Comentário

Who is Anitta?

Investindo na carreira internacional, cantora alcançou feito inédito para a música brasileira, com primeiro lugar mundial no Spotify e Billboard, mas ainda enfrenta diversos preconceito em seu país

TEXTO Erika Muniz e Antonio Lira

05 de Abril de 2022

Após singles, Anitta prepara-se para lançar o álbum 'Versions of me' no dia 12 de abril

Após singles, Anitta prepara-se para lançar o álbum 'Versions of me' no dia 12 de abril

Foto Marco Ovando / Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

“Anitta, Anitta, so glad to meet ya!
I'm big Snoop Dogg, and I'll be the feature”
(Snoop Dogg em feat. Com Anitta, Ludmila e Papatinho em Onda diferente)

“Mas pra cima de mim pra quê tanto veneno?
E eu posso lá ficar americanizada?
Eu que nasci com o samba e vivo no sereno
Topando a noite inteira a velha batucada?”
(Carmem Miranda em Disseram que eu voltei americanizada)

Em novembro de 2021, a cantora e compositora Anitta lançava Envolver. Se você esteve por dentro dos assuntos mais comentados nas redes sociais e em alguns veículos midiáticos, nas últimas semanas, sabe que esse é um dos hits do momento. Não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Com essa faixa de três minutos e treze segundos, a artista nascida e criada em Honório Gurgel, bairro da Zona Norte carioca, levou, no dia 25 de março, uma música brasileira ao #1 do ranking Top 50 Global na plataforma Spotify. Foi a primeira vez que uma brasileira alcançou tal feito. Envolver é o quarto single do álbum Versions of Me, com lançamento previsto para este mês de abril. Outros singles que compõem o repertório desse novo trabalho também são Me gusta (2020), uma parceria com Cardi B e Myke Towers; Girl from Rio (2021), em que ela ressignifica a famosa melodia do clássico Garota de Ipanema (1962), de Tom e Vinícius; e Faking love, um feat com a rapper Saweetie.

Enquanto Anitta trabalhava na divulgação do quinto single do álbum, Boys don’t cry, cujo percurso estratégico contou com uma apresentação da cantora seguida de uma entrevista no talk show norte-americano The Tonight Show starring Jimmy Fallon – um dos mais importantes do entretenimento estadunidense –, o público da América Latina hispânica tratava de engajar, principalmente através do TikTok, uma das faixas anteriormente lançadas pela carioca. Faz parte da coreografia oficial de Envolver um passo no qual a cantora rebola enquanto flexiona os braços e mantém as duas mãos apoiadas no chão. Na era do TikTok, as sequências coreográficas que compõem as performances das divas pops e seus hits constantemente têm sido reencenadas por grande parte do público e também vêm sendo responsáveis por fazer com que determinadas músicas alcancem maior visibilidade e entrem para as listas de mais ouvidas nas plataformas. Nos chamados challenges (desafios, em inglês), usuários da rede são desafiados a reproduzir a dancinha do momento. No caso de Envolver, o movimento que ficou conhecido como el paso de Anitta acabou viralizando e sendo reproduzido por milhares de fãs da artista, influencers e usuários das redes sociais em suas contas no app.

Antes das plataformas de streaming, as métricas que determinavam o sucesso ou não de uma canção se relacionavam a vendas de discos e reproduções em rádio. A Billboard Hot 100, principal parada de sucesso do mercado de música dos Estados Unidos reproduziu historicamente, como sabemos, a dominação geopolítica e cultural do país ao redor do mundo, fomentando uma certa hierarquia que beneficiou artistas de língua inglesa – e, por muito tempo, homens brancos. Mesmo que, com as importantes lutas de diversos grupos sociais, o topo dessas listas e premiações esteja começando a ser mais ocupado por mulheres, pessoas negras, latinas, asiáticas e artistas LGBTQIA+, a maioria que alcança os primeiros lugares da música (e do cinema) no mundo, é formada majoritariamente por artistas anglófonos. O K-Pop, que tem rompido a barreira do idioma, também se inscreve nessa geopolítica musical, afinal, trata-se de um gênero com diversas referências trazidas do pop ocidental e que vem de um país com estreitas relações com os Estados Unidos.

