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Assembleia Xukuru: com os encantados em defesa da vida

Na 19ª edição, de 17 a 20 de maio, maior evento indígena de Pernambuco debateu a conjuntura política nacional evocando união contra retrocessos e ameaças à existência dos povos originários

TEXTO CHICO LUDERMIR*
FOTOS ERIC GOMES*

*Da Aldeia Pedra d'Água

23 de Maio de 2019

O povo Xukuru de Orubá durante a assembleia de 2019. O adorno da cabeça chama-se barretina

O povo Xukuru de Orubá durante a assembleia de 2019. O adorno da cabeça chama-se barretina

Foto Eric Gomes

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Ao redor de um peji
, um altar em forma de cabana instalado no meio da mata, no alto da Serra do Ororubá, em Pesqueira, Agreste pernambucano, guerreiros e guerreiras Xukuru ritualizavam no ritmo do toré. Pediam aos encantados força e licença para a realização da 19ª Assembleia Xukuru do Ororubá.

Nada naquele território acontece sem a permissão dos espíritos da natureza e dos ancestrais. Ao som do chacoalhar das maracas e da batida dos pés e jupagos (bastões sagrados) no chão, Cacique Marcos abria o maior evento indígena de Pernambuco, que este ano reuniu mais de 2 mil pessoas, entre indígenas e não indígenas de várias regiões do Brasil, em sua maioria acampadas em barracas.

"Nesses três dias, vamos refletir e construir um projeto de vida para os Xukuru e para o mundo", gritou Marquinhos – como o cacique é chamado – para os que lhe rodeavam. "A nossa assembleia rompe as fronteiras do território, é popular e revolucionária. É daqui que vamos transformar o nosso país", continuou, evocando união e aliança, necessárias para a resistência do povo indígena frente a uma política de extermínio que atravessa cinco séculos. 




Realizada anualmente desde 2001, em Pedra d'Água, uma das 24 aldeias do território de 27 mil hectares demarcados, a plenária organizada pelo povo Xukuru é referência nacional devido à sua mobilização complexa e participativa. É um importante espaço formativo para os aldeões e visitantes, além de mesclar as dimensões material e espiritual da existência e da luta dos povos originários. Ao final da assembleia, uma carta elaborada conduziu as decisões políticas do povo para todo o ano.

Nesta edição, a assembleia foi norteada pelo tema Em defesa da vida, eu sou Xikão. A partir desse mote, diversas mesas pautaram a conjuntura política nacional, sublinhando os retrocessos e as ameaças à existência atualmente, decorrentes do governo Bolsonaro, em especial para a população indígena (questão já previsível, e avisada, durante as eleições presidenciais de 2018). "Em defesa da vida significa garantir que os nossos direitos não sejam usurpados e que tenhamos condições de pautar, no contexto nacional, uma política pluriétnica e multicultural”, explicou o cacique. Como em todos os outros anos, o evento aconteceu entre os dias 17 e 20 de maio, celebrando a memória de vida e luta do cacique Xikão, assassinado em 1998 a mando de fazendeiros, na data exata em que se encerra o encontro com uma marcha até o local do crime. 

"Cada assembleia tem uma conjuntura política distinta", relembrou Marquinhos, filho e herdeiro de Xikão, contextualizando o momento atual. A gestão de Jair Bolsonaro, marcada pelo discurso de ódio, compromisso com a indústria armamentista e com o agronegócio, desrespeitosa a qualquer questão identitária, deu o tom de todas as falas. Se já no período de campanha, o atual presidente afirmava que, caso eleito, não haveria sequer "um centímetro de demarcação de terra indígena ou quilombola", depois que assumiu, vem dando sinais de que os quatro anos serão duros para toda a classe trabalhadora (a exemplo da reforma da previdência), e também para a população indígena e quilombola de uma maneira especialmente cruel. 



POLÍTICA DE MORTE
"A política indigenista do governo atual é uma política de morte", afirmou o defensor público federal, André Carneiro Leão, convidado para mesa de análise de conjuntura realizada no domingo (19/5), pela manhã, elencando uma série de medidas de Bolsonaro que colocam em risco a sobrevivência dos 305 povos originários brasileiros.

