Comentário

Comam os ricos

Filmes e séries como ‘Triângulo da tristeza’, ‘O menu’, ‘The White Lotus’ e ‘Succession’ mostram os absurdos dos que nadam em fortunas

TEXTO Mariane Morisawa

21 de Março de 2023

Cena com a personagem Tanya, em 'The White Lotus'

Cena com a personagem Tanya, em 'The White Lotus'

Foto Fabio Lovino/HBO/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online] 

Na cena mais famosa de Triângulo da tristeza, de Ruben Östlund, ganhador da Palma de Ouro e um dos indicados a Melhor Filme no Oscar 2023, os viajantes de um cruzeiro em um iate de luxo rolam em enxurradas de seu próprio vômito e diarreia. Desde sua exibição no Festival de Cannes do ano passado, é um momento de catarse coletiva, mesmo durando muitos minutos. Afinal, quem não gosta de ver multimilionários ou gente muito rica se dando mal? É um contraponto ao mundo real em que vivemos, onde, geralmente, eles só se dão bem. 

Triângulo da tristeza (atualmente no Prime Video) é apenas um dos filmes e séries na linha “comam os ricos” que chegaram recentemente às telas. “Comam os ricos” faz parte de uma frase atribuída a Jean-Jacques Rousseau: “Quando o povo não tiver mais o que comer, eles comerão os ricos”. Além do longa do diretor sueco, seguem essa linha O menu, de Mark Mylod; Glass onion: Um mistério knives out, de Rian Johnson; Fresh, dirigido por Mimi Cave; e a série The White Lotus, de Mike White. 

Não que anteriormente o cinema e a televisão não tenham criticado os privilegiados em produções como O Anjo Exterminador (1962), de Luis Buñuel, e Weekend à francesa (1967), de Jean-Luc Godard, entre muitas outras – até a série Jogos vorazes. Em 2013, Bong Joon-ho, que seis anos depois lançaria Parasita, já tinha falado de um sistema de classes injusto em Expresso do amanhã, fazendo uso de uma espécie de trem gigante em um mundo pós-apocalíptico com uma divisão bem definida entre os ricos, que vivem na abundância, e os pobres, em situação miserável. 


Triângulo da tristeza. Foto: Diamond Films/Divulgação

Pouco antes da pandemia, houve uma onda de obras que mostravam a revanche de pobres e marginalizados contra ricos e privilegiados, com Parasita (2019), de Bong Joon-ho, vencedor da Palma de Ouro naquele ano, e Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, que saiu do mesmo festival com o prêmio do júri, dividido com Os miseráveis (2019), de Ladj Ly, que também fala das pessoas à margem da sociedade em Paris, uma das cidades mais ricas do mundo. Na época da Palma de Ouro e da campanha bem-sucedida para o Oscar, com Parasita ganhando quatro estatuetas, o cineasta sul-coreano respondeu, ao ser indagado sobre a razão de seu trabalho ter tanta ressonância no mundo inteiro: “Eu tentei expressar um sentimento específico da cultura coreana, mas as respostas de públicos diferentes foram as mesmas. Essencialmente, todos vivemos no mesmo país, chamado capitalismo”. 

Um ano antes de Parasita, Bacurau e Os miseráveis, a HBO estreou a série Succession (2018), criada por Jesse Armstrong, cuja quarta e última temporada estreia em 26 de março. A produção fala de uma família de bilionários; até aí, nenhuma novidade, pois Dinastia e as novelas brasileiras também focavam nesse estrato da sociedade. A diferença, aqui, é que não há exatamente glamour, apesar de se tratar de uma família com casas em diversas partes do mundo, que viaja de jatinho particular. Os Roy estão em uma briga para ver quem vai suceder o patriarca, Logan (Brian Cox), que não quer largar sua posição. Nessa luta, vale chute, pontapé nas partes baixas e dedo no olho. Succession, que ganhou o Emmy de melhor drama por sua segunda e terceira temporadas, mostra as entranhas dos ricos e poderosos, e a visão não é nada bonita. Mesmo quem vem de fora, de certa forma, é engolido pelo mau-caratismo que parece inseparável da manutenção do poder e da riqueza. 

Em 2021, outra produção sul-coreana, dessa vez uma série, Round 6, criada por Hwang Dong-hyuk, também mostrou a injustiça do capitalismo em uma espécie de jogos vorazes em que pessoas endividadas disputavam um prêmio em dinheiro, que aumentava conforme outros participantes eram eliminados de verdade, ou seja, mortos, para entretenimento de pessoas ricas. A segunda temporada, que já está confirmada, deve tratar de uma tentativa de vingança. 

Mas por que essa nova onda de séries sobre a podridão que habita a concentração de renda e, muitas vezes, a revanche das pessoas mais pobres contra esse estado de coisas? 

Succession chegou à televisão no segundo ano do governo de Donald Trump, ele próprio um multimilionário disposto a tudo para se dar bem. Sua eleição foi ajudada – e muito – pela cobertura parcial da Fox News de Rupert Murdoch, em quem Logan Roy foi inspirado extraoficialmente (também há uma disputa pelo seu império). 