Envolver, que hoje é uma das músicas mais tocadas no mundo inteiro, é a primeira canção de uma artista brasileira a alcançar o topo de uma lista importante da indústria fonográfica contemporânea. Nessa faixa, porém, Anitta está cantando em espanhol. A língua hispânica já faz parte do repertório da cantora há alguns anos, assim como o inglês e, é claro, sua língua materna, o português. Em mais de 50 anos desde sua criação, a já citada – e desejada – Billboard Hot 100 contou com apenas 20 artistas de língua não inglesa em seu top 10. Desses, 7 cantavam em espanhol; 5 em coreano; 3 em alemão; 2 em italiano; 2 em francês e um em japonês. No caso do Spotify, essas métricas estão mais diluídas, pois, a cada dia, as mudanças na forma de consumo de música modificam quem sobe e desce nesses rankings. A própria importância do ranking da plataforma no mercado evidencia o quanto o streaming – de empresas como Spotify ou a Netflix – se tornaram habituais e cotidianos na forma como consumimos cultura audiovisual. Agora, é possível chegar ao top #1 do mundo apenas viralizando na internet o que, evidentemente, não é uma tarefa fácil.

Aos poucos, o sucesso da coreografia do refrão de Envolver contribuiu para que a música fosse ganhando cada vez mais espaço nas playlists de ouvintes de países como Chile, México, Venezuela e Colômbia, por exemplo. Nesse último, inclusive, um vídeo de crianças dançando Envolver em um ônibus escolar se popularizou. E é claro: com um grande número de visualizações, vem um grande número de comentários. Entre esses elogios e críticas direcionadas ao seu recente trabalho, Anitta foi, por exemplo, alvo de machismo por parte do apresentador venezuelano Osman Aray. Ao comentar o viral do el paso de Anitta, Aray fez uma postagem no Instagram onde afirmava que “não ficava claro se algumas mulheres querem respeito ou querem ser desrespeitadas”. Em resposta, a cantora questionou, no post do apresentador – que foi apagado posteriormente –, se o que ele queria dizer era que mulheres “dançando assim ou com pouca roupa, dariam-lhe o direito de serem desrespeitadas”. Declarações como essa, no entanto, não são exatamente novidade no tocante à vida e obra de Anitta – e de outras figuras do pop como ela.

Para trazermos alguns exemplos recentes, um do campo da política e outro da mídia brasileira, o ex-ministro do agronegócio, ou melhor, do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ao reagir a uma publicação da cantora, na qual ela criticava sua pré-candidatura à Câmara Federal, insinuou que a cantora não saberia soletrar a palavra “paralelepípedo”. A ex-jogadora de vôlei e agora também comentarista política da Joven Pan, Ana Paula Henkel, por sua vez, fez questão de trazer à tona a vida particular de Anitta para tentar deslegitimar a artista ao ser perguntada sobre um assunto completamente distinto: a campanha que a cantora vem empreendendo para estimular os jovens de 16 a 18 anos a tirarem seu título de eleitor e para eles votarem contra o atual presidente brasileiro.

Em trecho de sua fala, disponível no canal do YouTube da emissora, Henkel declara, sobre Anitta: “Ela deu uma entrevista recente num canal, naqueles programas de fim de noite. E ela, então, se gabou de ter um namorado por onde ela passa, que ela sai beijando todo mundo, de uma maneira muito, digamos, extrovertida. (risos). E disse que também afirmou que, numa certa ocasião, contratou um dançarino porque queria ter relações sexuais com ele. (...) Agora, Anitta quer fazer campanha para tirar Bolsonaro, ganha repost do TRE, só que ela precisa, primeiro, entender de política. Entender como funciona, pelo menos, política one-oh-one, aquela primeira aula de política sobre os braços do governo, sobre as instituições”.

