Crítica

Fazer das ruínas um poema

Na nova exposição de Kilian Glasner, um retorno ao próprio trabalho e à temática do fogo agora abriga a surpresa e o espanto frente a um acontecimento inesperado

TEXTO Bianca Coutinho Dias

28 de Outubro de 2021

O artista desenha com o carvão que sobrou da madeira queimada...

O artista desenha com o carvão que sobrou da madeira queimada...

Imagem Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online] 

A exposição Macrocosmos, microcosmos ou, a cosmogonia dos incêndios, de Kilian Glasner – em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo até o dia 22 de novembro –, acontece cinco meses depois de um desastre que atravessou a vida do artista: a casa projetada e construída por seu pai, no litoral norte de Pernambuco, pegou fogo e queimou até o fim. Do projeto inicial da exposição, que consistia em pensar questões do espaço, instalou-se o vazio: a casa, as relíquias de sua infância e as obras que estariam expostas se tornaram pó, poeira e carvão.  

Diante do inesperado, do real avassalador que desconfigura todas as certezas e frente às chamas, Kilian encarna um ato que transfigura a dor: o artista toma posse dos restos e do impacto estético e sensível que é ver queimada a memória de uma vida, e assim desenha com o carvão que sobra da madeira queimada. A incorporação desse elemento torna-se fonte de uma invenção que culmina em explosões luminosas com outros pigmentos mais leves, numa passagem que vai do choque à força pictórica das imagens. 

Em um belíssimo ensaio, George Didi-Huberman toca a questão de maneira abissal, colocando desde o princípio uma interrogação fundamental: “Quando as imagens tocam o real?”. O título do ensaio é uma afirmação em aberto e, também, uma convocação. Seu pensamento parece se avizinhar do que Kilian Glasner propõe. O trabalho que se erige é fruto antes de uma abertura e uma queda: diante da tragédia que consumiu a casa do pai e a história de sua vida, o artista sustenta um ato, uma travessia pelas ruínas, fazendo explodir, ao final, os destroços de um poema, uma invenção ética à altura do que pode a arte frente ao trauma. 

Partindo da hipótese de que a imagem arde no contato com o real, Didi-Huberman levanta outra questão: que tipo de conhecimento pode dar lugar à imagem? Atravessando os postulados de Aby Warburg e Walter Benjamin, entre outros, ele argumenta que a imagem não é um simples corte praticado no mundo dos aspectos visíveis. É uma impressão, um rastro, um traço visual, e é essa dimensão da potência dos vestígios de uma vida que Kilian sabe capturar nas relações íntimas e secretas das coisas, nas correspondências enigmáticas daquilo que resta depois da tragédia. Alguns desses objetos tornam-se parte da exposição: uma xícara, uma colher, uma escultura de bronze e também restos de carvão. Um vídeo mostra, logo de entrada, ruínas da casa com som de madeira queimando: o corpo da casa torna-se matéria pulsátil e escombro vivo de onde ainda se pode inventar um futuro.

 Dos resíduos surge o carvão incorporado no gesto de desenhar. O desenho pode reter algo da história e, com ele, se esboça uma invenção que percorre toda a exposição. Entre o primeiro gesto, passando pela eleição de objetos que sobreviveram e até chegar às explosões de intensa beleza formadas por pigmentos coloridos, um novo espaço se configura, uma outra morada e um outro mundo se colocam. Se no início o que está em jogo é a casa que arde em chamas, no decorrer da exposição acontece uma transmutação que culmina em imagens sublimes que irrompem com pigmentos que remetem ao cosmos. 

O olhar se desloca do chão ao céu. Walter Benjamin dá às constelações um espaço no desejo humano como algo que cria no olho uma fresta para a luz. Essa atitude implica em olhar um tempo metafísico que as constelações trazem e inscrevem. Diante do real avassalador da destruição, Kilian Glasner desloca o olhar para o céu, em uma postura como a evocada por Didi-Huberman que assinala que “tomar posição consiste de um gesto, um movimento do presente para um destino futuro, é resistir apesar de tudo a todo temor de (ainda) não saber o que se busca e do que será achado”. 

Trata-se de afrontar algo, mas também de olhar o fora-de-campo que existe.  Ao tatear os rastros que permanecem, Kilian Glasner aposta na invenção diante do fracasso, abrigando o impasse estruturante de ver queimar os objetos, e também de refundar uma existência de forma luminosa, entre incêndio e cosmos, carvão e pigmentos. Trata-se de inventar o poema onde ele escapa, de encarar o instante decisivo, assim como fez Flávio de Carvalho na Série trágica, composta de nove desenhos que retratam os últimos dias de vida de sua mãe. 

Com Kilian, do momento cortante surgem 30 obras com a temática do fogo e do desastre. Do pó, pastel e do carvão novas superfícies interpõem. A ruína é encarnada e uma utopia surge à maneira evocada por Walter Benjamin sobre a obra Angelus novus, de Paul Klee: “Há um quadro de Klee que se chama Angelus novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente”. 

Kilian Glasner é um artista que não foge dessa aporia: um retorno ao próprio trabalho e à temática do fogo, que já apareceu antes em seu percurso, acontece agora de maneira a abrigar a surpresa e o espanto frente ao acontecimento inesperado. A presença enigmática do fogo em trabalhos anteriores agora retorna no real, precipitando outro espaço, criando poesia do resto. A alegoria do fogo comparece como sacrifício e purificação e o artista capta o sublime diante do trágico. Uma obra se forja entre natureza e cultura, íntimo e político, casa e mundo. Diante do repentino estupor, um artista reescreve a vida e a história e, como no poema de Octavio Paz, constata a efemeridade de tudo e a urgência de responder com a força da criação: “Sou homem: duro pouco e é enorme a noite. Mas olho para cima: as estrelas escrevem. Sem entender compreendo: também sou escritura e neste mesmo instante alguém me soletra”. 

BIANCA COUTINHO DIAS, psicanalista e crítica de arte.

Publicidade

veja também

Uma carta de amor e nossa coleção nacional de escombros

Juan José Saer

‘Tár’, uma reflexão sobre poder