Em sua fala, Carneiro Leão frisou que, como um de seus primeiros atos, o atual presidente propôs a MP 870/2019, que apontava o desmembramento da Fundação Nacional do Índio (Funai), retirando-a do Ministério da Justiça. Caso a MP fosse aprovada em sua redação inicial, a Funai seria realocada na pasta Mulher, Família e Direitos Humanos, comandada pela ministra Damares Alves, responsável por posições moralistas e conservadoras ("meninos vestem azul, meninas vestem rosa"). A responsabilidade de demarcação de terra, segundo a proposta da mesma medida provisória, passaria para o Ministério da Agricultura, sob o comando de ruralistas do agronegócio, o que estancaria a política demarcatória, como ameaçou Bolsonaro em 2017.

Nesta quarta (22/5), a Câmara aprovou a MP 870/2019, em votação, mas com o ajuste de devolver a Funai ao Ministério da Justiça. É preciso lembrar que, no mês seguinte à proposta da MP, a Funai teve um corte de 90% em seu orçamento, comprometendo, de maneira estrutural, o prosseguimento de suas atividades. Já em abril, decretou-se o fim da Conselho Nacional de Políticas Indigenistas (CNPI), espaço político de participação e controle social. Soma-se ainda as investidas para retirar do governo federal a responsabilidade pela saúde indígena, municipalizando aquilo que hoje tem o formato de subsistema e minando a oferta de recursos e serviços. 

Por último, Carneiro Leão acrescentou ao rol dos retrocessos o decreto de liberação de armas, compondo o que chamou de necropolítica. "Na minha leitura, esse conjunto de medidas significa a volta do extermínio indígena que se dá de formas diretas e indiretas", afirmou. "Quando não matam, deixam morrer, criminalizam e prendem." Não por coincidência, compondo a mesa ao lado do defensor, estavam duas lideranças que já haviam sido presas e mais outras duas que haviam perdido os pais assassinados.

"Enfrentar os nosso guerreiros não é fácil, mas enfrentar nossos espíritos é impossível"

Diante de retrocessos, desmontes e riscos atuais e históricos, a Assembleia Xukuru configurou-se um espaço de articulação da resistência de um povo que tem, cada vez mais, se organizado politicamente, sempre considerando a dimensão espiritual da luta (na assembleia, as pajelanças iniciavam e encerram todos os turnos).

Se na primeira edição, em 2001, 50 pessoas se reuniram debaixo de uma lona, hoje, quase duas décadas depois, a estrutura conta com três telhoças grandes que servem como auditório, dormitório e cozinha – com sete fogões trabalhando para alimentar gratuitamente todas as pessoas presentes. A comunidade inteira se mobiliza para que o evento aconteça, revezando-se em turnos e funções que vão desde à confecção de alimentos até o registro em audiovisual – que transmite a plenária em tempo real –, passando pelas relatorias e comissões de saúde e limpeza. 



A situação política é desalentadora e instável, mas o povo indígena tem apontado formas e caminhos potentes, como este, de se organizar, dando demonstrações importantes de força e articulação. Em 2019, mesmo com o decreto presidencial que tornou a esplanada dos ministérios área de segurança nacional como forma de intimidação, os povos indígenas somaram 4 mil presentes no Acampamento Terra Livre (ATL). Já no ano passado, o povo Xukuru conseguiu uma vitória histórica na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Estado brasileiro a pagar uma indenização de um U$ 1 milhão para reparar os danos causados aos índios pernambucanos. 

As lideranças sabem que o caminho não vai ser fácil, como nunca foi, mas não cogitam retroceder. "Cada governo que vem tem uma estratégia diferente para nos dizimar, mas nós também sabemos nos organizar de muitas maneiras para enfrentá-los", afirmou Kretan Kaingang, do Rio Grande do Sul. Assim como Marquinhos, Kretan também teve seu pai assassinado por fazendeiros, quando tinha apenas sete anos, durante a disputa pela retomada de sua terra.

Atualmente, o líder Kaingang, etnia que conta com 68 mil indígenas, é coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), associação que organiza o ATL. "O principal é a força do espírito. Essa, eles não conseguem neutralizar. Enfrentar os nossos guerreiros não é fácil, mas enfrentar nossos espíritos é impossível", afirma, lembrando que, na votação da PEC-215, os indígenas fizeram chover em Brasília. "Deu raio, quebrou vidro, apagou telão eletrônico. Aquilo foi demonstração de força dos espíritos", comentou o líder Kaingang. 



