Crítica

O Brasil ainda precisa redescobrir Chico Buarque

Em 'Caravanas', seu 23º álbum de estúdio, o artista apresenta arranjos sofisticados em letras que ainda fazem dele um dos maiores do país, mesmo em sua zona de conforto criativa

TEXTO Débora Nascimento

29 de Agosto de 2017

O cantor e compositor Chico Buarque está em seu 23º trabalho de estúdio

O cantor e compositor Chico Buarque está em seu 23º trabalho de estúdio

Foto Leo Aversa/Divulgação

O Brasil descobriu Chico Buarque em 1966. No dia 10 de outubro daquele ano, no II Festival da Música Popular Brasileira, A banda foi uma das vencedoras da competição. A outra era Disparada, de Geraldo Vandré e Théo de Barros. No entanto, ninguém sabia que A banda havia ganho do júri sete votos e Disparada, cinco. Ao ser informado do resultado, ainda nos bastidores, o jovem tomou uma decisão arriscada para quem estava apenas começando a carreira. Afirmou que, se o prêmio não fosse dividido, iria entregá-lo ao concorrente. Além da épica composição de Vandré, ele levou em consideração a arrebatadora performance de Jair Rodrigues, único negro no Teatro Record, lotado por pessoas brancas de classe média. Poucos souberam da atitude generosa do filho de Sérgio Buarque de Hollanda, que podia ser entendida também como rebeldia ou inconsequência. Naquele ano, Chico lançou seu primeiro disco, cuja capa é hoje o mais famoso meme do país. Virou um fenômeno instantâneo. Não somente o público e o meio musical ficaram fascinados, o meio literário também. Abismados, autores como Clarice Lispector, Rubem Braga, Nelson Rodrigues e Carlos Drummond de Andrade escreveram textos elogiosos sobre o advento Chico Buarque de Hollanda. Não havia dúvida, o Brasil estava apaixonado por aquele rapaz tímido de olhos azuis.

Apontado por Millôr Fernandes como a “única unanimidade nacional”, Chico Buarque, nas últimas cinco décadas, desfrutou da posição de orgulho brasileiro, artista sagrado e praticamente intocável, passando incólume pela vida de pessoa célebre. No entanto, desde que os ânimos se exaltaram e opiniões políticas se acirraram no país, pela primeira vez, nesses 50 anos de carreira, o compositor viu ser abalado o seu manto de proteção. Em dezembro de 2015, apareceu o vídeo em que dois homens o xingam na saída de um restaurante, e Chico, com tolerância e cortesia, rebate. Um deles ousou: “Você é um merda, todo mundo era seu fã”. No dia 29 de agosto de 2016, parte de seu público não gostou de vê-lo defender veementemente a então presidenta Dilma Rousseff. Ele foi ao Senado Federal para acompanhar o discurso e a histórica sabatina, na qual ela passou 13 horas respondendo a questões no julgamento final do seu processo de impeachment. No início de agosto deste ano, novamente o músico foi alvo de polêmica por conta de Tua cantiga, a primeira faixa liberada do álbum Caravanas, seu novo trabalho, que acaba de ser lançado.



Chico Buarque, visto como um talentoso bom moço, no início de sua trajetória, começou a desapontar conservadores já nos anos 1960, quando se descobriu que, por trás de suas letras líricas e aparentemente ingênuas, como A banda, havia ironia e críticas (A minha gente sofrida,/ Despediu-se da dor). Pedro pedreiro, daquele seu primeiro disco, não deixava dúvida. O rapaz, oriundo da elite intelectual do país, estava do lado do povo, dos oprimidos, das mulheres. Por isso, causou perplexidade, o fato de ser apontado, em 2017, como machista, devido ao trecho de Tua cantiga (Largo mulher e filhos). Chico estava sendo, talvez, mais exagerado do que Cazuza, que largaria “tudo, carreira, dinheiro, canudo” – e ninguém cogitou que este fosse mesmo “mendigar, roubar, matar”.

