, do rompimento com qualquer repetição moral da tradição. Será que, a partir disso, não haverá uma nova relação mãe e filha? Quem sabe? 

Pequena coreografia do adeus parece ter encontrado um caminho possível dentro da literatura brasileira e mesmo das casas editoriais mais tradicionais do país, com sua narrativa experimental. O livro conseguiu atingir esses méritos, ainda que pareça terminar prematuramente. Talvez esse sentimento tenha sido despertado pelo mergulho intenso em sua leitura e a vontade de adentrar mais na vida de Júlia. 

De todo modo, ao ser questionada sobre planos para próximas publicações, Aline Bei nos revela: “já iniciei meus estudos. tenho me aproximado de uma cidade de ventos mornos, muito parecida com uma Espanha que não existe em lugar nenhum. a palavra interior me parece importante nesse processo investigativo. por isso comprei um caderno azul com textura de útero, para escrever”.

Sigo instigada na espera pelo que chegará das mãos dessa brilhante escritora. 

RAÍZA HANNA, escritora, revisora de textos, editora de livros, encadernadora e pesquisadora em literatura e feminismo. Mestranda em Literatura, Teoria e Crítica pela UFPB.

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