Cobertura

As faces de um luto a Joseph Stalin

Com sessão especial no 'Janela de Cinema', 'State funeral' foca na figura morta do ex-líder soviético e nos dias seguintes que levaram o povo a ficar sem chão

TEXTO Alan Campos

11 de Novembro de 2019

Documentário 'State funeral' usa imagens de arquivo do dia do velório de Stalin

Documentário 'State funeral' usa imagens de arquivo do dia do velório de Stalin

Foto Reprodução

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Edgar Morin lembra que o rosto, visto em close-up no cinema, é um recurso artístico para a participação subjetiva do espectador em um fluxo mais afetivo e intenso com as imagens em movimento. Expressões faciais que ocupam o todo do quadro cinematográfico nos jogam para paisagens interiores: somos induzidos a mergulhar nos terrenos internos do outro, nossa imaginação se abre para a amplitude dos sentimentos de sujeitos que apenas conhecemos através da tela. Ao mesmo tempo, essa abertura aponta para nossos seres: para o que depositamos no outro. Neste momento, não estamos dentro de nós, nem no interior do outro, mas na partilha do dar e do receber; habitamos o outro e ele nos habita.

Aquilo que move a experiência fílmica em State funeral (Holanda/Lituânia, 2019), de Sergei Loznitsa, é apresentado através de rostos: por um lado, iniciamos com a pálida imagem cadavérica da face do recém-falecido Joseph Stalin; por outro, centenas de milhares de pessoas participam do funeral e velório do líder da então URSS: elas seguram o choro, elas caem em lágrimas, elas se mostram atônitas ao encararem a deidade fria e imóvel – saudada, perto do final, como “o maior gênio da história da humanidade” por um membro do partido comunista. Elas veem, então, a grande nação sem seu pai, e se abraçam na ação de partilha dessa tristeza.


Cena do filme. Foto: Reprodução

Se Loznitsa escolhe fazer seu documentário apenas com imagens de arquivo dos dias que seguiram a morte de Stalin, é porque seu interesse consiste em, primeiramente, compreender os efeitos que o culto ao grande líder teve sobre o povo soviético. Portanto, não há comentários incisivos nem diretos (em off) do diretor acerca do que aquilo representa como memória histórica, pois seu objetivo é colocar o espectador dentro do fluxo temporal do luto da nação. E o filme é lento, persistente, reiterando constantemente uma economia de faces e gestos semelhantes: corpos em desânimo, implodidos e sem chão.

Do outro lado, a imagem de Stalin é um contraste recorrente de confiança, imponência e majestade. Nos primeiros planos, esse rosto está morto, descansado, tanto que um dos close-ups nas mãos do líder indica que nada ali irá se mover, que aquilo está imerso no silêncio cadavérico. Porém, ao longo das próximas duas horas, o rosto do líder – apresentado em faixas, estátuas, pequenos artesanatos – olha para fora do quadro com esperança, com a vitalidade necessária para mover uma nação em direção ao futuro utópico. Os sentidos que esse rosto aponta, tal força simbólica, não compactuam com a estabilidade perturbadora do corpo sem vida do líder. As paixões são reversíveis, o ânimo vital da imagem de Stalin (que inspirou milhões) cessa de existir e se torna o desânimo da massa; corpos letárgicos, discretos em seus movimentos.

Loznitsa alterna entre os close-ups íntimos do luto e as imagens do mar de pessoas que toma Moscou e a nação, no intuito de reafirmar que os momentos individuais somente são compreendidos a partir do coletivo. Surge a sensação de terra arrasada – tão familiar aos soviéticos, que, em menos de 10 anos antes do funeral, quase perderam a pátria para os nazistas –, o medo de que o futuro tenha sido roubado ou cancelado, de que as possibilidades estejam perdidas. Para garantir que isso não aconteça, os discursos de membros do partido lembram ao povo soviético (e a nós) que a função do agora é preservar a memória, ter fé na nação criada por Lenin e Stalin, proteger a URSS de seus inimigos. Mas as pessoas não se mobilizam por tais discursos, seus rostos reiteram constantemente que o que foi perdido é inalcançável a nós. O documentário permite que uma pequena fresta seja aberta para acessarmos a miríade de afetos que faíscam do contato com os rostos individuais e a massa gigantesca.

Ao final do filme, letreiros nos lembram de que 27 milhões de pessoas morreram sob as ordens de Stalin, de que 10 milhões pereceram de fome e de que, poucos anos depois, a União Soviética passou a olhar de maneira negativa para o governo stalinista. Uma maneira de o diretor afirmar que suas posições não visam idolatrar a figura do ex-líder soviético, mas chamar atenção para os mínimos detalhes de um funeral interminável. Loznitsa é empático ao arquivo que tem em mãos, ele entende que a veneração de milhões a um único indivíduo é um fenômeno humano real. Seu filme é, antes de tudo, uma criação antropológica acerca dos sentidos de pertencer ou habitar um tempo e uma geografia. Entretanto, não existem respostas diretas para entendermos o enigma do culto a Stalin, não cabe ao realizador diagnosticar tal problemática, a parte que lhe sobra é fazer presente uma entidade através da reafirmação constante de seu rosto em imagem. Aquela face que acessamos imediatamente em nossas referências imaginais, o rosto que guiou uma nação, permanecerá sempre um enigma da complicada relação entre afeto, política, marketing, imagem e presença.

Penso que a sessão especial de State funeral no 12º Janela Internacional de Cinema do Recife ter sido, coincidentemente, no mesmo dia da soltura de Lula (8/11) desloca a narrativa do filme para um âmbito humano mais geral. A liberdade do ex-presidente mobilizou corpos acometidos pela angústia com o atual governo (e com a ideia de futuro no geral) a tomarem ruas, praças e redes sociais, no intuito de se deixarem em ebulição por uma alegria tão intensa, quanto cada vez mais rara em nosso contexto sociopolítico. Espaços urbanos e virtuais foram deflagrados e mobilizados passionalmente pela simples perspectiva de vida e de nação que a soltura de Lula representa.

O ex-presidente do Brasil alterou uma dinâmica corporal e social. Longe de serem figuras que podem ser colocadas sob o mesmo patamar histórico e político, me parece que Lula e Stalin, quando colocados em relação, ativam uma narrativa humana e histórica. Acreditamos em indivíduos, em heróis capazes de nos apresentar perspectivas melhores, depositamos fé como algo que não é racional, e sim afetivo, corporal e absolutamente agenciador de realidades.

ALAN CAMPOS é formado em Cinema pela UFPE e atualmente é doutorando em Comunicação pela mesma universidade. Já atuou como crítico em alguns sites e blogs e participou de algumas produções audiovisuais locais.

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