Comentário

Carolinas, em nome de Carolina Maria de Jesus

Coletânea reúne textos de escritoras negras inspiradas pela obra da autora de 'Quarto de despejo'

TEXTO Gianni Gianni

01 de Fevereiro de 2022

Imagem Reprodução

[conteúdo na íntegra | ed. 254 | fevereiro de 2022]

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“Falavam que eu tenho sorte, eu disse-lhes que eu tenho audácia.” A afirmação de Carolina Maria de Jesus é recuperada na apresentação geral do livro Carolinas: a nova geração de escritoras negras brasileiras, paratexto assinado pela professora e pesquisadora Fernanda Miranda. Embora o mercado literário venha se mostrando um pouco mais interessado e celebrador das vozes de escritoras negras, resguardados seus devidos interesses, firmar esses projetos artísticos nos eventos e catálogos mais prestigiados do país segue sendo um desafio. Exige audácia. Nesse contexto, o livro articulado a partir das oficinas da Festa Literária das Periferias (Flup) de 2020 – ano em que a autora de Quarto de despejo foi a grande homenageada – chega como mais um trabalho de ocupação do território da palavra, a partir de uma grande variedade de gêneros, estilos e subjetividades.

O livro é um catatau, editado pela Bazar do Tempo e composto das escritas de 180 autoras nascidas nas diferentes regiões do país. Também são diversas as faixas etárias, realidades socioeconômicas, formações, fé e vivências de mundo. Em suma, múltiplas experiências que se reconhecem no fato comum de serem todas mulheres negras, o que implica em lidar com as questões de gênero e raça impostas estruturalmente no país em que vivem. O ciclo formativo que resultou nesta publicação teve como ponto de partida uma seleção que reuniu 200 mulheres de todo Brasil no formato on-line. As participantes inscritas foram então divididas em grupos nos quais discutiam a obra de Carolina Maria de Jesus ao mesmo tempo em que decidiam o formato de suas produções textuais. Tudo isso foi realizado com a mediação de uma profissional convidada ou um profissional convidado pela organização do evento.

Essa dinâmica que antecede a publicação faz com que o livro se apresente como um fruto coletivo, algo que se observa na grande quantidade de paratextos, já que todos os mediadores escrevem uma pequena apresentação explicando a proposta que norteou o seu grupo. Além disso, ao fim de cada seção, os nomes de todas as autoras são recuperados junto a uma pequena descrição biográfica que as apresenta. A disposição das produções individuais se dá em ordem alfabética.

Antes de entrar no mérito das metodologias e decisões de cada um desses grupos, assim como de especificidades das narrativas breves que compõem o livro, vale destacar a ilustração de capa, criada por Paty Wolff, com cores vivas, sorriso e colar de pérolas. Nessa imagem, Carolina Maria de Jesus surge como figura vigorosa e vibrante, adjetivos que lhe são mais que devidos. Uma lucidez evidente do processo formativo foi a de deixar as escritoras à vontade na escolha de seus assuntos, sendo a denúncia, o racismo e a dificuldade apenas possibilidades temáticas, e não uma camisa de força discursiva.

No texto de abertura da parte 6, que recebe o nome de Quilombo Dona Carolina, a escritora e organizadora da seção Ana Paula Lisboa comenta que só tinha duas metas iniciais nesse projeto: a primeira era conseguir fazer com que todas as participantes do seu grupo chegassem até o fim; a segunda, “fazê-las escrever textos que fossem para além da dor, sofrimento, fome, miséria, luto e luta. Porque, apesar da narrativa da fome ser muito marcante em Quarto de despejo – Diário de uma favelada, Carolina é muito maior que a sua fome. Todas as pessoas negras são muito maiores do que o racismo”.

Essa atenção também é reforçada pela professora da Universidade Federal da Bahia, Milena Britto, que organizou a seção Vedetes da favela. Diante de um grupo heterogêneo de escritoras, a mediadora destaca que a produção reunida ali “não é algo estanque e fixada na obrigação de denúncia”. Por isso, a antologia se mostra povoada de assuntos cotidianos, experiências amorosas, relações familiares, memórias da infância, sonhos, paisagens de fé e tantos assuntos que competem à imaginação e à realidade humana.

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A liberdade metodológica permitiu que cada grupo escrevesse a partir de dinâmicas e recortes diferentes. A primeira parte, organizada pela professora e escritora Cristiane Costa, que recebe o título Fazer da literatura a sua morada, teve como detonador criativo um léxico particular que o grupo desenvolveu a partir do universo semântico despertado pelas palavras casa, quarto, despejo. O fluxo de associações aproximou para a prática termos como desejo, pele, pedra, prisão, janela, liberdade, quilombo e descarte. Já as mulheres que integraram a turma coordenada pela escritora Eliana Alves Cruz foram estimuladas a produzir crônicas narradas em primeira pessoa. É o caso de O dia que acertei na cabeça, assinado pela carioca Carolina Azevedo, no qual a protagonista narra o trajeto de volta para casa no transporte coletivo após um dia de trabalho, que ganha outro contorno na irrupção de um flerte inesperado.

