Cobertura

A morte, ou outras travessias

Um depoimento de experiências vividas junto a rituais de funerais dos povos Lobi, no Burkina Faso, país a Oeste do continente africano

TEXTO LAURA TAMIANA, DE GAOUA E DO RECIFE

 

06 de Abril de 2020

Os túmulos na frente das casas de vilarejos da região de Gaoua

Os túmulos na frente das casas de vilarejos da região de Gaoua

Foto Laura Tamiana

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Pra nós, depois da morte, a alma atravessa novamente o rio, para retornar à terra dos ancestrais...

Assim nos explicava o guia durante a visita ao Museu do Poni (Museu das Civilizações dos Povos do Sudoeste), em Gaoua, cidade no Burkina Faso, país do oeste africano. Era uma das primeiras atividades da terceira edição do Festival Internacional dos Patrimônios Imateriais. O festival, criado pelo contador de histórias burkinabé François Moïse Bamba, propõe um mergulho na riqueza cultural de uma etnia do país a cada ano. Nessa terceira edição, que aconteceu parcialmente no último mês de março – interrompida pela crise do coronavírus –, foi a vez do ramo Lobi, composto por sete etnias. Durante uma semana, estivemos em um grupo de 10 artistas de diferentes países, visitando a cidade e os vilarejos vizinhos, com o intuito de ir ao encontro dos seus habitantes, suas práticas, suas crenças... E partilhando um tanto de nossas culturas também.

Essa visita ao museu nos trouxe um panorama do que, aos poucos, fomos descobrindo como práticas vivas, contemporâneas, que compõem a forma de viver dessas etnias. Os relatos sobre como vivenciam a morte me encantaram especialmente. Conversei bastante sobre o tema com Sirwanè Kambou, o colaborador local do festival. Em breve, teremos aqui, na Continente Online, uma entrevista que fiz com ele.

Durante a programação, em um dia a caminho de um dos vilarejos vizinhos, Sirwanè recebeu a notícia de que estavam sendo realizados, próximo dali, os funerais de um senhor, e que estávamos convidados a participar. Tomamos um caminho de terra que foi ficando cada vez mais difícil para nosso carro de cidade. Estacionamos e seguimos andando a pé. A pedido do Sirwanè, jovens de moto vieram nos buscar e, após alguns minutos, chegamos. Numa grande área na natureza, se reuniam homens, mulheres e crianças, muitas dezenas... De longe já ouvíamos o som do balafon, as percussões, os cantos...

Nos aproximamos e fomos, um a um, depositar moedas num recipiente sobre o caixão, ao lado do qual os músicos tocavam e as pessoas se revezavam dançando ao redor deles, em grandes rodas concêntricas... Nos contaram que antes a pessoa falecida era colocada sentada, muito bem vestida, de óculos escuros, e assim ficava durante toda a cerimônia. Parecia que estava ainda em vida, disseram. Todos vinham saudá-la. Com os cuidados sanitários que foram sendo recomendados, eles adotaram a prática dos caixões. Era de tarde, e ali eles ficariam dançando e tocando até o outro dia de manhã.


Crianças descansam sobre túmulo em vilarejos próximos a Gaoua.
Foto: Laura Tamiana


Não podíamos fazer fotos ou vídeos. Ficou na memória esse campo repleto de pessoas... Uma pessoa fazendo sua passagem... Outras dançando e tocando vigorosamente. E, ao redor delas, muitas outras descansando, conversando ou em silêncio. Numerosas. “Devia ser uma pessoa bem-respeitada”, disse Sirwanè, olhando a quantidade de gente. A poeira no ar, levantada pelos passos de dança, dava uns tons avermelhados a esse quadro, cheio de cores. Antes de partirmos, ouvimos uns choros femininos bem sentidos, entoados como melodia... Nos contaram que é uma função nos funerais, essas mulheres vêm para cumprir a função de chorar.

No caminho da volta, eu na garupa da moto, Sirwanè me perguntou o que achei. “Que, assim como vocês sabem viver, vocês sabem morrer...”, respondi. “Muito bonito ver a naturalidade e a celebração, que inclui a tristeza e a saudade, como em ciclos naturais.” Sirwanè disse que, quando uma pessoa morre bem velha, consideram que ela cumpriu seu ciclo de vida e vai retornar à terra dos ancestrais, é uma celebração. Se a morte chega antes do fim da velhice, consideram que algo saiu fora dos planos. Então, consultam para saber o que aconteceu e fazer os sacrifícios e oferendas necessários. “De toda forma, aqui consultamos para tudo, antes de toda ação importante.” Nessas consultas espirituais, a comunicação se estabelece através dos ancestrais.