Na esteira da polêmica, surgiu de tudo, até um texto “estilo Buzzfeed” listando as “12 músicas mais machistas de Chico Buarque”. O autor da lista vai inserindo os trechos das letras e dando lição de moral no compositor. Mas nenhum desses detratores quis ponderar o óbvio: o “eu lírico”. A música Feijoada completa, se fosse lançada hoje, seria escorraçada. A ex-ministra da Cultura Ana de Hollanda, em post no Facebook, no dia 11 de agosto, defendeu o irmão e lembrou: "Há décadas a Folha de S. Paulo – na época rompida explicitamente com Chico – costumava contratar garotos recém-formados para escreverem críticas detonando os trabalhos dele, declarando ser um artista ultrapassado, datado, medíocre etc."

Os dias atuais parecem não mais comportar as sutilezas e as ironias de Chico Buarque. É preciso explicá-las, para não ser réu no Tribunal do feicebuqui (Tom Zé). Má vontade, patrulhamento exacerbado, sabe-se lá. Mas é chocante que muita gente, por exemplo, tenha acreditado e compartilhado o vídeo em que o compositor carioca afirma (com ironia) comprar suas músicas de um morador da favela chamado Ahmed. A “confissão” está no DVD do próprio artista, Desconstrução.

Os mesmos críticos de Chico Buarque não quiseram exaltar, por exemplo, a grande canção do disco, a faixa-título Caravanas. A letra mostra que ele ainda é um dos maiores autores do país, um mestre das palavras e das rimas. Na letra, faz um paralelo entre os moradores das favelas que “invadem” a praia com os muçulmanos – Com negros torsos nus deixam em polvorosa / A gente ordeira e virtuosa que apela / Pra polícia despachar de volta / O populacho pra favela / Ou pra Benguela, ou pra Guiné. A melodia é inspirada no standard do jazz Caravan, de Duke Ellington, com um toque de maculelê no beatbox de Rafael Mike (grupo de funk Dream Team do Passinho) e cordas regidas pelo violonista e produtor do disco Luiz Cláudio Ramos. Ouro puro.



Nesse seu 23º álbum de estúdio, Chico apresenta arranjos sofisticados, como na própria Tua cantiga, que remonta ao lundu, ritmo africano que sofreu embranquecimento no final do século XIX, como um afoxé lento; Massarandupió, uma das melhores do disco, traz bela melodia de seu neto Chico Brown (filho de Helena Buarque e Carlinhos Brown) sobre a letra saudosista do avô.

Ao universo dos personagens buarqueanos, mulheres, malandros, sambistas, despossuídos, operários, crianças de rua, ele acrescenta uma personagem lésbica no Blues para Bia, uma das musas do álbum, presentes em faixas como Desaforos e Casualmente, bolero composto para um disco que Omara Portuondo faria no Brasil. Com nove músicas, Caravanas traz duas regravações: Dueto (de 1979, cantada com a neta Clara Buarque, no lugar de Nara Leão) e A moça do sonho (Edu Lobo/Chico Buarque), feita para o musical Cambaio (2001) e gravada por Maria Bethânia.

Ao contrário de seu contemporâneo, Caetano Veloso, que sempre se reinventa e ousa trabalhar com diversos gêneros musicais, Chico, em Caravanas, permanece na sua zona de conforto, não se arrisca, mantém a sonoridade que vem burilando nestas cinco décadas e que ninguém consegue imitar. Como diria o próprio baiano, Chico “anda pra frente arrastando a tradição”. Cantando coisas de amor. Aos 73 anos, Chico Buarque, não mais aquele rapaz tímido de olhos azuis do famoso meme, precisa ser urgentemente redescoberto pelo Brasil. 

O disco está disponível nas plataformas física e digital (Spotify, por exemplo).

DÉBORA NASCIMENTO, jornalista, repórter especial da Continente e colunista da Continente Online.

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