Crítica

Bienal de Veneza: o papel da arte e a estetização do sofrimento

Sob o título 'Que você viva em tempos interessantes', uma das principais bienais de arte contemporânea do mundo trouxe questões sobre a arte frente ao sofrimento social

TEXTO EVÂNIA REICH E CLAUDE REICH, DE VENEZA

25 de Novembro de 2019

Barco que afundou com imigrantes africanos foi exposto em Veneza pelas mãos de Christoph Büchel

Barco que afundou com imigrantes africanos foi exposto em Veneza pelas mãos de Christoph Büchel

Foto Tiziana Fabi/AFP

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Entrar na Bienal de Veneza deste ano sugeriu que poderia haver um mundo de esperanças através da arte. May you live in interesting times (Que você viva em tempos interessantes) foi o título do evento, que terminou neste último domingo (24/11). Muito sugestivo. A nós, veio a ideia de que a escolha do título daria a entender que a arte poderia salvar o tempo que nos devora; que seria capaz de nos contar uma história ainda feliz, de nos mostrar o mundo de outra maneira. Talvez a arte possa efetivamente apontar outras realidades e perspectivas, mas isso significa que seja capaz de transformá-las?

Já na primeira parte da exposição, no pavilhão Arsenale, nos deparamos com o desalento. A arte é, sim, capaz de nos contar uma história, mas ela não nos engana. As sucessões de salas com trabalhos de 70 artistas de diferentes países – alguns já consagrados e outras verdadeiras descobertas – nos deu a percepção de que uma certa narrativa estava sendo criada. A história não é feliz, não tem happy end: já estava claro que o tema comum de grande parte dos artistas escolhidos pela curadoria era o sofrimento. Um sofrimento exposto, muitas vezes, através das histórias de vida dos indivíduos, como uma repetição em diferentes partes do globo. O que significa viver em tempos interessantes e ainda assim se dar conta do enorme sofrimento no mundo? O que Ralph Rugoff, curador desta bienal, quis nos dizer com este título?

Começamos com a série fotográfica de Sohan Grupta, intitulada Angst e composta por retratos noturnos de pessoas vivendo em extremo estado de vulnerabilidade, em uma periferia de Calcutá, na Índia. Poderia ter sido uma de nossas periferias brasileiras, mas o que está em jogo aqui é a interação do artista com o sujeito diante de sua câmera fotográfica – o próprio Grupta considera o seu trabalho como o resultado de sua interação com os sujeitos fotografados; há um envolvimento de confiança entre o artista e o objeto da arte. Através das imagens, ele narra violências sexuais, abusos e abandonos domésticos não como fotojornalismo instrumentalizado, mas, antes, como uma forma de potencializar, ou mesmo dramatizar, as expressões dos seus indivíduos em estado de sofrimento. Alguns fingem o riso, despropositado para um cenário tão melancólico e sombrio; outros mostram a dor não disfarçada em suas faces. Impactantes e dolorosos são os retratos de Grupta.




Imagens da série Angst. Fotos: Sohan Grupta/Reprodução

Já a artista nigeriana Njideka Crosby apresentou no pavilhão Arsenale retratos pintados de pequenos tamanhos, monocromáticos, cada um numa cor diferente. Ao primeiro olhar, as imagens parecem sem vida, mas, pouco a pouco, o espectador sente uma emoção provocada pela humanidade de cada um dos sujeitos retratados, cuja pele negra emerge delicadamente da superfície. Nosso olhar de pessoa branca não é acostumado a ver retratos pintados de pessoas que não-brancas, porque toda história da pintura ocidental é quase exclusivamente uma história branca.

