Cobertura

FIG 2022: um Carnaval no frio

Um olhar para a 30a edição de Festival de Inverno de Garanhuns

TEXTO LUCIANA VERAS, DE GARANHUNS

26 de Julho de 2022

Raphaela Santos

Raphaela Santos

Foto Felipe Souto Maior/SecultPE-Fundarpe

[conteúdo exclusivo da Continente Online]

"Minha irmã, o FIG tá parecendo o Carnaval!". Essa frase, em incontáveis variações, tem sido repetida pelas ruas da Cidade das Flores desde o dia 15 deste mês, quando teve início a 30a edição do Festival de Inverno de Garanhuns. Porque são muitos, e incontornáveis, os sinais de semelhança: é gente circulando e se esbarrando nas ladeiras, hotéis cheios e pousadas lotadas, casas alugadas para grupos que se dividem entre quartos e salas com colchões infláveis, atrações em diversos pontos da cidade, programações que começam pela manhã e se estendem em longas jornadas madrugada adentro, em afters variados, shows concorridos, filas intermináveis para entrar, confusão com polícia, atrasos e problemas de som e uma atmosfera tão nítida, quase palpável até, de animação. E de reencontro.

É, este retorno do FIG, comemorando três décadas ao mesmo tempo em que celebra o fim do hiato de três anos (último festival presencial foi em 2019, no hoje tão longínquo mundo pré-pandemia), tem parte com o Carnaval. Com a essência democrática e plural que caracteriza a maior festa de rua do nosso país, que aqui no FIG se traduz na oferta de uma miríade de atrações - do instrumental à música infantil, de espetáculos de dança ao reisado e ao cavalo marinho, dos shows mais festejados no palco Mestre Dominguinhos da praça Guadalajara ao ineditismo de alguns nomes do palco Pop no Euclides Dourado - e na  presença de cerca de 1,5 milhão de pessoas, entre turistas sudestinos com seus sotaques diversos e o "povo do Recife", como dizem os agrestinos, que visitarão a cidade até o próximo domingo, 31, quando termina o festival. 

Tal estimativa de fluxo veio da Secretaria de Cultura de Garanhuns, divulgada em matéria da semana passada na TV Asa Branca. Na mesma reportagem, aparecia a previsão de arrecadação para o 30o FIG: R$ 300 milhões, uma considerável injeção de recursos em uma área que ainda engatinha para se recuperar da pausa pandêmica. Até nisso, portanto, o FIG também se parece com o Carnaval: são festas que movimentam recursos, ocupam a malha hoteleira, trazem turistas, geram empregos, turbinam a arrecadação de fornecedores e prestadores de serviços e distribuem alegria.

Porque qual melhor palavra para definir a noite de uma segunda-feira em que a cidade inteira vibrou com a Banda Sentimentos, a favorita Raphaela Santos e Conde Só Brega? Ou a emoção contida no duelo de violas entre Chico César e Geraldo Azevedo ou em Gal Costa cantando Brasil, com direito ao dedo em forma de L no final? Ou a primeira apresentação em solo pernambucano do quarteto carioca Bala Desejo e Juçara Marçal descortinando Delta Estácio Blues até a última faixa? Ou ainda o show para celebrar os 45 anos de carreira de Cátia de França, que, afiadíssima, causou gargalhadas quando alguém lhe pediu para cantar Kukukaya e ela retrucou: "Vem tu aqui cantar!"? E um espetáculo de dança em que o grupo Experimental nos guiava pelas ruas do centro de Garanhuns, em uma bela experiência imersiva que aliava coreografia precisa e vigorosa com a delicadeza de memórias afetivas?



Conde Só Brega. Foto: Fran Silva/SecultPE-Fundarpe


Banda Sentimentos. Foto: Társio Alves/SecultPE-Fundarpe


Duda Beat no show de sábado (23/7) no Palco Mestre Dominguinhos. Foto: Felipe Souto Maior/SecultPE-Fundarpe

Foram muitas as "trincheiras da alegria" nesses dias na Suíça Pernambucana. No sábado, 23, Romero Ferro, Titãs, Pitty e Duda Beat dividiram a atenção de um público que obrigou o fechamento das entradas da Guadalajara por volta das 22h. A Prefeitura de Garanhuns divulgou que eram 60 mil pessoas. Por volta das 2h30, quando Duda Beat cantou Meu pisêro, sucesso de Te amo lá fora, seu álbum mais recente, e depois encerrou com Bixinho e Tocar você, certamente ao menos metade disso ainda estava na praça. Em êxtase, como a própria Duda estava ("tenho quatro anos de carreira e sempre sonhei estar aqui, nesse palco. Estou muito feliz"), apesar da garoa.

Duas noites depois, outra explosão: a catarse provocada pela noite do brega fez com que as filas começaram a se formar por volta das 18h30. Às 21h, não se podia entrar mais ninguém. Quando Ziane e Ellyson, os vocalistas da Banda Sentimentos, subiram ao palco, teve início uma comoção que emendou com a apresentação da realeza Conde Só Brega - em sua primeira ida ao FIG - e culminou com a entrada de Raphaela Santos. Naquele momento, mais de setenta mil pessoas estavam diante do palco Mestre Dominguinhos. 

A presença de palco de Raphaela é impressionante. Convida a plateia a cantar junto enquanto cumprimenta as pessoas, pega três dedos de vinho na caneca e entorna, explora seu repertório - Não vou desistir e a icônica Só dá tu - e também ataca de ícones do pagode, como É tarde demais, do Raça Negra, e Você me vira a cabeça (me tira do sério), de Alcione. Não houve coro maior do que o dessa segunda, 25. Antes dela, as milhares de vozes já tinham se juntado à do Conde para cantar Espelho do poder, uma das suas composições prediletas ("eu queria ter o dom de poder cantar igual aos pássaros"), tão querida que ele a entoou duas vezes. O Conde se emocionou. A plateia também, muitas e muitas vezes. 