Em 2018, Anitta, cujo trabalho é acompanhado por um fandom formado por muitas pessoas LGBTQIA+ – movimento que caracteriza a trajetória de divas pop como ela – foi criticada por não se posicionar de imediato contra o então candidato Jair Bolsonaro que, em toda a sua carreira política, carrega uma gama infindável de declarações racistas, misóginas e lgbtfóbicas. De lá pra cá, ela não só tem falado em diversas ocasiões e deixado evidente sua oposição ao atual governo brasileiro, como também, em 2020, começou a ter aulas públicas sobre política com a influenciadora e comentarista Gabriela Prioli.

Foi baseada em uma dessas aulas que Henkel teceu suas críticas em relação ao entendimento de Anitta sobre a política institucional. Ora, uma artista mainstream, de projeção internacional como Anitta utilizar sua rede social, expondo suas dúvidas e questões a respeito da política institucional brasileira e oportunizando que seus seguidores aprendam junto com ela, em um país como o Brasil, cuja população, independente da classe social, não costuma ter uma cultura de discutir política de maneira mais técnica, é também um sintoma das reconfigurações que o entretenimento vem experimentando nos últimos anos. Além disso, os embates da cantora com a família Bolsonaro e seus ministros, através das redes, também vêm repercutindo por todo o mundo e contribuindo com a imagem negativa que o planeta tem do atual chefe de Estado brasileiro.

Outros argumentos que surgiram contrários à compositora vieram no sentido de criticar uma suposta hiperssexualização de suas performances ou mesmo o que seria entendido como a pasteurização de sua obra – que, na ótica dos que tecem essas críticas, seria realizada sob medida para se encaixar no mercado global internacional, servir ao olhar masculino e fazer com que Anitta ganhe muito dinheiro. Ao falar do rebolado de Anitta, essas críticas não procuravam pensar a construção artística em torno dessa dança, mas, sim, conjecturar sobre as possibilidades de a cantora estar estimulando outras meninas e mulheres a dançarem da mesma forma que ela, forma essa que é entendida, nesse lugar, apenas como mais uma maneira de objetificar o corpo feminino. A respeito dessas críticas, em entrevista à Continente, a pesquisadora e professora da Universidade Federal do ABC Luciana Xavier, reflete: “Além da própria carga de machismo que existe nesse tipo de crítica (direcionadas a essas performances) e nessa construção de um tipo de valor moral que não é só dos conservadores, da direita, mas que também vem de determinados setores da esquerda, dentro de uma ideia de moral burguesa e de construção machista e patriarcal de mundo, eu acho que tem ainda a velha crítica moralista sobre gêneros musicais periféricos e de origem negra. Então, são várias camadas aí, nessa crítica de ‘hiperssexualização’, de ‘exposição do corpo’, de sensualidade, de demonstração ou emulação de eventuais atos sexuais como coisas sujas, perversas, descontroladas, ofensivas, degeneradas”.

Ainda sobre o tema, em entrevista ao jornal Estado de Minas, a pesquisadora e colaboradora da campanha pelos Direitos Humanos das Mulheres – Women's Declaration International, Carmen Carvalho, afirma, inclusive, que “a indústria fonográfica, a indústria audiovisual, a indústria midiática são propriedades de homens. Homens com muito dinheiro, com muito entendimento do mercado e que sentem as tendências desse mercado e produzem esse mercado. As divas pop não são self-made women, não são pessoas que se fizeram sozinhas ou que se construíram. E não tem nada de ‘meu corpo, minhas regras’ ali. É ‘meu corpo, regras do meu produtor’, ‘meu corpo, regras do meu figurinista’. Muitas delas não compõem as próprias músicas, não compõem as próprias letras”. O vídeo que acompanhou a reportagem também viralizou na internet e, mesmo que se fale que a crítica não se direciona a Anitta ou Luisa Sonza, são elas que ilustram a reportagem e têm suas performances questionadas sob um ponto de vista que reduz a quase nada a agência que artistas como elas teriam sobre suas próprias criações.