Se a conjuntura é difícil, Marquinhos já identifica um ponto fraco: Bolsonaro não "aguenta" mobilização. "Ele tem medo da força popular. Por isso mesmo, precisamos ir pra rua para fazer as transformações acontecerem. Estamos pronto pra ir pras ruas. Se for pra trancar BR, vai trancar, se for uma ação mais imediata, de impacto maior, estamos prontos pra realizar", disse. O cacique Xukuru disse ainda que existe uma agenda de mobilizações que planeja se aproximar das instituições, como a Assembleia Legislativa de Pernambuco, as universidades, a Defensoria Pública da União e o Ministério Público Federal. 

Atualmente presidente da Associação da Comunidade Indígena Xukuru, Guilherme Xukuru é um dos nomes mais atuantes da nova geração de guerreiros do seu povo – tem 26 anos e participou de todas as edições da assembleia. Ao lado dele, um grupo grande de jovens tem demonstrado o engajamento e a politização de uma juventude que ocupa, desde cedo, espaços de decisão e planejamento nas aldeias, compondo o grupo Poyá Limolaigo (pé no chão).

Formado em direito, Guila, como é conhecido, atua tanto nos assuntos jurídicos como no planejamento da assembleia e no coletivo de audiovisual Ororubá Filmes, iniciado em 2008, com o objetivo de produzir autorrepresentações longe de imagens exotificadas e caricaturais dos indígenas e fazer registros dos principais eventos comunitários. A construção da Assembleia Xukuru, segundo o advogado, é o ápice da organização do seu povo porque, em torno dela, trabalham juntos todos os coletivos num projeto único. "A assembleia dá o rumo político do nosso povo e recarrega os nossos ânimos e sonhos." 

Frente aos desafios que a conjuntura nacional lhes impõe, Guila se perguntou: "O que Xikão, conhecido como guerreiro da paz, faria nesse momento?". "Qualquer coisa, menos ficar parado frente às injustiças. Em cima do medo, coragem", respondeu, lembrando a célebre frase dita pelo líder assassinado, principal referência para todo o povo.

Os indígenas sempre sentiram o peso do fascismo, como nas práticas de extermínio dos fazendeiros, lembra Guilherme, que viveu de perto a morte de Xikão e o atentado sofrido por Marquinhos, que acabou matando dois indígenas. "Tentam no exterminar de diversas formas, seja tirando recurso da saúde, seja incentivando fazendeiros a terem armas de grande porte", lamentou.

Foi Guilherme um dos responsáveis por homenagear, durante a assembleia, Henry Pereira, militante indigenista assassinado às vésperas do início do evento. A Ororubá Filmes editou um vídeo com um compilado de imagens do parceiro que "tombou". "É claramente um crime que espelha a cultura do ódio disseminada nacionalmente. A assembleia é o espaço pra gente discutir sobre isso e se fortalecer." 

AS SEMENTES DE XIKÃO
De cima de uma porteira, Marquinhos olhou para uma multidão e gritou três vezes: "Eu sou Xikão. Eu sou Xikão. Eu sou Xikão". Sua voz, que no princípio gritava sozinha, é inundada por outras mil, que lhe faziam coro. Era dia 20 de maio, 21º aniversário de morte do seu pai, mártir da luta pela retomada das terras indígenas Xukuru e referência histórica para todo o movimento indígena do Brasil.  

Ao lado da casa de dona Zenilda, viúva de Xikão e mãe do atual cacique, uma multidão se aglomerava  esperando a saída da tradicional marcha que, no ritmo do toré, desce anualmente até o local exato onde, no ano de 1998, o líder Mandaru, foi assassinado, no centro urbano da cidade de Pesqueira.  O ato marca também o encerramento da assembleia, depois de três dias de práticas espirituais e mesas temáticas. É o único momento fora do território demarcado.

“Saímos daqui com a certeza do dever cumprido e nutridos com a força encantada que nos garantiu e proporcionou grandes reflexões”, disse Marquinhos. “Xikão nos mandou caminhar até quando tivermos vida para poder construir esse projeto de sociedade que temos discutido”, completou. Ao grito de “diga ao povo que avance” a porteira se abriu. Por quase duas horas, debaixo do sol e embalados pelo som das maracas, o povo avançou.  

CHICO LUDERMIR, jornalista, escritor e artista visual, com mestrado em Sociologia.

ERIC GOMES é fotógrafo e videasta, com trabalhos autorais em movimentos sociais, manifestações e povos indígenas.

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