O filme do artista afro-americano Arthur Jafa, The white album (O álbum branco), exposto no pavilhão Giardini, abordou justamente o tema do racismo sob uma perspectiva documental e poética. O que vimos era contrastante: um documentário cuja estética “perfeita” estava a serviço de um racismo cru e violento. Por mais potente que o vídeo pareça na sua denúncia ao racismo da sociedade branca dos Estados Unidos, podemos sugerir que ele é somente potente pelo contraste que cria entre a mensagem e a forma. Porém, é possível nos perguntar: qual é a eficiência desta denúncia? Um livro, um artigo contra o racismo não teria maior influência? Não tocaria um público mais amplo? A nós, observadores, nos veio um grande incômodo: nenhuma destas obras pode mudar o mundo. A arte faz perguntas, mas não é ela que vai conseguir responder.

Arthur Jafa, The white album
Projeção de The white album, de Arthur Jafa, na Bienal de Veneza 2019.
Foto: Reprodução


Ocupando um espaço central no Arsenale, com o poderoso tríptico intitulado 2019, o pintor afro-americano Henry Taylor expôs, por sua vez, uma abordagem ao mesmo tempo histórica, religiosa (a forma do tríptico) e atual acerca do tema do racismo nos Estados Unidos. O sofrimento da violência gerada contra os negros naquele país é, aliás, o foco das obras de Taylor. Já o pintor queniano Michael Armitage também explorou o tema do sofrimento na ampla sala que lhe foi concedida. Trata-se de uma fusão entre paisagens e figuras a tal ponto que umas se confundem com as outras. Mas podemos ver que cada pintura conta a história de um acontecimento político. No quadro que retrata uma cena de uma campanha eleitoral no Quênia, a obra mistura a realidade violenta da política local a uma linguagem onírica, um tipo de surrealismo na maneira de pintar os fatos.


Tríptico 2019, de Henry Taylor. Foto: Reprodução

CONFLITOS
Além do sofrimento, outro tema indiscutivelmente presente na Bienal de Veneza este ano foram os conflitos entre civilizações atravessando muitas das obras expostas. Seja por meio da exposição do sofrimento social ou dos conflitos em si, que geram inevitavelmente dor às suas vítimas, a bienal teve um objetivo bem-definido: o de nos indagar sobre que tipo de sociedade estamos produzindo e que mundo é este no qual estamos inseridos e que nos atravessa de forma tão violenta. A mostra foi uma maneira de se valer da arte para problematizar o tempo e o mundo no qual vivemos, sem necessariamente recorrer ao “belo”.

Exemplo disso foi a escolha pela obra chocante do artista suíço-islandês Christoph Büchel. O trabalho é o barco que afundou em 2015, matando mais de 700 imigrantes africanos que tentavam chegar à Europa. Como um “ready-made”, ou atestado da tragédia, o objeto foi exposto separado do público por uma corda, insistindo sobre o caráter de “obra de arte” que não se pode tocar – como ocorre com as peças sacralizadas de Museu do Louvre, em Paris, por exemplo. A obra foi bastante criticada pela imprensa, que questionou a validade de tornar uma tragédia que matou dezenas de africanos um espetáculo para ricos ocidentais (no geral, o maior público da bienal). No entanto, poderíamos justamente nos perguntar se alguém ainda lembraria, em 2019, dessa tragédia se não fosse a simples e brutal presença daquele esqueleto de barco enferrujado. Eis um exemplo típico das perguntas feitas na 58ª Bienal de Veneza, por meio de suas obras.

O pavilhão que ganhou o prêmio foi o da Lituânia. Uma obra potente, um tipo de ópera sobre o aquecimento global e as maneiras como crises horríveis acontecem na vida cotidiana sem que a percebamos. Trata-se de uma instalação dos artistas Rugilė Barzdžiukaitė, Vaiva Grainytė e Lina Lapelytė onde o espectador fica em um prédio no segundo andar, olhando para baixo e vendo pessoas em trajes de banho deitadas sobre toalhas na areia, como se estivessem na praia. De repente, escutam-se cantos, mas não se sabe precisamente de onde surgem. O conjunto Sun and sea (Sol e mar) gera uma atmosfera opressiva, mas, ao mesmo tempo, poeticamente melancólica. Uma praia sem mar; sons desvinculados, aleatórios. A pergunta da obra talvez seja: será este o nosso futuro próximo?