De formas distintas, esses comentários acabam por convergir em uma certa linha de pensamento que parece ser constantemente direcionada a Anitta desde o início de sua carreira até hoje. Mas que não são tecidas exclusivamente a ela, pois sempre aparecem quando uma mulher assume uma posição de destaque dentro dessa indústria que, inegavelmente, joga com padrões hegemônicos de consumo e difusão da arte. A ideia de que artistas que trabalham dentro do mainstream não têm agência sobre suas obras ou mesmo que produtos da indústria cultural perdem seu valor artístico por estarem associadas ao capitalismo reproduz um velho preconceito calcado na visão de intelectuais da chamada Escola de Frankfurt como Theodor Adorno. No justo ímpeto de criticar a massificação da cultura e sua apropriação pelo capitalismo, algumas interpretações dessa perspectiva acabam assumindo um caráter elitista, de hierarquização das artes, como se as obras de todos os artistas que se propusessem a jogar esse jogo não possuíssem valor estético.

Mesmo que ideias como essas tenham sido desenvolvidas há muitos anos, no seio da intelectualidade europeia, elas ainda permeiam a maneira com que o público e a crítica avaliam os artistas e suas performances. Anitta costurou sua carreira em torno de referências que vinham do funk carioca, do reggaeton, da música latina e da produção de divas pop internacionais como Rihanna, Beyoncé, Mariah Carey e Lady Gaga. Em um mundo configurado a partir de uma separação – e hierarquização – entre mente e corpo, parece ser difícil que boa parte do senso comum e mesmo de parte da crítica dita especializada compreenda que a mesma artista que rebola a bunda também possa compor suas próprias canções – sem, no entanto, desvalorizar o trabalho de intérpretes; que também é possível jogar dentro dos valores de uma indústria musical branca e masculina sendo uma mulher que gerencia sua própria carreira artística; e que também não há qualquer contradição entre fazer música pop, ser inteligente de maneiras plurais e entender que a dança e o rebolado são tecnologias e outras formas de se produzir arte e conhecimento. Vale lembrar, ainda, que não necessariamente o que se espera de reações do público a respeito dos produtos da mídia acontecem com exatidão – vide o destaque que Envolver ganhou a despeito da estratégia de Anitta e sua equipe.

Aprofundando as reflexões em torno de incômodos que as performances de Anitta e de outras cantoras pop brasileiras vêm provocando no cenário atual, a pesquisadora Luciana Xavier evidencia sua perspectiva a respeito desses fenômenos presentes na cultura pop contemporânea e dessa ideia de empoderamento associado ao capitalismo: “Não descarto que, nessa construção da imagética da música pop periférica, mas também de um pop global desde Madonna, Elvis Presley, tem uma ideia de o corpo, especialmente o corpo da mulher, estar sendo objetificado. Existe um jogo, ali, de objetificação, mas também de construção de autonomia e de poder”. “Acho que seja possível fazer sucesso e ganhar dinheiro fazendo música pop sem expor a bunda, mas se a bunda é dela e ela quer expor, e ela quer converter essa bunda em um objeto de poder, ela tem esse direito. (...) Eu acho que o incômodo que a bunda provoca é justamente porque está se falando da construção de um outro tipo de linguagem corporal, mas que também é uma linguagem, de um outro tipo de inteligência que passam por lugares que não o cérebro”, complementa.