Succession. Foto: HBO/Divulgação

Fora isso, o abismo entre ricos e pobres é cada vez maior. E a classe média também perdeu seu status, sua posição econômica e vem sofrendo dificuldades. Está cada vez mais caro comprar alimentos e pagar aluguel. Comprar a casa própria é um sonho impossível para grande parte das pessoas, até mesmo nos países ricos. Nas crises econômicas, os CEOs continuam ganhando seus bônus e salários altíssimos enquanto os trabalhadores sofrem demissões e condições piores. 

A marginalização leva à criação de um vilão como o Coringa (2019) de Joaquin Phoenix, no filme de Todd Phillips. Os bilionários que já foram heróis, como Batman e o Homem de Ferro, agora estão mais para os bandidos. Inclusive os da área da tecnologia, que costumavam ser vistos com certa admiração até pouco tempo atrás. Em Não olhe para cima (2021), de Adam McKay, Mark Rylance faz de seu Peter Isherwell uma mistura de Elon Musk e Steve Jobs que decide lucrar com a iminente destruição da Terra. 

Os ricaços ainda são os personagens altamente problemáticos de séries baseadas em histórias reais, como WeCrashed, sobre os criadores da WeWork; The dropout, sobre Elizabeth Holmes, da Theranos; e Super pumped, sobre Travis Kalanick, ex-CEO da Uber, todas lançadas no ano passado. Algo que David Fincher já tinha visto lá atrás, com A Rede Social (2010), sobre a criação do Facebook. 

A leva de produções do último ano retoma o assunto – afinal, a pandemia só exacerbou os problemas. No suspense O menu (2022), disponível no Star+, super-ricos vão para uma ilha ter uma experiência exclusiva com um chef renomado, interpretado por Ralph Fiennes. Só que lá as coisas começam a ficar estranhas para os convidados, interpretados por Anya Taylor-Joy, Nicholas Hoult, Janet McTeer, John Leguizamo, entre outros. Fresh (2022), com Sebastian Stan e Daisy Edgar-Jones, também disponível no Star+, gira em torno da comida, só que a carne, aqui, é humana. 


Anya Taylor-Joy em O menu. Foto: Divulgação

No ar na Netflix, Glass onion: Um mistério knives out (2022) também se passa em uma ilha, onde o ricaço Miles Bron (Edward Norton) reúne seus velhos amigos, Birdie (Kate Hudson), Duke (Dave Bautista), Claire (Kathryn Hahn), Lionel (Leslie Odom Jr.) e Andi (Janelle Monáe), expondo como a riqueza e o poder alteram as relações e criam vínculos artificiais. O mistério de brincadeirinha criado por Bron é investigado por um detetive de verdade, Benoit Blanc (Daniel Craig), que já tinha aparecido no filme anterior da série, Entre facas e segredos (2019), em que uma imigrante era acusada de assassinato. A crítica social era clara ali, bem como em outro filme de Rian Johnson, Star Wars: Os últimos Jedi (2017), que mostra como a opressão fascista da Primeira Ordem também era econômica. E era contra tudo isso que a Resistência precisava lutar, como, antes dela, a Aliança Rebelde contra o Império Galáctico, em Andor, série estrelada por Diego Luna e exibida em 2022 no Disney+. 

Como Glass onion, The White Lotus e Triângulo da tristeza também colocam os ricos em lugares paradisíacos. A série da HBO teve a primeira temporada em um hotel de luxo no Havaí, e a segunda, na Sicília. Ali, personagens cheios de privilégios destratam os funcionários, acham que só eles têm direitos, abusam do seu poder. O tom é de sátira, tudo é exagerado. No filme ganhador da Palma de Ouro, também. As cenas são ridículas no iate. Mas os personagens vão parar em uma ilha deserta, onde uma das funcionárias (Dolly De Leon) tem a chance de tomar as rédeas da situação. Como Östlund não é um diretor que crê na humanidade, a virada de jogo não significa redenção. 


Glass onion: um mistério knives out. Foto: Divulgação

Até mesmo Tár, de Todd Field, indicado a seis Oscars, incluindo melhor filme, direção e atriz, resvala na sátira, apesar de parecer um filme sério e até de certa forma pedante. Lydia Tár (Cate Blanchett) está no topo, sendo a primeira maestrina da Orquestra Filarmônica de Berlim. Viaja de jatinho, fica em hotéis caros e veste roupas bem cortadas. Está sempre cercada dos abastados que frequentam os concertos e que patrocinam a orquestra. Até que ela é alvo de denúncias de abuso. Quando há poder envolvido, a dinâmica muda – diz o longa. 

A maior parte desses filmes e séries, contudo, se contenta em fazer alguma graça e apontar alguns dedos, sem ir muito fundo na crítica ou mesmo na reação ao status quo. Os que detêm grandes fortunas podem ser o alvo da vez, mas o cinema e a televisão não estão muito dispostos a explorar a situação de maneira mais radical. Ainda assim, dá para se divertir vendo ricos e poderosos se darem mal, pelo menos um pouquinho. 

MARIANE MORISAWA, jornalista apaixonada por cinema. Morou em Los Angeles por sete anos e cobre festivais em todo o planeta.

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