No dia seguinte, acordamos com a notícia de que a avó de Sirwanè tinha feito sua passagem. Fomos até a casa da família, na cidade, apresentar nossas condolências. Entramos um a um no quartinho onde descansava o corpo da senhora, para saudá-la. Depois voltamos para o quintal, para cumprimentar toda a família. Nos trouxeram bancos e ali ficamos sentados em silêncio, junto deles. Houve um momento de música, algumas pessoas dançando. Os músicos vêm em visita, revezando-se, para que possa haver música ao longo de todo o tempo que dura as cerimônias.

De repente, vemos uma mulher jovem entrando rapidamente da rua pro quintal, gritando um choro fingido. Um silêncio... Uns começos de riso. Ela continua, fingindo chorar, uma cena dramática. “O que é isso?...”, perguntamos entre constrangimento e curiosidade. François nos explica. A moça é de uma etnia que tem com os povos Lobi o que eles chamam lá de “parentesco de brincadeira” (parenté à plaisenterie, em francês). Um tipo de prática social presente nessa região da África em que certas etnias, famílias ou grupos têm um vínculo estabelecido que permite que seus integrantes possam brincar entre si, provocar, fazer piadas, sem consequências. Como se entre eles houvesse algo que nunca pudesse ser rompido. “Se um Senufo, que é a minha etnia, estiver muito irritado e um Lobi vier dizer a ele para se acalmar, ele precisa ouvir. O contrário também”, continua François. Uma prática para garantir o bom convívio entre os diferentes povos e costumes. “Aqui, essa parente de brincadeira vem, finge que chora, imitia os que estão chorando... Pode chegar a dizer: ‘Ah, mas é só uma velha, por que estão sofrendo?’... E vocês veem como cria um ambiente de descontração?”.

Todos já riam no quintal... Inclusive a gente, agora autorizados. Ela entrou em uma das casas, pegou um vestido branco e botou por cima da roupa. Sempre falando alto, brincando com as pessoas. Tomou a bolsa de alguém... Depois arrumou uma garrafa de plástico pendurada com um cordão no ombro, onde ia recolhendo moedas. Brincou conosco na língua dela. “Uma Catita...!”, dissemos eu e Helder Vasconcelos, meu companheiro, artista de Pernambuco presente também nesta edição e descobrindo o Burkina pela primeira vez. A Catita, ou Catirina, é uma personagem presente em algumas tradições populares brasileiras, entre elas o cavalo marinho. Tem essa função do humor, de mexer com as regras sociais, fazer coisas que só no humor são possíveis... Abrir espaços, em uma transgressão pelo riso. Muito potente ver a força disso num ritual de passagem! O riso no seu sentido mais sagrado.


A "parente de brincadeira" durante velório.
Foto: Helder Vasconcelos/FIPI/Divulgação


Quando achávamos que a profundidade da experiência já era tão imensa, veio de surpresa o convite, feito pelo Sirwanè: “A família sabe que vocês estão aqui acompanhando o festival e ficaria muito honrada se vocês pudessem animar um pouco a cerimônia, tocando e cantando”. Com entusiasmo, aceitamos e voltamos para isso depois do almoço. Seria numa outra área, bem ampla, onde se reunia agora um número maior de pessoas, mas a hora de seguir de lá para outra etapa da cerimônia chegou. Sirwanè pediu então à moça, parente de brincadeira, para nos guiar. Agora ela ia séria, à nossa frente, incumbida dessa missão, nos guiando por ruas, becos, quintais, até chegarmos de volta à frente da casa onde tínhamos estado de manhã. Nesse caminho, ganhamos o direito a uma foto.

O cortejo levando o caixão com a senhora falecida já começava a sair em direção ao local onde seria enterrada. Quem acompanha o cortejo são os homens. “Vocês tocarão aqui, para as mulheres”. E assim foi. Eu, Helder e Fernande Kouadio, artista da Costa do Marfim. Essa parte pôde ser filmada – inclusive por muitas das mulheres presentes –, então deixo o vídeo contar



Ao final, depois de muita música, dança, suor, risos, e traduzida por uma outra parente de brincadeira, agradecemos a experiência, tão única. E a sabedoria de trazerem tanta vida a um momento de passagem – lembrança de que a vida segue em ciclos.

Escrevendo de onde estou agora, de retorno à minha casa no Recife, em quarentena e buscando o equilíbrio em meio a tantas partidas inesperadas e tantas incertezas neste momento planetário, me fortalece relembrar a experiência. Ampliando o olhar, nos vejo seguindo a girar o grande giro da existência, com todos os seus aprendizados... E essa consciência do movimento me ajuda a estar mais presente no momento presente. Que é onde agora podemos estar.

Deste lugar, um grande abraço. Cuidemo-nos, juntos.


Sob o baobá, os túmulos. Foto: Laura Tamiana

LAURA TAMIANA, produtora, artista e terapeuta.

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