Decidi fazer isso quando descobri que Luedji Luna lançaria seu segundo álbum, agora em 14 de outubro. Seu disco anterior, Um corpo no mundo (2017), já fazia parte das minhas playlists, e entrou como trilha sonora de muitos momentos vividos em 2018 e 2019. A canção Banho de folhas, quando canta “Nenhuma resposta/ Mas um punhado de folhas sagradas/ Pra me curar, pra me afastar de todo mal”, era como se me benzesse em música. O novo álbum recebe o título Bom mesmo é estar debaixo d'água (2020) e anuncia o retorno do elemento água. E, chegando em meio à pandemia, é como se, mais uma vez, quisesse nos afastar do mau agouro.
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Ao dar o play, imergi, durante quase 50 minutos, no canto de Luedji, banhado de ritmos africanos e jazz. Durante as 12 faixas, entrei num exercício de apneia musical, perdendo o fôlego em meio à intensidade das letras e, ao emergir desse mergulho, ganhando o ar com plenos pulmões expandidos. Fortalecida e encharcada de afeto. As músicas trazem as vivências da cantora, sua relação com o feminino, a negritude e também a maternidade. Talvez este seja um ano fatídico para Luedji, já que ela pariu duas vezes. Um (re)nascimento artístico, marcado pela chegada do seu segundo disco ao mundo, e um outro parto, desta vez biológico, quando, em julho, a cantora deu à luz a seu primeiro filho, Dayo.
Bom mesmo é estar debaixo d'água (2020) dá continuidade à identidade do trabalho anterior, e além de cantar e compor a maioria das letras, a artista assina a produção do disco junto ao guitarrista queniano Kato Change, com quem ela colaborou no primeiro álbum. O resultado é um disco de dupla nacionalidade, produzido no Brasil (São Paulo e Salvador) e no Quênia (Nairóbi) – o primeiro país africado visitado pela cantora, e com a qual ela nutre relação estreita com a cultura e o povo, influências que foram incorporadas na sua música.
“O amor é coisa que mói muximba/ E depois o mesmo que faz curar”, anuncia a voz do escritor, poeta e compositor Lande Onwale, acompanhada de percussão, na música de abertura, Uanga. Nos deixando ciente, desde o primeiro momento, que o álbum é sobre (e por) amor. A segunda canção é a Tirania, na qual, com um fundo sonoro de música clássica, Luedji Luna estreia sua voz neste álbum, cantando “Você dita silêncio/ Meu corpo obedece beijo”, numa mistura de desejo, flerte e cumplicidade.
Eu não tenho chão
Nem um teto que me queira
Nem parentes que me saibam
Nem família que me seja
Tenho apenas uns amigos
Mas talvez só tenha um
Esse é o lamento na música Chororô. Com elementos do jazz, canta sobre uma vida esvaziada de amor, mas nem tão pouco vazia. O que dialoga diretamente com a canção seguinte, uma versão de Ain't got no, original da sempre necessária e atual Nina Simone, arrematada no final com um poema da escritora brasileira Conceição Evaristo, recitado pela própria, e que diz: “A noite não adormece os olhos das mulheres. Há mais olhos que sono. Onde lágrimas suspensas virgulam lapso de nossas molhadas lembranças”.
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Após esse verdadeiro tributo a produções artísticas feitas por mulheres negras, é apresentada mais uma canção com nome em inglês, mas desta vez com letra em português: Ain’t I a woman?. Para aqueles que confiam nos signos, uma analogia ideal para definir tais versos seria: uma legítima carta assinada por escorpianas. Falando de vingança perante injustiça amorosa, Luedji canta:
Cada lágrima que eu chorei
Eu guardei só pra te dar
E você vai beber no inferno
Você vai me pagar
Entendemos a origem dessa vontade carregada de ira nos versos seguintes, quando ela vocifera “Eu sou a preta que tu come e não assume”. É sobre a solidão da mulher negra que ela está falando, sobre as que são preteridas em detrimentos das de pele clara, branca. Uma pauta tão presente e pouco discutida por aqueles que ainda consideram amor artigo de luxo, e não um elemento vital; ou, ainda, sobre quem é invisibilizada por aqueles (e aquelas) que se beneficiam do status quo. Por acaso, nós pretas, não somos mulheres? O direito a se sentir amada e desejada pertence a todas, assim como o direito de sentir tudo isso por alguém ou por si mesma. “Vou dormir sem roupa/ Sonhar com a sua boca/ Sonhar com pernas quentes/ Sobre a minha carne”, diz em Recado, a sexta do álbum, uma canção que exala autocuidado.“Vou pensar em mim.”
O álbum visual teve cenas gravadas no carnaval de Salvador. Imagem: Reprodução
Chegamos, então, à música que dá nome ao álbum, Bom mesmo é estar debaixo d'água. É notável o motivo da escolha para ser o single. Citando o conceito criado por Machados de Assis para os olhos da personagem Capitu (Dom Casmurro, 1899), essa música é como uma ressaca, que te puxa para dentro, te draga, te envolve. Ainda na primeira vez a escutando, já me peguei cantarolando o refrão: “Me desespero/ São tuas ondas que me levam/ Oh, oh, oh, oh, ai, ai, ai, ai, ai, ai”. Uma experiência de conexão, repetindo o feito que a música Acalanto (2017) também teve em mim.
O disco segue sua navegação convidando ainda a poeta Tatiana Nascimento para recitar um poema autoral na faixa Lençóis, uma declaração amorosa em formato de música e poesia, que assim profere: “Me dá um pedaço do seu amor?/ Só um pedaço mesmo/ Não te quero inteira não”. E é nesse ato subversivo, de amar em tempos de cólera, que Luedji Luna deságua seu álbum e nos convida ao afeto. Nos convoca a submergir junto com ela. A sermos, talvez, submersivas.
TAYNÃ OLIMPIA é estudante de jornalismo na UFPE e estagiária da Continente.
EXTRA:
Todas as imagens usadas nesta matéria são reproduções tiradas do álbum visual, que pode ser conferido a seguir.