O Brasil atravessa uma fase tão nebulosa, triste e sombria que a alegria é, sim, uma inesgotável fonte de esperança. A arte, a cultura, a música, a dança e a partilha mágica que se engendra entre público e artistas admirados são antídotos contra essa situação posta. Como um reflexo do que podemos e, se tudo der certo, vamos voltar a ser a partir de 2023. Nessas últimas semanas, aqui em Garanhuns, isso tanto se deu na juventude da Bala Desejo interpretando Baile de máscaras (Recarnaval) e Lua comanche ou no Violivoz de Chico César e Geraldo Azevedo, com Mama África e Dia branco. Na bravura e no talento de Cátia de França, que de fato cantou Kukukaya e seus clássicos como Quem vai quem vem, e na energia do axé reverberando no show de Lucas do Prazeres, no palco do Som da Rural, também no Euclides Dourado.


Show Violivoz, de Chico César e Geraldo Azevedo, no domingo (24/07). Felipe Souto Maior/SecultPE-Fundarpe

Isso quer dizer que não teve perrengue? Claro que não. Teve vários. Ainda tem, na verdade. Houve confusão para retirada de ingressos para os shows de Cátia de França e Adriana Calcanhotto, que aconteceriam no palco Estação, no centro cultural localizado bem perto da Guadalajara. Não pode nem deve ser aceitável alguém passar 6h numa fila, como foi o caso dos fãs de Adriana. Um tumulto na entrada da Guadalajara no sábado fez com que a cavalaria da polícia militar fosse para cima da multidão, que derrubou as grades para poder entrar. Gás lacrimogêneo foi jogado. Havia necessidade? Não. Então por que a violência? 

Continuando a lista: o som do palco Pop é caótico. Ora funciona muito bem, como no show do Coco Raízes de Arcoverde, ora patina e deixa banda e audiência perplexas. Que o diga Marco Polo, vocalista da Ave Sangria, que reclamou abertamente no meio da sua apresentação. O horário das apresentações - ou a falta de respeito a ele - também é complicado: Luedji Luna entrou quase duas horas depois na sexta. Foi elegante ao informar a quem lhe esperava que estava pronta fazia tempo… Quem se encantou com Bala Desejo, que surgiu no palco duas horas depois da hora marcada, não pode ver o show de Gal Costa, que começou pontualmente às 22h20. Juçara Marçal e banda, incluindo seu parceiro habitual Kiko Dinucci, também atrasaram e estavam passando o som na hora em que Delta Estácio Blues devia ter começado. Houve dispersão na já reduzida plateia que persistiu para acompanhar um dos melhores momentos deste 30º FIG, nesse experimento eletrônico ancorado na incomparável performance vocal de Juçara. 

Enquanto isso, alguns quilômetros além, a excelência técnica e shows cronometrados com rigor imperavam no palco Mestre Dominguinhos  - a maratona brega, com Carla Marques, começou às 20h04. Por que a distinção? O palco Pop e o Euclides Dourado são o segundo espaço mais frequentado do FIG e merecem zelo e atenção. Outras questões incluem desde a falta de uma divulgação mais consistente para eventos fora do circuito noturno dos shows (como os debates travados do SESC) e a dificuldade da rede gastronômica de atender a demanda de milhares de pessoas. Compreensível: com tudo que foi contido desde 2020, parece que a vontade de estar aqui no festival foi recarregada com uma voltagem mais alta. O que eleva, claro, as expectativas e também o nível de cobrança. As reclamações, endereçadas ao Governo do Estado e à Prefeitura de Garanhuns, instituições que organizam o FIG, hão de ser levadas em conta para a próxima edição.  

Apresentação de Bala Desejo no Palco Pop. Foto: Elimar Caranguejo/SecultPE-Fundarpe

Porque é assim, por exemplo, e não por acaso, com o Carnaval. E porque, claro, em 2023, as pessoas voltarão a Garanhuns. A retomada do Festival de Inverno não apenas regulariza o calendário sociocultural do estado como vislumbra a chance de, sim, termos um Carnaval no frio. Uma folia em que existam os shows oficiais e aquela janela oficiosa, em que famílias recebem suas amizades para um forró no meio da tarde, abrindo uma brecha para instaurar a potência de todo e qualquer carnaval/festival: a de se ramificar muito além dos programas chancelados pela organização. 

Que em julho do próximo ano possamos retornar ao FIG. Com "a dor e a delícia" de ser um evento gigante, para o qual dezenas de pessoas irão, e do qual algumas outras centenas reclamarão, mas que fará milhares felizes. E deixar pessoas alegres em tempos tristes é um feito e tanto. É como seguir o Experimental do Mosteiro de São Bento até a Igreja de Santo Antônio, no centro de Garanhuns, e perceber na dramaturgia de Monica Lira e Silva Góes os vínculos entre passado, presente e futuro para atiçar os corpos que dançam e os corpos que assistem a vivenciar os movimentos na pele. A sentir a paisagem urbana colidir com essa mesma pele e soltar aquela fagulha elétrica que só a arte é capaz de deslanchar. 

Que o FIG seja, como todas as suas contradições e complexidades, o nosso Carnaval em julho. Bem que precisamos de um, para nos alegrar e nos energizar. Estamos em 2022, afinal. Um ano para redefinir o país. 

Pontilhados, intervenção urbana do Grupo Experimental. Foto: Fran Silva/SecultPE-Fundarpe

LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente.

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