Dos versos de Salmo, trazidos acima, vem o título de A rosa de ninguém (Die niemandsrose), quinto livro do poeta Paul Celan, publicado em 1963. A obra acaba de receber uma versão bilíngue com tradução do professor curitibano Maurício Mendonça Cardozo. Também de autoria de Celan, Ar-reverso (Atemwende), desta vez com tradução do poeta e professor Guilherme Gontijo Flores, está com lançamento previsto para breve.
Conhecida por seu catálogo com títulos do campo da ficção, filosofia, sociologia e áreas afins, a Editora 34 disponibiliza mais essas duas traduções para leitores e entusiastas brasileiros de poesia em língua alemã. Com textos produzidos entre 1959 e 1963, A rosa de ninguém é uma das principais obras do poeta romeno. No livro, que é um dos mais comentados e lidos de Celan, são constantes as referências a elementos da tradição judaica e literária, além de ecoar sua experiência da Shoah. “É um livro exigente e dolorido. E, por isso mesmo, incontornável”, sintetiza Juliana Pasquarelli Perez, na orelha da recente publicação.
Capa do livro A rosa de ninguém, publicado pela Editora 34. (Imagem: Reprodução)
Dividido em quatro ciclos, A rosa de ninguém é dedicado à memória do russo Óssip Mandelstam, um dos escritores que Celan traduziu e por quem nutria forte admiração. Esses quatro ciclos mencionados, no entanto, não são divisões com natureza essencialmente temáticas, já que “os poemas vão se construindo ‘em relação’ e, nesse mesmo movimento, vão dando corpo a cada ciclo até que se forme este livro em flor, que começa com um poema cavado na terra e se encerra com outro que projeta suas raízes no ar”, explica Maurício Mendonça Cardozo, em entrevista à Continente.
A rosa de ninguém é composto por poemas escritos em um período difícil da vida de Celan, quando o poeta enfrentava uma campanha difamatória – era acusado injustamente de plágio –, além de ter que lidar frequentemente com a crítica intensa em torno de sua obra. Tal conflituoso momento, portanto, reverberou nos escritos deste seu quinto livro.
Envolvido também em traduções de autores como Goethe e Thomas Mann, Maurício conta que os primeiros contatos com os textos de Paul Celan aconteceram na década de 1990. Mais do que apenas lê-los, seu interesse por traduzi-los seria quase imediato e espontâneo. “Era como se o fascínio, produzido pela experiência das primeiras leituras, surgisse junto com um desejo imenso de dizer aqueles poemas em português. (…) Nesse sentido, posso dizer, sem nenhum exagero, que comecei a traduzir Celan assim que comecei a lê-lo. Ou, em outras palavras, traduzir a poesia dele foi o melhor modo que encontrei de lê-la”, revela o curitibano.
A partir do início dos anos 2000, o tradutor começou a estudar o poeta romeno e a alimentar a vontade de publicar suas traduções. Em 2008, Maurício dedicou-se a alguns livros, como De limiar em limiar, A rosa de ninguém, Grade de palavra e Partida da neve, concluindo, entre 2011 e 2012, sua primeira versão de A rosa de ninguém. A partir daí, a ideia de publicá-lo, no Brasil, não viria com o intuito de desenvolver uma antologia em língua portuguesa, mas de desenvolvê-la em formato de “livro de poemas”. Essa decisão, inclusive, traz singularidade às recentes traduções de Mendonça e Gontijo, já que foram livros organizados pelo próprio autor, originalmente.
No texto de apresentação, Maurício Mendonça Cardozo estabelece um passeio por diversos momentos em que a crítica brasileira se debruçou sobre a obra do poeta romeno; traz informações acerca do contexto em que A rosa de ninguém foi produzido; além das próprias colocações após anos de estudos dedicados à literatura de Celan. Embora se trate de um breve recorte, como o próprio tradutor ressalta, esse percurso em torno da fortuna crítica lançada sobre a literatura de Celan traz desde contribuições mais antigas, como no texto assinado por Modesto Carone publicado na Folha de S. Paulo em 1973, até traduções e ensaios surgidos recentemente.
“Se levarmos em conta a quantidade de publicações produzidas nas últimas décadas sobre e a partir da obra de Paul Celan, especialmente em língua alemã, francesa e inglesa – mas também em várias outras línguas –, fica fácil perceber o quanto de interesse e atenção crítica a obra desse poeta é capaz de catalisar, o que faz dele um dos poetas do pós-guerra mais lidos, discutidos e estudados contemporaneamente”, situa o tradutor.
“No Brasil, embora a discussão de sua obra venha ganhando cada vez mais espaço nas últimas décadas, a recepção ainda está muito longe de alcançar o grau de efervescência desses outros contextos. Imagino que, do mesmo modo que os (outros) tradutores abriram um espaço para a recepção de Celan em língua portuguesa, também espero que a minha tradução e a do Guilherme Gontijo possam ajudar a despertar o interesse de novos leitores e a dar novo fôlego a leitores já familiarizados com sua obra”, pontua Maurício Mendonça Cardozo.
ERIKA MUNIZ, jornalista, com graduação em Letras.