No Recife, em particular, o retorno à sala do Derby é um dos pontos mais interessantes desta edição. Nos primeiros dias do Varilux, o espaço parece resgatar, aos poucos, um sentimento decorrente da vivência de um festival em “cinema de rua”; a reconfiguração dos afetos – ou da cinefilia – de quem os partilha. Nas sessões noturnas, as costumeiras filas voltam a se formar; nos intervalos, as mesas da cafeteria são completamente tomadas ora por visitantes já familiarizados com o local, ora por novos rostos curiosos. Alguns deles, marcando presença desde as primeiras sessões, com lápis e uma cópia do programa, circulando os filmes que pretendem ver.
Contemplando a temática francesa do festival, a Fundaj dispôs, em sua habitual programação matutina, o filme O demônio das onze horas, obra consagrada de Jean-Luc Godard exibida no domingo (10/6), mesmo dia da projeção do único clássico do festival, Z (dir. Costa-Gavras, 1969). Isso ampliou o ensejo de lançar o público a um cinema que antecedeu – e muito serviu – as obras contemporâneas que compõem o Varilux.
Um aspecto curioso de sua programação de lançamentos é a inserção de um cinema que flerta com gêneros pouco comuns ao festival. Notoriamente, em filmes como O último suspiro (Dans la brume, dir. Daniel Roby, 2018) e A noite devorou o mundo (La nuit a dévoré le monde, dir. Dominique Rocher, 2018), que evocam temáticas pós-apocalípticas e narrativas de ficção científica. O mesmo se pode dizer sobre a animação A raposa má (Le grand méchant renard, dir. Benjamin Renner, Patrick Imbert) e também O amante duplo (L’amant double, dir. François Ozon, 2018). Este último, que ilustra o pôster do festival, destaca-se por incorporar diversos desses gêneros – o que começa como um drama psicológico vai progressivamente tornando-se um misto de erotismo, suspense e horror que beira ao trash –, tensionando as reações do público que, por vezes, irrompia-se em risadas e sobressaltava após um susto. Uma brincadeira tipicamente francesa – diante de uma cinefilia sensível aos clichês norte-americanos – de absorver narrativas recorrentes do grande público e ressignificá-las em uma nova maneira de fazer cinema.
Cena da ficção científica O último suspiro. Imagem: Divulgação
A denominada nouvelle guarde (“nova guarda”, em tradução livre), constituída pela nova geração de cineastas franceses, também se faz presente na programação. Títulos como A excêntrica família de Gaspard (Gaspard va au mariage, dir. Antony Cordier, 2017) e O poder de Diane (Diane a les épaules, dir. Fabien Gorgeart, 2017) foram particularmente bem-recebidos no primeiro dia do festival, ambos afáveis comédias que tratam de modelos familiares não normativos – em contraponto a Custódia (Jusqu’à la garde, dir. Xavier Legrand, 2018), que comporta a recorrência das narrativas familiares em um drama sobre conflitos judiciais.
Uma contradição evidente em sua curadoria, porém, é a preocupação em trazer filmes que fomentam questões sociais – como a temática LGBT presente no longa de Gorgeart, ou a intolerância étnica de Primavera em Casablanca (Razzia, dir. Nabil Ayouch, 2018) – e, ao mesmo tempo, a reincidência em seus velhos discursos. Por exemplo, comédias que parecem não atentar à misoginia ou ao moralismo contido nelas – friso aqui O retorno do herói (Le retour du héros, dir. Laurent Tirard, 2018), obra conflituosa na qual sua estética demonstra uma falta de sintonia com seus anseios por algum progressismo. Apesar de emular em sua protagonista, vivida por Mélanie Laurent, o arquétipo “Jane Austenesco” da heroína de época independente, o filme tem desconfortáveis cenas – e esta pareceu ser uma percepção geral – de violência, inclusive doméstica, em contextos deturpados. Chega ao ápice em uma sequência de massacre realizada pelo personagem de Jean Dujardin, cuja única utilidade era uma suposta redenção moral para o mesmo.
De resto, vale ressaltar a cinebiografia desta edição, Gauguin – Viagem ao Taiti (Gauguin – Voyage de Tahiti, dir. Edouard Deluc, 2017), que surpreendeu ao evitar certos excessos comuns nesse tipo de diegese. O filme não aponta para mil e um elementos autobiográficos, focando apenas em um relato íntimo e conciso de seu processo criativo e a relação entre artista e musa, ou seja, entre Gauguin e sua esposa, lembrando, às vezes, A bela intrigante (La belle noiseuse, dir. Jacques Rivette, 1991) – ainda que peque ao cair em outros lugares-comuns, tais como excesso de dramatização em momentos-chave, contradizendo a modesta narrativa que lhe era vigente.
O saldo do primeiro final de semana do Varilux, afinal, é o de que o festival apresentou terrenos familiares, filmes cujas temáticas já são esperadas em sua programação, ao mesmo tempo em que exibiu obras de frescor juvenil, como O amante duplo. A escolha desta como principal propaganda do festival, com a foto dos protagonistas envolvidos em um beijo, remete à imagem do casal em O demônio das onze horas – curiosamente, o pôster mais recente do festival de Cannes – e desponta para uma capacidade constante da França de se autorreferenciar. Na mesma semana em que a revista Cahiers du Cinema lançou uma homenagem aos 90 anos da realizadora Agnès Varda, assistir a esses filmes – e olhar simultaneamente para o passado e presente do cinema francês – toma um sentido de celebração.
No Recife, esse clima reverbera, também, em um conforto singular de retornar a um gesto cinéfilo e devolver à cidade um espaço que permita sua existência.
Confira aqui a programação e os locais de exibição do Festival Varilux no Recife