Cobertura

O corpo contando histórias

'Palafita', da Cia. Fuzuê (CE), mostrou como vai além da acrobacia tradicional, usando a performance como linguagem de reconstrução da ideia de moradia durante o 14º Festival de Circo do Brasil

TEXTO Samanta Lira

12 de Novembro de 2018

O trabalho circense incorpora a areia como elemento da narrativa

O trabalho circense incorpora a areia como elemento da narrativa

Foto Marina Cavalcante/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online | nov 2018]

São duas figuras, mas só o corpo fala. Dois corpos que funcionam como uma única peça, numa desconstrução da ânsia pela ação. Longos minutos que nos fazem esquecer a percepção do tempo. Quando dois corpos se equilibram, um em cima do outro, girando lentamente, sem pressa de mostrar a que veio, nossa única percepção é a sombra que se forma abaixo deles. Uma imagem indecifrável em volta dos pés, com seus dedos que estalam no esforço do equilíbro – o único som ecoado, até então, na arena do Teatro Hermilo Borba Filho. Há também a respiração ofegante, os pés pulando sobre as costas e o estrondoso barulho que conseguimos formar através do silêncio, eis alguns dos poucos sons que compõem a trilha do espetáculo.

A encenação é Palafita, da Cia. Fuzuê (CE), apresentada na noite da última sexta-feira (9/11), dentro da programação do 14º Festival de Circo do Brasil. Nela, os artistas circenses Edmar Cândido e Eric Vinícius apresentam técnicas de mão a mão e Acro Duo, no exercício do equilíbrio e da força por meio do contato entre os corpos. Dessa maneira, exploram as possibilidades de ocupação do espaço e a construção de novas formas dentro dele. Numa referência aos casebres erguidos em áreas alagadas de rio e maré, que conhecemos como palafitas, o conceito de morada cria a subjetividade da proteção, uma forma de habitar terrenos instáveis da condição humana.

"Como a gente pode criar uma moradia usando o outro de suporte? E, a partir das técnicas circenses, quais discursos a gente pode construir com essas imagens?", foram as indagações que lapidaram a montagem. "A proposta inicial do trabalho era fazer acrobacia. Depois, a gente foi vendo como o nosso cotidiano ia atravessando essa atividade física desenvolvida no circo", contou Eric Vinícius em entrevista à Continente.

Palafita está em circulação desde 2014, quando estreou no Festival Circos, no Sesc Pompeia (SP), um ano depois de ter iniciado o processo criativo, que durou mais dois anos. Essa foi a primeira proposição do espetáculo. Na lógica do corpo como um mecanismo que sofre constante modifição a partir das experiências externas, uma apresentação que se propõe a usá-lo como instrumento segue a mesma linha.



Os artistas fizeram residência num sítio localizado na Praia de Sabiaguaba, em Fortaleza. Um lugar semideserto, numa região de dunas, em processo de forte especulação imobiliária. Num dia, ao acordarem, a enorme duna em frente à casa, vista na noite anterior, havia desaparecido. Mais tarde, descobriram que a areia foi utilizada como aterro na construção de uma BR. "Isso foi uma coisa bem violenta, que marcou muito a gente. Tivemos que incorporar ao trabalho", explica Eric sobre a presença da areia em grande parte do espetáculo. Além disso, a palafita é um tipo de construção muito comum nos mangues da Sabiaguaba.

A inspiração também foi tirada do livro Vagamundo, do escritor uruguaio Eduardo Galeano, mais especificamente do conto Segredo no cair da tarde. É perceptível a construção do espetáculo ao acolher seus componentes. Uma narrativa que fala sobre perda e desejo sendo revelada através da linguagem circense, também performance. Em 30 minutos, a arte da cena direciona o olhar para as dimensões social e psicológica do tema. Moradias precárias, frágeis e isoladas.

Palafita é o corpo e seu potencial em evidência. É o corpo contando histórias. Ao final, as luzes se apagam lenta e completamente, enquanto canções ecoam no escuro, provocando um misto de assombro e encanto. As pupilas logo se dilatam, na reação involuntária dos olhos para se acostumarem. A réstia esbranqueçada da areia antes agitada vai surgindo em meio a escuridão. É um sentimento sublime. Quando as luzes reacendem, só é possível enxergar o público de pé e o estrondoso som dos aplausos.

Confira a cobertura dos espetáculos Lazuz e Finding no man’s land, também parte da programação do 14º Festival de Circo do Brasil em seu último fim de semana.

SAMANTA LIRA é estudante de jornalismo da Unicap e estagiária da Continente. Ama circo e acha que foi circense em vidas passadas.

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