O grupo mediado pelo professor da PUC-RJ Fred Coelho assinou O diário dos diários de Carolinas, terceira parte do livro. Aqui, a escrita de toda a seção ganha um corpo único na forma de diário que não é separado por autora, mas surge como costura de vozes, cuja autoria é apresentada, uma a uma, apenas no fim do capítulo. Por um lado, trata-se de uma rica estratégia de criação partilhada e reflexão conjunta; por outro, porém, parece ofuscar a assinatura das participantes, que, de certo modo, devem ter interesse em se projetar individualmente a partir de um trabalho como esse.


Capa do livro tem ilustração de Carolina Maria de Jesus criada por Paty Wolff. Imagem: Reprodução

O escritor de Torto arado, Itamar Vieira Junior, chegou, junto às mulheres de seu grupo, a um formato de contos epistolares, que foram reunidos na parte 4, intitulada Amarelíneas. As partes 5 e 6, respectivamente coordenadas por Alexandre Faria e Ana Paula Lisboa, levaram a formatos mais variados dentro de uma mesma seção. Por fim, Milena Britto, no capítulo Vedetes da favela, optou por estimular as práticas de escrita a partir das canções da escritora homenageada.

Percebe-se, desse modo, que Carolinas: a nova geração de escritoras negras brasileiras resulta de muitos diálogos. É curioso que um projeto dessa dimensão, com esse alcance e com essa qualidade de convívio, seja resultado do contexto pandêmico, um período de desalento. Conforta saber que a migração das práticas culturais para o meio digital, apesar da exaustão que nos gerou, também legou experiências únicas. Nesse projeto, a Flup ainda teve o mérito de aproximar autoras que estão em momentos diferentes de sua maturação com a prática literária. Antes de tudo, criar um espaço em que as próprias participantes se sentissem à vontade para narrar suas histórias.

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Existe, no livro, uma parte 8, organizada por Eduardo Coelho. Nesta seção final, é apresentada a produção de 20 catadoras de materiais reciclados que também participaram de ciclos de oficinas de produção textual e contação de histórias. Sobre essa escrita, dá-se bastante ênfase à possibilidade de atribuir “novos sentidos aos seus percursos biográficos”. Do ponto de vista literário, porém, impressiona a construção narrativa feita da fúria ou do contentamento da oralidade; o modo como a força estética anuncia, nestes tempos em que reaprendemos a ler, que sempre pertenceu a todos e a ninguém. Foi dessa seção o texto literário que mais me marcou, da escritora Andrea Firagi, que reproduzo a seguir:

A muamba mais importante que achei me deixou muito feliz porque meu filho faz show de drag. Ele queria muito uma peruca longa de cabelo humano. Um dia, eu trabalhando na esteira de produção da minha cooperativa, achei uma sacolinha cheia de cabelo humano. Meu filho ficou tão feliz, aquele dia mesmo, à noite inteira, ele costurou todo o cabelo e fez a peruca. E ficou do jeito que ele queria.

Acordei no outro dia cedo pra ir trabalhar, vi a peruca pronta, pendurada. Eu fiquei muito feliz. Ele guarda a peruca até hoje.

Um conto curto, de gerar fascínio e alguma repulsa, de gerar bastante ternura. Uma mãe engajada no sucesso dos shows de drag do seu filho, na sua realização como sujeito e artista. O cabelo humano enquanto “muamba”, na esteira de lixo. Seríamos nós todos um amontado de muambas fisiológicas? Esse dar-se a algo novo que é possível ao corpo, a todos os corpos. Uma sacolinha cheia de cabelo humano não é apenas uma muamba, é “a muamba mais importante” e permanece “até hoje” no signo da peruca, de uma reconstrução para os palcos, para a noite, para a festa e o glamour. É o elogio da ciclicidade, é a brutalidade luxuosa da esteira de cooperativa. De onde viera aquele cabelo humano? Essa parte do corpo que cai com facilidade, mas custa a decompor.

Esta seção do livro, que por vezes tem mais cara de relato cru, entrega também o gesto de ficção e imagem que é toda memória, toda narração, como se vê neste fragmento de Clotilde da Silva: Fui trocada por um armário verde (odeio armário verde). Meu então marido fez a troca com meu pai e tive que morar com ele, ele abusava, batia, quase me matou. A literatura reconta o mundo infinitas vezes, em infinitas imagens. Clotilde poderia falar de sua experiência de muitos modos, descrevendo as violências que ela conheceu. No entanto, ela sabe dar a ver um armário verde, o maior dos ultrajes, a maior das vilanias.

GIANNI GIANNI, escritora, jornalista, artista-pesquisadora e arteterapeuta em formação.

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