Comentário

Eduardo Lourenço, um legado para pensar a literatura

Ensaísta e crítico literário português faria 100 anos

TEXTO Eduardo Cesar Maia

09 de Junho de 2023

O intelectual português Eduardo Lourenço

O intelectual português Eduardo Lourenço

Foto Agência Lusa/Creative Commons/Wikimedia

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No dia primeiro de dezembro de 2020, aos 97 anos, falecia o ensaísta e crítico literário português Eduardo Lourenço. No último 23 de maio, ele teria completado exatos 100 anos. O autor de obras admiráveis como O labirinto da saudade, Pessoa revisitado, A nau de Ícaro, entre muitas outras, foi profundamente influenciado pelo existencialismo e pela fenomenologia, mas nunca se deixou enclausurar por escolas, modismos teóricos ou ideologias políticas. Nesse sentido, foi um leitor muito criativo e livre de pensadores como Unamuno, Nietzsche, Kierkegaard, Husserl e Heidegger.

Sempre enxerguei nele uma espécie de triste emblema da precária relação cultural e intelectual que temos com Portugal – e com a Península Ibérica como um todo –, em comparação à influência que recebemos de outros lugares e tradições culturais tão mais estranhas e distantes à nossa história e cultura. A pobreza intelectual de grande parte das referências atualmente em moda nos estudos literários torna essa constatação ainda mais melancólica...

Estes dias, ao encontrar uma bonita postagem/homenagem nas redes sociais do grande tradutor e professor Frederico Lourenço (que não é parente do crítico), resolvi reler um ensaio que me foi fundamental à época do doutorado, e encontrei o trecho que me serviu de gatilho para encaminhar as reflexões que desenvolvia então. O texto, que foi publicado como prefácio ao volume Crítica literária: Breve história, de Willian K. Winsatt e Cleanth Brooks, foi significativamente intitulado “Da metamorfose da crítica ou o crepúsculo do humanismo”. Ali, o ensaísta português, no ano de 1970, advertia que:

esta inscrição da realidade literária na realidade linguística assegura à Crítica um estatuto científico, operatório, que a compreensão tradicional, mormente a de tradição romântica, não facilitava. A questão é a de saber se essa nova espécie de “redução”, sumamente esclarecedora, da realidade literária à textualidade, e desta à estruturalidade, torna, enfim, a Literatura transparente a si mesma ou se a não dissolve tomando como substancial (o texto) o que só o é pelo investimento de algo não-textual. É bem possível que os Jakobson, os Todorov, os Barthes esqueçam simplesmente uma pequena coisa [...]. Com efeito, os novos ateus do facto literário parecem esquecer que a reversão da realidade literária na Linguística, sob o pretexto óbvio de que a literatura é, antes de tudo, fenômeno linguístico, falha por princípio essa realidade que não tem sentido algum fora desse investimento valorativo de difícil ou impossível justificação através do qual subtraímos uma certa realidade linguística (e não toda realidade linguística) à sua função puramente comunicante (pág.: XIII).

O crítico português, percebendo que a Nova Crítica estava assumindo uma atitude de submissão voluntária aos estudos linguísticos, defendia o ponto de vista humanista de que talvez a literatura, entendida como realidade artística, só tem sentido – ou só adquire sua verdadeira estatura –, exatamente na superação das considerações puramente linguísticas e formais, justamente devido à ineludível dimensão experiencial, valorativa e circunstancial do fenômeno literário. Lourenço conclui suas reflexões críticas manifestando o desejo de que, no futuro, a moda linguística que dominava a crítica de seu tempo se revertesse; e propunha, no lugar da concepção hipostasiada e idealista da Linguagem, que fazia do homem uma espécie de títere,

inverter a fórmula e regressar a concepções mais clássicas e sem dúvida mais verdadeiras: a Linguagem é o homem esforçando-se por se falar e não uma Palavra falante hipostasiada de que o Homem seria menos o mediador que o eco sempre atrasado e fracassado. [...]. É mesmo possível que um dia se prefira de novo a “ilusão humanística” que garantia um sentido à Literatura, ao Crepúsculo em que agora entramos (Op. cit., pág.: XV).

A abordagem linguística da crítica literária, considerada científica na medida em que se enclausurava dentro dos muros de suas próprias normativas disciplinares, ao se limitar à abordagem estrutural, isolou e depurou a linguagem de sua dimensão social, desvirtuando profundamente o fenômeno linguístico. Ortega y Gasset, num curso de ministrou entre os anos de 1949 e 1950, intitulado El hombre y la gente, lembrava que

La lingüística tuvo que comenzar por aislar en el lenguaje real ese su lado esquelético y abstracto. Merced a ello pudo elaborar la gramática y el vocabulario, cosa que ha hecho a fondo y con perfección admirable. Mas, apenas logrado esto, vieron los lingüistas que con ello no se había hecho sino comenzar, porque el efectivo hablar y escribir es casi una constante contradicción de lo que enseña la gramática y define el diccionario, hasta el punto de que casi podría decirse que el habla consiste en faltar a la gramática y exorbitar el diccionario (ORTEGA Y GASSET, 2010, Tomo X, págs. 302-303).

A aplicação esquemática dos estudos linguísticos à crítica literária não levava em consideração o fato de que o âmbito do literário é aquele em que nos deparamos com a linguagem viva, criando-se: propondo e destruindo significados – inclusive a própria concepção do que pode ser a literatura.

Como uma teoria da literatura que se pretendia geral só dava conta de um dos seus aspectos isoladamente? Obviamente, essa abordagem trouxe descobrimentos, perspectivas novas e análises pertinentes; mas não se tratava, na verdade, de uma Teoria da Literatura, senão de uma Teoria Linguística da Literatura, assim como podemos nos referir a uma teoria psicanalista ou marxista da literatura; mas com a reserva de que elas só são compreensíveis dentro de seu próprio sistema e não observam tudo, só a parte que as interessa. São só perspectivas, portanto, mas acreditavam-se verdades universais.

Evidentemente, muita coisa já rolou no âmbito da crítica e da teoria literárias desde 1970 até agora... Mas o ensaio de Eduardo Lourenço, escrito no auge da crise de paradigmas dos estudos literários, acertava em sua aposta cética e sábia num outro futuro para a literatura e, principalmente, para a atividade crítica.

EDUARDO CESAR MAIA
, crítico cultural e professor da UFPE.

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