Pavilhão da Lituânia. Bienal de Veneza 2019
Intalação Sun and sea. Pavilhão da Lituânia, Bienal de Veneza 2019.
Foto: Reprodução


BRASIL
Não poderíamos deixar de falar sobre o pavilhão do Brasil. No espaço, estava o trabalho Swinguerra, dos artistas Bárbara Wagner e Benjamin De Burca, dupla escolhida por Gabriel Peres Barreiro, curador da última Bienal de São Paulo (2018). Bárbara e Benjamin projetam sua arte através de grupos artísticos-musicais da periferia do Recife, em particular – grupos que alguns de nós, brasileiros, nunca ouvimos falar. As danças coreografadas representam a cultura dos próprios artistas dançarinos – incluindo o jeito de se vestir e impor o próprio corpo – e provocam um olhar para o seu próprio contexto. O trabalho se inscreve também na narrativa da bienal, isto é, apresenta um contraste entre a estética e a realidade vivida, sendo isso a própria poética. As danças são filmadas com uma atenção à forma, enquanto seus protagonistas vivenciam a realidade de serem minorias (transexuais, funkeiros, jovens negros da torcida de futebol). E assim a dupla revela um Brasil que quase ninguém vê.

Com tudo isso, podemos dizer que a Bienal de Veneza de 2019 foi mais do que uma “simples” exposição de arte, foi uma imersão no mundo atual criada por visões e culturas que frequentemente se chocam. Diríamos que ela nos fez muitas perguntas, perguntas às vezes repetitivas, que nos incomodam: a nós, visitantes, mas também ao próprio artista, sobre o próprio papel da arte em nossas vidas. É ela capaz de mudar o mundo, ou é simplesmente um espetáculo? Tem ela a força apenas de um diagnóstico, ou faz igualmente um prognóstico emancipatório?

Surgiu ainda uma outra questão: a estetização do sofrimento, que nos faz pensar na estetização da guerra nos livros de Ernst Jünger. A impressão é de que essa estetização tem o efeito de aniquilar a mensagem dos artistas: as obras são apresentadas “musealmente” em um âmbito limpo, impecável e elegante. O próprio prédio restaurado é uma imagem higienizada. Como dissemos antes, o público que frequenta esta bienal é, em sua maioria, branco, elitizado, culto.

Os artistas também são, em grande parte, consagrados pelo mundo da arte e aceitam suas regras institucionais, mercadológicas, capitalistas. Em inglês, existe uma expressão para um filme que ajuda o expectador a se sentir melhor, a esquecer seu sentimento de culpa: a feel-good movie. A bienal teve um pouco disso, uma “feel-good bienal”.

Nesse momento, nos vimos diante de um paradoxo, a partir de uma contradição fundamental entre a mensagem, os “conteúdos”, e a maneira, a forma como a Bienal de Veneza apresentou isso. Entre a mensagem e o público-alvo do evento. É simbólico que a única obra que realmente tenha causado comoção, o barco de imigrantes, trate justamente desta contradição que implica a estetização da miséria. O artista que realmente esteve consciente desta contradição: ele coloca cordões para separar a “obra” do público, em um gesto irônico que todos os outros artistas não tiveram – ou não “puderam” ter diante daquele contexto.

Outra obra que conseguiu apresentar um prognóstico emancipatório foram as jpa mencionadas coreografias registradas por Bárbara e Benjamin, ao mostrar a dança como resposta a uma dada realidade opressora. Como se a arte aqui realmente desenvolvesse seu poder, partindo não somente dos artistas que olham para essa dada realidade somente, mas dos artistas que a vivem.


Frame de Swinguerra, de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca.
Imagem: Reprodução


EVÂNIA REICH
é doutora em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisadora pós-doutorado sobre o tema do sofrimento social.

CLAUDE REICH é marchand e colecionador, especialista em arte contemporânea.

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