Desde 2013, com o boom de Show das Poderosas, Anitta vem construindo sua trajetória de cantora, compositora, dançarina, produtora e empresária. Tanto que, em 2018, ela foi chamada para discutir os aspectos empresariais da gestão de sua carreira na universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Mesmo que artistas como ela contem com a participação de profissionais com diversas funções e várias pessoas tomando diferentes decisões, é bastante ingênuo, e até machista, pensar que a palavra conclusiva a respeito de seus passos não passe por ela. Anitta possui agência sobre sua carreira e sobre as escolhas – tanto estéticas quanto políticas – que nela faz. Apesar da descrença de alguns, partiu dela a decisão de se projetar internacionalmente emulando estereótipos de brasilidade – a exemplo de sua apresentação no Rock In Rio Lisboa, em 2018, na qual personifica Carmen Miranda – e de latinidade, como toda a sua construção para corresponder ao que se espera de “uma artista latina” no mercado de música em espanhol.

Falar de Carmen Miranda, aliás, ajuda a complexificar um pouco o caminho trilhado por Anitta, nos últimos anos, já que Carmen foi uma das primeiras artistas brasileiras – na verdade, nascida em Portugal e criada no Brasil – a alcançar uma projeção pop internacional. Sob a alcunha The Brazillian Bombshel, nossa “pequena notável” conquistou inúmeros corações hollywoodianos durante os anos 1930, 1940 e 1950, se tornando a primeira sul-americana a ganhar uma estrela na calçada da fama de Hollywood graças a filmes como Hello, Hello Brazil! (1935) e Down Argentine Way (1940). Mas a construção de sua carreira nos Estados Unidos não agradou a crítica brasileira, que a acusava de ser “americanizada” e de ter perdido sua “brasilianidade”. Já Anitta, seguiu construindo paralelamente sua imagem em três mercados diferentes: o brasileiro, latino/hispânico e o dos Estados Unidos. Enquanto sua carreira internacional se desenhava através de parcerias com Madonna, Cardi B e os latinos Maluma e J Balvin, Anitta continuou a pavimentar sua entrada no mercado brasileiro, gravando com Wesley Safadão, Luisa Sonza, Pabllo Vittar, Leo Santana, Caetano Veloso, Carlinhos Brown, Projota e Marília Mendonça.

No livro Música pop-periférica brasileira (2021), da pesquisadora carioca Simone Pereira de Sá, a autora traz Anitta enquanto uma das expoentes dessa música referida no título de sua publicação. Ou seja, uma artista que traz referências do seu lugar de origem, mantendo, porém, suas raízes aéreas em flerte constante com o pop internacional globalizante. Dentro dessa classificação, a maneira com que Anitta costura sua biografia, entre vida e a obra, delineia a forma como sua performance se presentifica diante do público. Durante o projeto/EP Checkmate lançado entre setembro e dezembro de 2017, essas estratégias se evidenciaram de forma mais intensa. Na canção Will I see you (feat. Poo Bear) Anitta canta uma espécie de bossa nova em inglês; já no clipe de Is that for me, ela leva o DJ sueco Alesso para a floresta amazônica; em Downtown, por sua vez, Anitta e J Balvin cantam e dançam em espanhol dentro de um cassino com iluminação em tons vermelhos; e no hit Vai, malandra, ela aparece misturada a paisagem do Morro do Vidigal, no Rio de Janeiro, enquanto canta com os artistas e produtores brasileiros DJ Yuri Martins, Tropkillaz e Mc Zaac e o rapper estadunidense Maejor.

Nessa dança entre Brasil, América Latina hispânica e Estados Unidos, entre centro e periferia, ela aciona estereótipos relacionados à cultura de todos esses locais. Seu trânsito entre o morro e o asfalto, entre Honório Gurgel e a Zona Sul do Rio, entre a América Latina e a América do Norte, se ancoram no agenciamento da construção biográfica modulada por Anitta em sua trajetória artística. Ao ser acusada de apropriação cultural pelo uso de dreads em 2017, Anitta afirmou, em declaração à coluna de Mônica Bergamo, no jornal Folha de São Paulo, que não haveria problema, pois “ninguém é totalmente branco no Brasil”. “Somos um país miscigenado. E acho que cada um deve se vestir da forma que se sente bem", complementou. Essa declaração da cantora reencena uma problemática, a do arquétipo da mestiçagem, que é muito comum em construções de brasilidade no campo da criação artística do país, tanto no circuito mercadológico quanto em imagens de Brasil fabricadas sob medida para exportação.

