Wilcken introduz o livro descrevendo as circunstâncias nas quais ouvira Low pela primeira vez. Era 1979 em Dunquerque, dois anos após seu lançamento, e não muito tempo depois da batalha que tomou conta da cidade na II Guerra. Alguns destroços remanesciam no simulacro cinzento; outros estavam implícitos, evocados, nas palavras dele, pelos "edifícios que abrigavam o fantasma de seu gêmeo bombardeado". Desde então, o autor estabelece a relação do disco com os espaços: onde fora pensado, gravado, escutado e onde mais essa sensibilidade referente a uma enevoada ruptura com o passado – própria de lugares que já foram cenário de algo tão visceral como uma guerra – reverbere.
O cineasta alemão Werner Herzog dissera, em conversa com Roger Ebert, que a geração pós-guerra teria uma lacuna de pais e mentores. A catarse de transgredir às tradições e poder lançar-se ao que nunca houve foi o motor de uma nova maneira de pensar a arte germânica nos anos 70; o krautrock, nesse aspecto, era o epicentro da dualidade ressoante em um ocidente cuja hegemonia ainda pertencia ao rock inglês. Kraftwerk particularmente atraíra a atenção de David na época – sendo uma das principais bandas do gênero (junto a Can, Neu!, Faust e outras), aventurava-se pela música eletrônica experimental, mesclando-a com narrativas futuristas. Os olhares, por vezes, despontando para vários lugares: uma vez que se olhava para frente, e, inevitavelmente, para o que poderia ter sido.
Materializa-se, então, a imagem da autobahn alemã e seus quilômetros intermináveis, perdidos em anseios por algum tipo de futuro que, como descrevera Bowie, "todos nós sabíamos que nunca aconteceria". Se era essa a sensibilidade que permeava Berlim, a mesma encontrara David, que vivia na cidade seu próprio purgatório subsequente aos exageros consumados na fase glam; bem como nos dias em que incorporara a persona do Thin white duke. O duque magro e branco foi o fio condutor que criara para os racontos do Station to station (1976), disco que marcou sua quebra com a natureza pop de trabalhos anteriores e aproximação com os sintetizadores e batidas motoriks que culminariam no Low e nos outros dois álbuns produzidos em Berlim, Heroes (1977) e Lodger (1979).
A partir disso, Wilcken sugere olhar para o processo criativo de ambos – Station to sation e Low – como um experimento em progresso. O primeiro, cuja faixa de abertura engrena os sons desenfreados do Trans europe express (locomotiva que corta o leste europeu e intitula um disco de Kraftwerk), é o retrato de um homem em decadência, perturbado pelas compulsões junkies que o esvaziara de memórias. O segundo desbrava um retorno psicanalítico a si mesmo e todas as estranhezas que esse processo pode suscitar.
Aqui, Bowie renasce de seus alter-egos passados mais uma vez e o faz como alguém expurgando-se de uma abstinência. Começa pelos incômodos ruídos de Speed of life e abriga-se no refúgio de seu quarto, como cantara em Sound and vision, mesmo que este não esteja inteiramente livre da claustrofobia e pesadelos recorrentes induzidos por Always crashing in the same car. A ideia de um recomeço, reiterada também em A new career in a new town, pode ser tão hermética quanto promitente.
Nesse sentido, Wilcken fala de dois epítomes nas vivências de Bowie em Berlim. Um coloca o outro em lacto sensu – ao revisitá-lo, enxergamos, também, um mundo em reconstrução. Os rumos deste permanecem incertos, e não se pode prendê-los a um diagnóstico. Assim é Low: confuso e misteriosamente absorvente.
MANU FALCÃO é estudante de Jornalismo da Unicap e estagiária da Continente.