"Precisamos lembrar para que as novas gerações também saibam"
O documentário do cineasta Leo Crivellare será exibido no III Ciji, evento que acontece no Recife nos dias 26, 27 e 28 de maio
TEXTO Laura Machado
22 de Maio de 2025
Foto Divulgação
Lembrar para não esquecer - A saga dos judeus no nordeste brasileiro é uma obra documental do cineasta Leo Crivellare que se debruça sobre a história da população judaica através do tempo até chegarem ao nordeste brasileiro. Com roteiro de Crivellare e Ricardo Carvalho, o longa-metragem vai ser exibido no III Congresso Internacional de Judaísmo e Interculturalidade: História e Transculturalidade, no Recife.
De maneira didática, o filme volta no tempo para o período da Inquisição, onde os judeus e os então chamados cristãos-novos sofreram grande perseguição em países como Portugal e Espanha. Proibidos de professar sua fé, uma parcela dessa população veio ao Brasil em busca de um ambiente de liberdade religiosa (coisa que encontraram durante o período holandês, no nordeste brasileiro).
A partir dessa história, o documentário de Leo Crivellare se desenvolve com atenção às vozes de pesquisadores e estudiosos do tema, além de se aprofundar também na figura de Branca Dias, uma mulher pioneira na educação e praticante do judaísmo mesmo quando a religião ainda era proibida.
Para a revista Continente, o cineasta explicou o processo de pré-produção de Lembrar para não esquecer - A saga dos judeus no nordeste brasileiro, além de atestar a importância de continuar narrando histórias.
CONTINENTE Como você começou a se interessar pelo tema da história judaica?
LEO CRIVELLARE Para mim, foi tudo muito novo, porque o que eu sabia sobre o judaísmo e sobre o criptojudaísmo, aqui no Nordeste, era aquilo que todo mundo sabe, uma coisa muito superficial. Sabia que nós pegamos alguns hábitos dos judeus, assim como dos árabes. Falam muito da influência dos mouros no Nordeste e hoje eu tenho a consciência de que não eram exatamente mouros, porque tanto árabes quanto judeus vieram de uma mesma raiz, eles têm muitas coisas em comum. Eu não sabia que cerca de 70% dos primeiros colonizadores aqui no Brasil eram cristãos novos.
CONTINENTE E como surgiu a ideia do documentário?
LEO CRIVELLARE O jornalista Ricardo Carvalho, que é dono de uma produtora chamada RTV produções, é um cara muito culto, muito inteligente, e sempre que ele enxerga um assunto e acha que vale a pena uma abordagem, ele vai colecionando tudo o que possa virar uma ideia, um roteiro. Então, lá em 2016, existiam alguns editais abertos e ele me chamou para conversarmos e me mostrou alguns temas que ele estava querendo desenvolver, e eu curti muito esse tema. A abordagem era um pouco diferente, ele me falou sobretudo sobre Branca Dias, uma mulher extraordinária. Eu também fiquei muito impressionado com a história dela e fui atrás de mais material. Entrei em contato com Tânia Kaufman, que é uma referência em assuntos judaicos, e ela me disse que tinha muita pouca coisa sobre ela. Eu falei para Ricardo: “olha, sobre Branca Dias podemos fazer um curta-metragem, mas um longa, não rola” e sugeri de abordamos outros assuntos, até chegar em Branca Dias. Saí da casa de Tânia com uns 3 livros, me interessei pelo assunto e escrevi um roteiro.
CONTINENTE Você possui algum tipo de relação pessoal com o judaísmo, ou o interesse foi realmente exclusivamente pelo conteúdo?
LEO CRIVELLARE Foi mais pelo assunto, porque essa comunidade tão forte, tão bonita, tão resistente, já me chamava atenção, mas eu fiz um exame de DNA para ver esse negócio de ancestralidade global e eu tenho 8% de judeu. Provavelmente, você também deve ter mais ou menos isso, todos nós [pernambucanos]. O judaísmo é um exemplo de resistência no mundo, independente de posicionamento político, não estou falando se eles estão sempre certos ou não, mas eles certamente são um símbolo de resistência cultural. Inclusive, hoje, me perguntaram “qual é o maior traço do judaísmo que você acha que nós, pernambucanos, temos? O que ficou de maior dessa herança?” Eu fiquei refletindo sobre isso e me toquei que acho que nossa resistência cultural, esse valor que damos às nossas tradições, talvez seja o maior traço. Em Pernambuco, é realmente impressionante como nós preservamos nossas tradições e manifestações culturais, é um exemplo para o Brasil, neste aspecto, e acho que podemos ter herdado deles. Não posso garantir, mas a leitura que faço é essa.
