Edgar Morin lembra que o rosto, visto em close-up no cinema, é um recurso artístico para a participação subjetiva do espectador em um fluxo mais afetivo e intenso com as imagens em movimento. Expressões faciais que ocupam o todo do quadro cinematográfico nos jogam para paisagens interiores: somos induzidos a mergulhar nos terrenos internos do outro, nossa imaginação se abre para a amplitude dos sentimentos de sujeitos que apenas conhecemos através da tela. Ao mesmo tempo, essa abertura aponta para nossos seres: para o que depositamos no outro. Neste momento, não estamos dentro de nós, nem no interior do outro, mas na partilha do dar e do receber; habitamos o outro e ele nos habita.
Aquilo que move a experiência fílmica em State funeral (Holanda/Lituânia, 2019), de Sergei Loznitsa, é apresentado através de rostos: por um lado, iniciamos com a pálida imagem cadavérica da face do recém-falecido Joseph Stalin; por outro, centenas de milhares de pessoas participam do funeral e velório do líder da então URSS: elas seguram o choro, elas caem em lágrimas, elas se mostram atônitas ao encararem a deidade fria e imóvel – saudada, perto do final, como “o maior gênio da história da humanidade” por um membro do partido comunista. Elas veem, então, a grande nação sem seu pai, e se abraçam na ação de partilha dessa tristeza.
Cena do filme. Foto: Reprodução
Se Loznitsa escolhe fazer seu documentário apenas com imagens de arquivo dos dias que seguiram a morte de Stalin, é porque seu interesse consiste em, primeiramente, compreender os efeitos que o culto ao grande líder teve sobre o povo soviético. Portanto, não há comentários incisivos nem diretos (em off) do diretor acerca do que aquilo representa como memória histórica, pois seu objetivo é colocar o espectador dentro do fluxo temporal do luto da nação. E o filme é lento, persistente, reiterando constantemente uma economia de faces e gestos semelhantes: corpos em desânimo, implodidos e sem chão.
Do outro lado, a imagem de Stalin é um contraste recorrente de confiança, imponência e majestade. Nos primeiros planos, esse rosto está morto, descansado, tanto que um dos close-ups nas mãos do líder indica que nada ali irá se mover, que aquilo está imerso no silêncio cadavérico. Porém, ao longo das próximas duas horas, o rosto do líder – apresentado em faixas, estátuas, pequenos artesanatos – olha para fora do quadro com esperança, com a vitalidade necessária para mover uma nação em direção ao futuro utópico. Os sentidos que esse rosto aponta, tal força simbólica, não compactuam com a estabilidade perturbadora do corpo sem vida do líder. As paixões são reversíveis, o ânimo vital da imagem de Stalin (que inspirou milhões) cessa de existir e se torna o desânimo da massa; corpos letárgicos, discretos em seus movimentos.
Loznitsa alterna entre os close-ups íntimos do luto e as imagens do mar de pessoas que toma Moscou e a nação, no intuito de reafirmar que os momentos individuais somente são compreendidos a partir do coletivo. Surge a sensação de terra arrasada – tão familiar aos soviéticos, que, em menos de 10 anos antes do funeral, quase perderam a pátria para os nazistas –, o medo de que o futuro tenha sido roubado ou cancelado, de que as possibilidades estejam perdidas. Para garantir que isso não aconteça, os discursos de membros do partido lembram ao povo soviético (e a nós) que a função do agora é preservar a memória, ter fé na nação criada por Lenin e Stalin, proteger a URSS de seus inimigos. Mas as pessoas não se mobilizam por tais discursos, seus rostos reiteram constantemente que o que foi perdido é inalcançável a nós. O documentário permite que uma pequena fresta seja aberta para acessarmos a miríade de afetos que faíscam do contato com os rostos individuais e a massa gigantesca.
Ao final do filme, letreiros nos lembram de que 27 milhões de pessoas morreram sob as ordens de Stalin, de que 10 milhões pereceram de fome e de que, poucos anos depois, a União Soviética passou a olhar de maneira negativa para o governo stalinista. Uma maneira de o diretor afirmar que suas posições não visam idolatrar a figura do ex-líder soviético, mas chamar atenção para os mínimos detalhes de um funeral interminável. Loznitsa é empático ao arquivo que tem em mãos, ele entende que a veneração de milhões a um único indivíduo é um fenômeno humano real. Seu filme é, antes de tudo, uma criação antropológica acerca dos sentidos de pertencer ou habitar um tempo e uma geografia. Entretanto, não existem respostas diretas para entendermos o enigma do culto a Stalin, não cabe ao realizador diagnosticar tal problemática, a parte que lhe sobra é fazer presente uma entidade através da reafirmação constante de seu rosto em imagem. Aquela face que acessamos imediatamente em nossas referências imaginais, o rosto que guiou uma nação, permanecerá sempre um enigma da complicada relação entre afeto, política, marketing, imagem e presença.
Penso que a sessão especial de State funeral no 12º Janela Internacional de Cinema do Recife ter sido, coincidentemente, no mesmo dia da soltura de Lula (8/11) desloca a narrativa do filme para um âmbito humano mais geral. A liberdade do ex-presidente mobilizou corpos acometidos pela angústia com o atual governo (e com a ideia de futuro no geral) a tomarem ruas, praças e redes sociais, no intuito de se deixarem em ebulição por uma alegria tão intensa, quanto cada vez mais rara em nosso contexto sociopolítico. Espaços urbanos e virtuais foram deflagrados e mobilizados passionalmente pela simples perspectiva de vida e de nação que a soltura de Lula representa.
O ex-presidente do Brasil alterou uma dinâmica corporal e social. Longe de serem figuras que podem ser colocadas sob o mesmo patamar histórico e político, me parece que Lula e Stalin, quando colocados em relação, ativam uma narrativa humana e histórica. Acreditamos em indivíduos, em heróis capazes de nos apresentar perspectivas melhores, depositamos fé como algo que não é racional, e sim afetivo, corporal e absolutamente agenciador de realidades.
ALAN CAMPOS é formado em Cinema pela UFPE e atualmente é doutorando em Comunicação pela mesma universidade. Já atuou como crítico em alguns sites e blogs e participou de algumas produções audiovisuais locais.