Aftersun
Em cartaz nos cinemas do país, filme tem arrebatado público e crítica ao narrar as entrelinhas de uma história de viagem entre pai e filha nos anos 1990
TEXTO Mariane Morisawa
19 de Dezembro de 2022
No filme, Sophie (Frankie Corio), de 11 anos, e o pai, Calum (Paul Mescal), viajam pela Turquia
Imagem Mubi/Divulgação
[conteúdo exclusivo Continente Online]
Um pai e sua filha passam férias na Turquia. Dito assim, parece pouco. Mas Aftersun, longa de estreia da escocesa Charlotte Wells, é daqueles que contêm a vida inteira. E, por isso, parece nos sacudir e nos confortar ao mesmo tempo.
O filme, em cartaz nos cinemas brasileiros – antes de seu lançamento na plataforma de streaming Mubi, no dia 6 de janeiro – tem arrebatado plateias desde sua exibição na Semana da Crítica, a mostra paralela mais discreta do Festival de Cannes, de onde saiu com o Prêmio do Júri. Na 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, foi escolhido o melhor filme da competição de novos diretores, levando o troféu Bandeira Paulista depois de ser uma das obras mais votadas pelo público.
As primeiras imagens são de uma câmera de vídeo caseira. Estamos nos anos 1990. Um homem dança e brinca. Sophie (Frankie Corio), de 11 anos, que está por trás da lente, pergunta ao pai, Calum (Paul Mescal), de “quase 131 anos”, o que ele, quando tinha a idade dela, achava que estaria fazendo hoje. Calum olha para a filha irritado e, ao mesmo tempo, triste. Pede para ela desligar.
Em seguida, uma série de pixels gigantes de colagens de imagens, fragmentos de realidade que se confrontam com a memória dos acontecimentos. E então, a câmera, agora na mão de Calum, vê Sophie fazer mil gracinhas ao se despedir dele, levada por uma comissária de bordo para embarcar no avião. Por fim, Calum dança em uma boate, com as luzes estroboscópicas oferecendo um jogo de esconde-esconde da imagem daquele homem.
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Essas cenas voltarão mais tarde. Aftersun não é o simples relato de uma viagem de pai e filha, mas uma revisão daquela viagem – talvez a última – por uma Sophie agora adulta, interpretada por Celia Rowlson-Hall.
Calum e Sophie agora estão de volta aos anos 1990, no ônibus a caminho do hotel de praia sem luxos em que vão ficar. Os dias passam, com eles nadando, tomando sol, jantando, fazendo passeios. À primeira vista, é isso. Mas, nas entrelinhas, há crescimento, dor, amor, luto, despedida.
Calum é um pai jovem, está para completar 31 anos. Às vezes, é confundido com um irmão mais velho de Sophie. Pai e filha não moram juntos. Ela vive com a mãe na Escócia. Calum está em Londres, talvez? Não fica claro. Sophie estranha que pai e mãe, mesmo separados, ainda digam “eu te amo” um para o outro.
Aftersun não fala de um pai ausente, ou relapso, ou agressivo. Os dois são próximos. Dá para ver na maneira como ela se aninha no seu ombro, ou no braço dela que repousa sobre o dele. Em como o pai insiste que a menina repasse o filtro solar. Ou quando Calum diz para Sophie que sempre estará lá para ouvi-la, sobre namorados, sexo ou drogas. Sophie está naquela fase em que ainda é criança, mas está quase deixando de ser. Ela não quer brincar com crianças. Está mais interessada nos adolescentes que se pegam na piscina.
Mas Calum é humano. Irrita-se quando a filha não vê que ele jogou, no mar, os óculos de mergulho que custaram caro. E Sophie, também. Ela fica triste em momentos em que se sente um tanto abandonada pelo pai, não por maldade ou falta de caráter, mas, sim, porque ele não está dando conta. Ela está naquele momento de virada, em que começamos a nos descolar dos nossos pais e a vê-los como seres humanos cheios de falhas, de dores.
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Charlotte Wells fala de como nossas memórias de infância são fundamentais para a nossa formação. Mas também de como elas podem ser traiçoeiras. Os vídeos caseiros são a comprovação do que realmente aconteceu. As lacunas, no entanto, são muitas.
Sophie provavelmente não percebeu a tristeza de seu pai quando perguntou: “Quando você tinha 11 anos, o que imaginava que estaria fazendo agora?”. Talvez, se não tivesse uma filha, Calum estaria curtindo a vida com os amigos. Talvez fosse mais bem-sucedido profissionalmente e financeiramente. Ou talvez nem estivesse mais aqui, como ele chega a comentar casualmente com um instrutor de mergulho.
A menina não presencia os momentos em que Calum está sozinho, aqueles distantes do papai pateta que faz tai chi chuan ou dança engraçado. Sophie não presta atenção nos livros que ele levou para a viagem, nem sabe onde Calum esteve em uma noite em que ela não conseguia entrar no quarto.
Paul Mescal corta o coração como Calum. O ator, que ficou famoso pela série Normal people, é doce, engraçado e sorridente. Por isso, as dificuldades que ele vai demonstrando aos poucos são surpreendentes. Frankie Corio é seu par perfeito, uma atriz mirim que não mostra sinais de precocidade nem afetações. Ela só parece uma menina mesmo, que pode ser engraçada e boba, mas também consegue dizer coisas profundas, demonstrar carinho e irritação.
Passado nos anos 1990, o filme é pontuado por canções que arrepiam quem viveu a época e trazem novas camadas de significado, seja Tender, do Blur, ou Losing my religion, do R.E.M. E, embora possa parecer uma escolha óbvia, Under pressure, de David Bowie e Queen, é empregada aqui de maneira brilhante, embalando uma das cenas mais poderosas do ano, em que a Sophie adulta tenta se reconciliar com Calum, ou, de certa, forma vê-lo novamente. Despedir-se sabendo ser uma despedida.
Aftersun não é um filme que martela ideias e emoções, ou mesmo é explícito em relação ao que está acontecendo. Ele deixa algumas portas abertas para cada espectador, o que pode resultar em interpretações diferentes. Mas é daqueles que gotejam até provocar um transbordamento.
MARIANE MORISAWA, jornalista apaixonada por cinema. Morou em Los Angeles por sete anos e cobre festivais em todo o planeta.