CONTINENTE Durante a pré-produção e as gravações de Lembrar Para Não Esquecer - A Saga dos Judeus no Nordeste Brasileiro, qual foi a descoberta que mais lhe surpreendeu?
LEO CRIVELLARE Essa é uma pergunta boa… Acho que, em primeiro lugar, foi a quantidade de colonizadores que eram cristãos-novos. Eu não sabia disso, e por que isso não é ensinado nas escolas? Nós não temos esse capítulo na história, isso não é ensinado, e acho que é relevante demais para não ser assunto em sala de aula. É uma coisa que diz muito sobre nossa formação. Em segundo, foi a questão de Olinda um dia ter sido chamada de “pequena Lisboa”, e que o judaísmo era praticado aqui livremente. Olinda viveu um tempo de paz em que as pessoas podiam praticar o judaísmo tranquilamente. Por fim, Branca Dias. Ela foi uma mulher incrível e eu fiquei muito impressionado com a sua história, com a garra e força dessa mulher.
CONTINENTE Você acha que os personagens da história e cultura judaica, como Branca Dias, foram apagados?
LEO CRIVELLARE Sem dúvidas, e a Igreja Católica tem um papel forte nesse apagamento cultural. Essa influência, não da igreja católica de hoje, mas da Igreja Católica lá dos séculos XVI, XVII. Eles eram muito radicais em vários conceitos e muito influentes, politicamente. Branca Dias [por exemplo] fundou a primeira escola para mulheres do Brasil, tinha uma visão incrível. Ela ensinou o filho dela, que nasceu sem as mãos, a escrever com os pés. Olhe que coisa.
CONTINENTE No documentário se fala sobre o criptojudaísmo. Você pode definir esse conceito?
LEO CRIVELLARE Esse conceito define uma prática judaica que é feita com artifícios, para que não desconfiem que a pessoa está praticando o judaísmo. Por exemplo, o chapéu do vaqueiro possui aquelas franjas laterais, e eles associam isso àqueles cachinhos que os judeus usam. Você não podia usar aquele corte, então colocaram aquelas franjas, colocaram também uma pequena aba. Eu ficava me perguntando por que esse chapéu é tão pequenininho, por que não fizeram maior? Claro que também tem toda a questão da caatinga, mas podia ser de qualquer outro modelo, mas ele é muito parecido com uma quipá. Todos esses artifícios que eram feitos para que não ficasse evidente a prática do judaísmo são chamados de criptojudaísmo.
CONTINENTE Com base em todas as pesquisas históricas para a realização do filme, você percebe locais como a Rua do Bom Jesus como uma perpetuação da cultura judaica?
LEO CRIVELLARE Sim, eu acho, inclusive, que ela é uma rua que não tem o devido valor, mas o poder público e a comunidade judaica fizeram seu papel e eu não entendo como ela ainda não explodiu, como destino turístico. Germano Haiut, que participa do filme, falou que quando a sinagoga inaugurou, pensou: “agora isso aqui vai dar um salto, vamos fazer conexões com várias cidades importantes”, ele achava que iria rolar um intercâmbio muito maior, o que acabou não acontecendo, e ele disse que mais uma vez se enche de esperança, porque acha que o lançamento do filme pode reacender essa chama e, quem sabe, um novo capítulo da história dessa rua seja escrito. Acho que é uma rua importantíssima, que tinha que brilhar mais, como destino turístico.
CONTINENTE O título do seu documentário remonta à importância de lembrar, de não esquecer. Por que esse título foi escolhido? Qual é a importância que você enxerga em contar essa história?
LEO CRIVELLARE Isso é um ditado judeu: lembrar para não esquecer. É um conceito fundamental da filosofia judaica, porque eles sempre contam para os mais novos de todas as perseguições, migrações, o Holocausto. Eles sempre atrelam a história às festas religiosas, sempre trazem algo, e os mais velhos contam para os mais novos como uma forma de manter a história viva, então eu achei que esse título era perfeito. Acho que essa é uma lição que o povo judeu traz, esse ditado é incrível, porque realmente precisamos lembrar, para que as novas gerações também saibam e que as mensagens não sejam apagadas. É lembrar sempre.
LAURA MACHADO, jornalista das revistas Continente e Pernambuco