Em entrevista à Continente, o pesquisador e mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco Henrique Tenório reitera que essa mestiçagem brasileira não seria algo propriamente biológico, mas, sim, construída a partir de um “mito de identidade nacional”, que acaba por perpetuar privilégios da branquitude. “A ideia de que ninguém é totalmente branco no Brasil funciona para não tirar pessoas brancas de lugares de privilégio e poder, e continuar com a branquitude atuando sob uma (ideia de) neutralidade. E essa neutralidade garante trânsito, que é social e que vai aparecer nas questões culturais. Se ‘nenhuma cultura é branca e nenhuma cultura é negra, tudo é cultura brasileira’, a partir dessa lógica da mestiçagem, também é possível se aproximar ou se distanciar dessa cultura negra, sem que essas pessoas brancas sofram ou sejam questionadas, muitas vezes, ou culpabilizadas por isso”. Sobre a performance da cantora, Henrique complementa: “Anitta funciona justamente dentro desse paradigma da branca brasileira, que não atende a essa branquitude do branco europeu ou de uma branquitude ariana, mas que é uma branquitude mestiça e que, sim, goza de privilégios sociais e que vai, no caso de Anitta, usar esse lugar de neutralidade para que em um momento ela se embranqueça um pouco mais, e, no outro (apareça) mais enegrecida e periferizada, porque a periferia, aí, vai articular uma questão de raça e classe”.

Sobre o viralizado paso de Anitta, é preciso evidenciar que há nele referências de danças pélvicas, a exemplo do twerk, que se inscrevem em tradições de culturas afro-diaspóricas. Enquanto muitos tentam deslegitimar Anitta por conta de seu rebolado, deveríamos estar refletindo, na verdade, para o conhecer quais as manifestações artísticas são ali trazidas e propagadas dentro dessas construções coreográficas. E também como essas expressões constroem conhecimentos por outras vias. “É possível a gente pensar com outras partes do corpo. Como a forma que a gente dança, como a gente caminha, como a gente trabalha”, como bem atentou Luciana Xavier, em entrevista à Continente.

Agenciamentos na carreira da artista, que, muitas vezes, podem ser lidos enquanto contraditórios, fazem parte da história de várias divas pop nacionais e internacionais e do jogo mercadológico global, a partir disso, devem ser analisados de maneira crítica e distanciados de valores moralizantes. Esse olhar crítico por parte de seu público e também dos que se debruçam em estudar sua obra, porém, não deveria tentar simplificar a trajetória e as conquistas que Anitta vem desenvolvendo; tampouco deveria deixar de evidenciar e analisar as escolhas e consequências de suas ações, tanto no campo estético, quanto político.

Gostando ou não de suas criações, com Anitta, o Brasil, pela primeira vez, teve uma canção no topo do ranking da música pop mundial. Essa é uma conquista brasileira, sim, mas se espraia também pela América Latina. Quando a campanha para que brasileiros se engajassem na escuta de Envolver tomou conta das redes sociais, muito se falou que o clima já era de Copa do Mundo – essa sensação se intensificou com a disputa entre Anitta e o rapper argentino Paulo Londra serem praticamente direta. Porém, agora que a partida está ganha, qual será o próximo paso de Anitta? Será que o dia em que uma musicista brasileira chegará ao #1 da indústria fonográfica cantando em língua portuguesa também está perto de acontecer? Teremos que acompanhar os próximos capítulos dessa novela latinoamericana.

ANTONIO LIRA, jornalista, músico, pesquisador e mestre em Comunicação pela UFPE.

ÉRIKA MUNIZ, jornalista com graduação em Letras.

Publicidade

veja também

Tão próximos e tan lejos: o que nos impede de conhecer mais a música da Colômbia

Apontamentos para uma crítica náufraga

Karim AÏnouz coloca tempero brasileiro na realeza inglesa