Sobram razões para ler Hamlet: mortes violentas, adultério, um provável suicídio, um duelo dentro de uma cova, aparições fantasmagóricas... Mas será que um encontro com a nova criação do grupo Magiluth, o espetáculo Dinamarca, é assim excitante como a leitura de uma tragédia shakespeariana? Sim, você certamente será fisgado pela mais nova obra do Magiluth (PE), que, nesta primeira temporada, fica em cartaz no Teatro Marco Camarotti (Recife, Santo Amaro) até domingo (6/8).
Em Dinamarca, Hamlet é um herói desarmado empurrado para o abismo. Agarrado à cintura da mãe, apequenado, o príncipe dinamarquês é tratado como uma criança malcriada. Veja, meu bebê, tudo parece tão simples, manter-se no luto por pura teimosia, Hamlet! Ser ou não ser, essa não é mais a questão, meu querido. O destino do bem é caminhar para o abismo, ouça a mamãe, não estrague a minha festa.
O caráter de Hamlet não nos foi dado com clareza por Shakespeare, certamente ele quis assim. As interpretações sobre a intenção fundamental do personagem se amontoam ao longo dos anos. Shakespeare fez Hamlet assim: complexo, misterioso, monumental. A. C. Bradley sugeriu que dos personagens shakespearianos, Hamlet seria o único com estofo para ter escrito toda a obra do seu criador. De Shakespeare, ninguém sai impune! Não serei eu o algoz. Afinal, por serem o resumo e a crônica do nosso tempo, os atores devem ser bem-tratados. Lucas Torres, Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Mário Sérgio Cabral e Giordano Castro, que também assina a dramaturgia, merecem tomar o melhor dos champanhes. A direção é de Pedro Wagner, a quem também ofereço uma taça do melhor dos champanhes.
Bertolt Brecht, em seu Poema do exílio, nos aconselha a cantar, em tempos sombrios, canções sombrias. Adianto, Dinamarca faz uma brilhante crônica do momento nada alentador que o Brasil está passando. A sua estreia não podia ter sido em melhor data: quarta-feira, 2 de agosto de 2017. Nessa data, o país assistiu à rejeição da denúncia por crime de corrupção, apresentada à Câmara dos Deputados pela procuradoria-geral da República, denúncia feita contra o impopular presidente em exercício. Mas a peça está longe de ser panfletária, ela é urdida da matéria em que os sonhos são feitos. Dinamarca é uma canção sombria.
No chão, um retângulo delimita o espaço do jogo. Há espectadores por todos os lados. Ao centro, suspenso, um lustre de lâmpadas incandescentes. Sobre uma mesa dobrável, um bolo, uma máquina fotográfica, uma garrafa de champanhe e muitas taças. Do urdimento até o chão, uma planta, uma trepadeira de plástico que é regada durante a peça. Dois microfones, um no chão e outro no pedestal. Os atores estão vestidos para uma festa, há um certo desalinho nos seus trajes.
Estamos em uma festa de casamento e tudo parece alegre e perfeito. Tomamos champanhe, e o clima é de descontração e civilidade. Ao que parece, viveremos um momento hygge, palavra de origem dinamarquesa que contém o segredo do povo mais feliz do mundo. Hygge pode ser traduzido como algo aconchegante, acolhedor. Esse é o clima que sentimos no início da peça. Esse clima é perseguido pelos convivas durante o espetáculo, mas a cada nova tentativa de deixar tudo hygge, eles acabam cavando mais um palmo dentro das próprias covas.
O público se acomoda. Na cena, gradativamente, os sorrisos se transformam em gargalhadas histéricas, cheias de agonia e pavor. Ninguém mais se ouve, os atores passam a dançar fora do tempo porque não são mais capazes de ouvir a música. Qualquer semelhança com a nossa realidade é mera coincidência. A dimensão sagrada dos ritos convivais perde a importância, os cantos de celebração e de louvor são substituídos pelo barulho, e a festa não é mais um modo de fazer e de celebrar juntos. A festa passa a ser um exercício violento de destruição e de desperdício.
Nós queremos ser felizes. Lembro-me de Pascal, quando diz que a felicidade é o motivo de todas as ações de todos os homens, inclusive dos que vão se enforcar. Em meio ao festim, os atores discutem geopolítica, embaralham o mapa-múndi e nos fazem perceber que somos cidadãos do mundo, não importa a pátria que nos pariu, Dinamarca, Zimbabwe ou Brasil.
No ápice de cada discussão, uma afirmação inquietante ou até mesmo a queda de uma bandeja interrompe o fluxo da ação e provoca um profundo silêncio. Na cena contemporânea, o silêncio é mais do que uma pausa entre falas. A noção de silêncio difere da noção de não dito. O silêncio se oferece à compreensão e à contemplação, se impõe como discurso, significa. Na peça, os repetidos silêncios parecem indicar que o lugar da verdade está fora do discurso. Já que o não ser, a falsidade, se engendra por meio da logorreia interminável dos personagens.
Além do silêncio, na peça, há silenciamentos. As relações de opressão geram silenciamentos. Em um dos momentos da peça em que a ordem parece restabelecida e o público dança uma valsa com os atores, a rainha, mãe de Hamlet, possessa, decide acabar com tudo. Ela está acima da lei, a sua autoridade chega a ser constrangedora. Dá ordens até aos objetos, ordena que uma taça de champanhe caída torne a ficar de pé. Em vão, o príncipe dinamarquês tenta enfrentá-la: “Fragilidade, teu nome é mulher!” A rainha, furiosa, esbraveja: “Você não sabe nada sobre mulher! Cale-se!”.
Como já deu para notar, Dinamarca não é uma adaptação da peça Hamlet, de Shakespeare. A tragédia shakespeariana foi o gatilho deflagrador da obra do Magiluth. Mas, para alentar os corações e os ouvidos ávidos pelas palavras do dramaturgo inglês, fragmentos da mais popular das tragédias escritas por Shakespeare não cessam de brotar durante o espetáculo. Como os flashes disparados pela máquina fotográfica utilizada em cena pelos atores, o texto de Shakespeare ilumina o enredo da peça e nos auxilia na contemplação dos belos desvios criados pelos atores de Dinamarca.
Não há esperança na distopia magiluthiana. O desespero que se agrava a cada cena nos ajuda a compreender a urgência de certas questões ligadas à felicidade e ao bem viver, pois, como disse o príncipe dinamarquês: “A vida do homem dura um nada, apenas”.
Beckett acena para nós no final do jogo. Todos estão mortos, e o fantasma do rei nos conta uma história desoladora. Não há mais energia no mundo e tudo está cadaverizado. O pó originário, o início e o fim de tudo, cobre o que restou da humanidade. O espetáculo termina com um longo silêncio. Lembrei-me de Grotowski, mestre polonês, de quando criava espetáculos para não ser aplaudido. Voltamos para antes do existente, e as trevas cobriam tudo. Estamos mergulhados em um profundo e impenetrável abismo.
DURVAL CRISTÓVÃO, diretor e ator teatral, professor de Teatro e Filosofia.