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'Bacurau', um protesto na sala de cinema

Sem cartazes na escadaria, mas com discurso político na tela grande, novo filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles estreou em Cannes colocando o Brasil no foco do cinema mundial

TEXTO MARIANE MORISAWA, DE CANNES

16 de Maio de 2019

Cena do filme 'Bacurau'

Cena do filme 'Bacurau'

Foto CinemaScopio/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Quis uma daquelas coincidências do destino que a exibição de Bacurau na competição do Festival de Cannes acontecesse no mesmo dia em que milhares foram às ruas do Brasil para protestar contra os cortes na educação. “Tanto a gente aqui como as pessoas lá estão tentando lutar para que não destruam o que foi construído no país. Queremos que a destruição pare”, disse Juliano Dornelles, codiretor do filme com Kleber Mendonça Filho, na coletiva de imprensa, ocorrida nesta quinta (16/5), na manhã seguinte à estreia do filme. “É importante numa democracia demonstrar seus descontentamentos. Apoiamos totalmente os protestos”, afirmou Kleber.

Bacurau é, afinal, um elogio à resistência contra aqueles que querem apagar a cultura e a história e, assim, nos destruir. “É incrível que tenhamos três filmes em Cannes, um na competição, um na mostra Um Certo Olhar e um na Quinzena dos Realizadores, além de uma coprodução na competição, dirigida pelo grande Marco Bellocchio, num momento em que estão tentando esconder a cultura brasileira”, disse Kleber Mendonça Filho, referindo-se a Bacurau, A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Karim Aïnouz, Sem seu sangue, de Alice Furtado, e O traidor, de Bellocchio (uma coprodução entre Alemanha, Brasil e França). “Esta foi uma das 57 razões que nos fizeram ir às lágrimas”, completou o cineasta, ao falar sobre a sessão oficial. A exibição de imprensa, que aconteceu concomitantemente com a de gala, teve algumas desistências, mas também muitos aplausos, o que se repetiu na sessão mista de mercado e jornalistas na manhã desta quinta (16/5).

Os letreiros informam que estamos num futuro próximo, mas o filme começa num tom realista que estabelece Bacurau, o vilarejo fictício no sertão pernambucano, como cenário e principal personagem. Os humanos compõem um panorama variado e rico, da médica Domingas (Sonia Braga) ao assassino com crise de identidade Pacote/Acácio (Thomas Aquino), passando pelo professor Plínio (Wilson Rabelo). Teresa (Bárbara Colen), que está voltando da cidade grande, é quem apresenta Bacurau ao espectador, a bordo de um caminhão-pipa. A cidade está isolada do Sul e sem água, apesar dos esforços de Lunga (Silvero Pereira), uma figura quase lendária, trans, procurada pela polícia e heroína da população local, de liberar o abastecimento – sua simples presença na trama já é uma forma de resistência, como lembrou o ator Silvero Pereira, cuja carreira se ergueu a partir do teatro de sua companhia, As Travestidas, do Ceará. “Temos necessidade de falar sobre isso, ainda mais no Brasil, onde a violência contra a comunidade LGBT é altíssima.” Como tantas outras populações no Brasil e no mundo, Bacurau está nas mãos de um prefeito (Thardelly Lima) que só aparece quando lhe convém, para distribuir alimentos vencidos e remédios que provocam leseira.

Teresa chega para o funeral da avó, Dona Carmelita (Lia de Itamaracá), uma referência na cidade. Depois disso, Bacurau, o filme, começa a ganhar contornos de surrealismo, distopia, western spaghetti, terror, filme de cangaço. Bacurau, a cidade, é apagada do mapa, fica sem sinal de celular e assassinatos começam a acontecer por um bando de estrangeiros e dois brasileiros (Karine Teles e Antonio Saboia) liderados por Michael, interpretado pelo alemão Udo Kier. “Tive três semanas no paraíso”, disse o ator, em português correto.

Ninguém sabe muito bem o que eles estão fazendo ali. “Eu e Juliano conversamos muito sobre isso, mas decidimos dar uma quantidade X de informações, para que o espectador trabalhasse com o que tem. Vou só dizer que eles estão muito bem-aparelhados e têm dinheiro.” Sejam quem forem, o grupo representa, de maneira bem explícita, o colonialismo econômico e cultural, o preconceito e o esnobismo de estrangeiros e moradores do Sudeste brasileiro com a região e com quem tem a pele morena e negra e vive num vilarejo simples, visto como pobre.

Qualquer semelhança com a realidade, portanto, está longe de ser coincidência, mesmo que se trate de uma distopia. “A realidade começou a alcançar o roteiro, não só do Brasil, mas do mundo”, disse Kleber Mendonça Filho. “Então, tivemos de aumentar o volume para 11. Hoje, o Brasil certamente parece distópico em muitos aspectos de seu dia a dia.” Para o diretor, a resistência é nunca perder de vista as coisas em que se acredita. “Não pode começar a achar que um corte de 30% na educação é algo bom.” No caso dos habitantes de Bacurau, eles não vão aceitar tudo passivamente.

Quando esteve em Cannes pela última vez, com Aquarius, em 2016, Kleber Mendonça Filho, Sonia Braga, equipe e elenco fizeram barulho ao portar cartazes denunciando que o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff era um golpe. Por conta disso, o diretor virou persona non grata da direita brasileira, como apontou um jornalista holandês. “Tenho muito orgulho do protesto que fizemos em 2016”, afirmou Mendonça Filho, que também disse estar lutando contra o pedido de devolução de R$ 2,2 milhões referentes à produção de O som ao redor, qualificando a decisão como inédita e sem sentido. Juliano Dornelles citou a fala do colorista do filme após a sessão de gala: “Ele me disse que só assistindo a Bacurau na tela grande percebeu como o brasileiro sofre”. E disse ainda: “Se em 2016 trouxemos cartazes, desta vez fizemos um filme que mostra, de forma ficcional, muita coisa sobre nosso país”. E o mundo parece estar prestando atenção.

MARIANE MORISAWA é uma jornalista apaixonada por cinema. Vive a duas quadras do Chinese Theater em Hollywood e cobre festivais.

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