Depoimento

Entre o 13 de maio e o 20 de novembro: quem é o protagonista da nossa liberdade?

Depoimentos da professora do departamento de História da UFPE, Valéria Costa, e da doutora em Educação pela UFBA, Eliane Boa Morte, esclarecem

17 de Novembro de 2025

Professoras Eliane Boa Morte e Valéria Costa discorrem sobre as duas datas

Professoras Eliane Boa Morte e Valéria Costa discorrem sobre as duas datas

Fotos Jefferson Peixoto/Prefeitura de Salvador-Secom e Divulgação

“Treze de maio não é dia de negro!” Assim entoa e brada a yalorixá e cantora Maria Helena Sampaio, com sua voz marcante pela força de seu axé, a música também conhecida como “Quilombo Axé!”. Há muitos anos, este tem sido um hino de resistência cantado por mulheres e homens ativistas dos movimentos sociais negros nas ações do 20 de novembro, no Recife/PE. A negação do 13 de maio como dia de negro e a elevação do 20 de novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra remonta ao passado de luta ancestral do Movimento Negro que, às vésperas do Centenário da Lei Áurea e da promulgação da Constituição em 1988, denunciava o descaso do estado republicano que não incluiu em seus projetos econômicos, sociais e de modernidade a população negra. Esta assistiu ao alvorecer da República como Quase-cidadã, sabendo de seus deveres, mas com direitos cerceados. A Áurea Lei dizia mais sobre uma abolição palaciana cuja centralidade estava na nobre luso-brasileira Isabel Cristina de Bragança do que sobre as mobilizações coletivas das gentes africana e afro-diaspórica que já vinham (re)existindo ao tráfico e à escravização anteriormente à travessia forçada do Atlântico de sangue. O 20 de novembro, por sua vez, devolveu o protagonismo negro, ao eleger Zumbi dos Palmares como o nosso líder e não o nosso redentor, como pretendeu a abolição palaciana.

Valéria Costa

Professora do Departamento de História da UFPE

Líder do Matamba: Grupo de Estudos e Pesquisas em História da África Atlântica e da Diáspora

Africana (UFPE/CNPq)

As diferenças entre essas duas datas são muitas, mas também existem semelhanças importantes. Ambas tratam de temas vivos no cotidiano brasileiro e, embora sejam comemorativas, não devem ser confinadas ao calendário. Precisam extrapolar o seu próprio dia para se inserir de forma permanente na vida da população. As duas marcam momentos históricos, com impactos diretos na nossa realidade e no modo como compreendemos o passado e o presente das relações étnico-raciais no país. O 13 de maio surge a partir de uma assinatura legal do sistema colonial brasileiro que aboliu oficialmente a escravidão. No entanto, essa narrativa costuma apagar o processo de luta, resistência e organização do povo negro pela própria liberdade. A centralidade dada à figura da Princesa Isabel produz uma visão distorcida, como se a liberdade tivesse sido uma concessão de uma mulher branca da elite imperial, e não resultado de séculos de rebeliões, fugas, quilombos e estratégias de enfrentamento. Já o 20 de novembro, instituído como Dia da Consciência Negra — hoje feriado nacional —, é representado
pela figura de Zumbi dos Palmares, um líder negro forjado na resistência ao sistema escravista. Ele desloca simbolicamente o protagonismo do poder colonial para o próprio povo, afirmando um herói negro como referência central.

O 20 de novembro celebra a luta, a resistência e o combate contínuo contra a estrutura opressora do racismo que atravessa a sociedade brasileira. O 13 de maio, por sua vez, permanece como data histórica que precisa ser lembrada, pois seguimos vivendo, metaforicamente, o “14 de maio”: a luta cotidiana pela dignidade humana do povo negro em uma sociedade excludente. Embora tenham origens distintas e sejam frutos de momentos históricos diferentes, ambas as datas devem ser trabalhadas ao longo de todo o ano, para que a população negra compreenda o processo histórico que moldou o racismo no Brasil e tenha elementos para enfrentá-lo de forma
consciente e estruturada.


Eliane Boa Morte

Doutora em Educação/ UFBA

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