O escritor de Torto arado, Itamar Vieira Junior, chegou, junto às mulheres de seu grupo, a um formato de contos epistolares, que foram reunidos na parte 4, intitulada Amarelíneas. As partes 5 e 6, respectivamente coordenadas por Alexandre Faria e Ana Paula Lisboa, levaram a formatos mais variados dentro de uma mesma seção. Por fim, Milena Britto, no capítulo Vedetes da favela, optou por estimular as práticas de escrita a partir das canções da escritora homenageada.
Percebe-se, desse modo, que Carolinas: a nova geração de escritoras negras brasileiras resulta de muitos diálogos. É curioso que um projeto dessa dimensão, com esse alcance e com essa qualidade de convívio, seja resultado do contexto pandêmico, um período de desalento. Conforta saber que a migração das práticas culturais para o meio digital, apesar da exaustão que nos gerou, também legou experiências únicas. Nesse projeto, a Flup ainda teve o mérito de aproximar autoras que estão em momentos diferentes de sua maturação com a prática literária. Antes de tudo, criar um espaço em que as próprias participantes se sentissem à vontade para narrar suas histórias.
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Existe, no livro, uma parte 8, organizada por Eduardo Coelho. Nesta seção final, é apresentada a produção de 20 catadoras de materiais reciclados que também participaram de ciclos de oficinas de produção textual e contação de histórias. Sobre essa escrita, dá-se bastante ênfase à possibilidade de atribuir “novos sentidos aos seus percursos biográficos”. Do ponto de vista literário, porém, impressiona a construção narrativa feita da fúria ou do contentamento da oralidade; o modo como a força estética anuncia, nestes tempos em que reaprendemos a ler, que sempre pertenceu a todos e a ninguém. Foi dessa seção o texto literário que mais me marcou, da escritora Andrea Firagi, que reproduzo a seguir:
A muamba mais importante que achei me deixou muito feliz porque meu filho faz show de drag. Ele queria muito uma peruca longa de cabelo humano. Um dia, eu trabalhando na esteira de produção da minha cooperativa, achei uma sacolinha cheia de cabelo humano. Meu filho ficou tão feliz, aquele dia mesmo, à noite inteira, ele costurou todo o cabelo e fez a peruca. E ficou do jeito que ele queria.
Acordei no outro dia cedo pra ir trabalhar, vi a peruca pronta, pendurada. Eu fiquei muito feliz. Ele guarda a peruca até hoje.
Um conto curto, de gerar fascínio e alguma repulsa, de gerar bastante ternura. Uma mãe engajada no sucesso dos shows de drag do seu filho, na sua realização como sujeito e artista. O cabelo humano enquanto “muamba”, na esteira de lixo. Seríamos nós todos um amontado de muambas fisiológicas? Esse dar-se a algo novo que é possível ao corpo, a todos os corpos. Uma sacolinha cheia de cabelo humano não é apenas uma muamba, é “a muamba mais importante” e permanece “até hoje” no signo da peruca, de uma reconstrução para os palcos, para a noite, para a festa e o glamour. É o elogio da ciclicidade, é a brutalidade luxuosa da esteira de cooperativa. De onde viera aquele cabelo humano? Essa parte do corpo que cai com facilidade, mas custa a decompor.
Esta seção do livro, que por vezes tem mais cara de relato cru, entrega também o gesto de ficção e imagem que é toda memória, toda narração, como se vê neste fragmento de Clotilde da Silva: Fui trocada por um armário verde (odeio armário verde). Meu então marido fez a troca com meu pai e tive que morar com ele, ele abusava, batia, quase me matou. A literatura reconta o mundo infinitas vezes, em infinitas imagens. Clotilde poderia falar de sua experiência de muitos modos, descrevendo as violências que ela conheceu. No entanto, ela sabe dar a ver um armário verde, o maior dos ultrajes, a maior das vilanias.
GIANNI GIANNI, escritora, jornalista, artista-pesquisadora e arteterapeuta em formação.