Em 1958, aos 20 anos, Olufela Olusegun Oludotun Ransome-Kuti mudou-se da Nigéria para Londres com a intenção de estudar medicina e se tornar o terceiro filho médico de seus pais, membros da classe média nigeriana. Ao invés disso, matriculou-se no Trinity College of Music para estudar piano e composição. Lá, montou sua primeira banda, a Koola Lobitos, que tocava jazz e highlife (gênero africano do início do século passado). Em 1963, ele voltou à Nigéria para trabalhar como produtor de rádio para a Empresa Nigeriana de Transmissão. Em 1967, passou a designar sua música de afrobeat, misturando jazz, highlife, soul, funk e cânticos africanos de chamada e resposta, abordando temas políticos e sociais relativos à vida dos africanos.
Essa alquimia virou um dos mais influentes gêneros musicais e transformou Fela Kuti no mais aclamado artista africano do século XX. Mas, enquanto era ovacionado por plateias internacionais, enfrentava uma implacável perseguição das autoridades de seu país. Sua história é alvo agora de um novo documentário, Meu amigo Fela, dirigido pelo documentarista brasileiro Joel Zito Araújo (A negação do Brasil e As filhas do vento), que está circulando por festivais internacionais e estreia nos cinemas brasileiros neste mês da Consciência Negra.
O convite para realizar o filme foi feito a Joel Zito pelo biógrafo do artista, o etnólogo afro-cubano Carlos Moore, que, em 1982, lançou a biografia Esta puta vida, traduzida para o português apenas em 2011. Ao ler a narrativa, Joel Zito percebeu que algumas facetas do músico foram ignoradas por documentários anteriores, como Procurando Fela, de 2014. E resolveu explorar esses episódios, tendo Moore como fio condutor e entrevistador.
Com isso, aparecem personagens fundamentais na trajetória do ícone, como a ativista norte-americana Sandra Smith, que Fela conheceu em 1969, nos Estados Unidos. Ela integrava os Panteras Negras e apresentou ao músico a militância negra de ativistas como Eldridge Cleaver, Stokely Carmichael, Amiri Baraka (LeRoi Jones) e Malcolm X. Isso foi determinante. A partir de então, Fela passou a incluir temas políticos em suas letras, que, antes, falavam de assuntos genéricos. Por causa dele, de quem se tornou amante, Sandra conheceu a África e transferiu-se para a Nigéria, mudando seu sobrenome para Izsadore.
A ativista tinha se recusado a se tornar mais uma das mulheres de Fela. Liberado pela lei e pela tradição africana, ele mantinha relacionamentos com várias mulheres e, em 1978, casou-se com 27 delas – a maior parte integrava sua banda, cantando e dançando. O documentário revela que as que ele realmente levava em consideração eram Sandra, Remilekum (Remi) Taylor, a primeira esposa, com quem continuou casado e teve três filhos (Femi, Yeni e Sola), e sua mãe, Funmilayo Ransome-Kuti, feminista e ativista, a primeira mulher a dirigir um automóvel na Nigéria. Após conhecer Sandra, Fela, enfim, entendeu a luta anticolonial de sua mãe – a figura feminina mais importante de sua vida.
Fela Kuti cercado por algumas de suas 27 esposas, em trecho do documentário. Foto: Reprodução
O documentário reforça que a trágica morte da mãe foi decisiva para que o músico mudasse seu comportamento, tornando-se uma pessoa mais revoltada e intransigente. Ela morreu, em 1978, em decorrência do ataque de soldados que destruíram a República Kalakuta, um complexo criado pelo artista nos subúrbios de Lagos, que envolvia um estúdio de gravação e uma casa que vivia aberta aos vizinhos e desassistidos. Foi depredado também o seu clube Afrika Shrine. Na casa de shows, Fela e sua banda costumavam tocar até o amanhecer, em apresentações frenéticas e dançantes.
Décadas depois, o mítico lugar foi reerguido pelo filho Femi Kuti. Durante o ataque em 1977, Fela foi espancado, suas esposas foram surradas e estupradas, e sua mãe, idosa, arremessada de uma janela, ficando debilitada por meses. No filme, Carlos Moore traz a hipótese de que o alvo principal do atentado teria sido a mãe e não o filho. Mas ele, naquele período, era o único artista do seu país que usava a música e o espaço na mídia internacional para denunciar com veemência o governo militar.
Uma das lacunas do filme, que levou 10 anos para ser realizado (por conta de um longo processo de negociação de direitos de imagem e de uso de músicas), é a ausência de informação sobre a campanha de Fela Kuti para se tornar presidente da Nigéria, em 1979, após uma década de governo militar, período em que o país viveu o boom do petróleo. A tentativa de se candidatar foi negada. Por conta disso, Fela é também chamado pelos fãs, até hoje, de Black President. Outra ausência no documentário foi uma abordagem um pouco mais verticalizada sobre a genialidade do compositor e cantor, que era multi-instrumentista, tocava saxofone, teclados, trompete, guitarra, bateria e percussão. Há uma explicação muito rápida, feita pelo pianista congolês Ray Lema. Nesse quesito, merecia mais depoimentos de artistas e especialistas.
O final de Meu amigo Fela deixa uma péssima impressão com relação ao artista. Depois de toda a violência enfrentada, ele passou a agir de forma estranha e tomava atitudes questionáveis, ao lado de um guru e de um grupo de capangas. Algumas histórias narradas são mal-explicadas. Também faltaram fatos curiosos, como o que envolveu Paul McCartney, quando este foi fazer o álbum Band on the run (1973) na Nigéria. Fela descobriu que o artista estava gravando no país. E considerou que o ex-beatle poderia estar lá para plagiar sua sonoridade. McCartney foi abordado na rua e levado até Fela. Depois foi liberado, ao provar que não estava roubando o estilo de ninguém. Os dois acabaram selando a paz, dividindo um baseado.
Embora seja o artista mais influente da África, Fela Kuti não conseguiu grande popularidade, porque suas turnês envolviam uma comitiva de 50 pessoas, ele costuma não tocar uma música após tê-la gravado e suas composições de 15, 20, 30 minutos não tinham a duração ideal para difusão radiofônica. Outro fator era que a maior parte de suas letras misturava inglês e línguas africanas, para ele uma questão de enfrentamento do colonialismo. Durante sua fase escolar, foi-lhe ensinado que as línguas originais de seu país não tinham valor.
Em 1984, Fela foi atacado mais uma vez pelas forças militares e preso sob a questionável acusação de lavagem de dinheiro. O episódio despertou a atenção de grupos de direitos humanos e, após 20 meses encarcerado, recebeu ordem de libertação. Quando faleceu em 1997, aos 58 anos, de um câncer decorrente da Aids, Fela Kuti deixou sete filhos, 50 álbuns e o afrobeat, que vem sendo mantido pelos filhos Femi e Seun, e por seu antigo baterista Tony Allen.
O Afrobeat é um estilo difundido entre ouvintes europeus e americanos. São estimadas mais de 100 bandas que tocam o estilo no mundo, mas apenas duas delas – The Positive Force, de Femi, e o Egypt 80, de Seun – estão na Nigéria. Em 2010, estreou na Broadway o elogiado espetáculo Fela!, que teve como um de seus produtores o rapper Jay-Z. A cada 15 de outubro, dia de seu nascimento, fãs ao redor do mundo realizam eventos para festejar o Fela Day, celebrando sua música e o ativismo anticolonial, ambos atuais.
DÉBORA NASCIMENTO é repórter especial da Continente, crítica de música e colunista da Continente Online.