Paris, Texas, desapercebido
Vencedor do Festival de Cannes, filme voltou à exibição em comemoração aos 80 anos do diretor e 40 anos de sua estreia
29 de Outubro de 2025
Nastassja Kinski interpreta Jane, um tipo de Penélope, mas mais ao modo da obra Ulisses, de James Joyce, e protagoniza a cena do "peep show" que se tornou clássica
Fotos Divulgação
Pouca gente soube, pouca gente viu a reestreia de Paris, Texas, de diretor Wim Wenders, que voltou às salas de cinema. O filme recebeu restauração em alta definição, e volta à exibição em comemoração aos 80 anos do diretor e 40 anos de sua estreia. Relançada no Festival de Cannes de 2024, a cópia, tecnicamente obtida a partir do negativo original em 35 mm e correção de cor digital, pode ser vista no Brasil desde 25 de setembro. A direção de fotografia é de Robby Muller. O roteiro é de L. M. Kit Carson e Sam Shepard.
No Recife, pude assistir Paris, Texas no Multiplex do ETC da Rosa e Silva. Passou também no cinema do Rio Mar. Na sessão das 20:50, de domingo, na Zona Norte, havia apenas cinco pessoas, contando comigo, vendo o clássico vencedor da Palma de Ouro em 1984. Acho que tinha a ver com o núcleo do drama, também de cinco almas: o casal Walt Handerson (Dean Stockwell) e sua esposa Anne (Aurore Clément); o garoto Hunter (Hunter Carson), Travis (Harry Dean Stanton) e sua ex-esposa Jane (Nastassja Kinski).
Muitos dos nomes que aparecem aqui são de gente morta. O roteirista L. M. Kit Carson morreu em 2014. Sam Shepard, em 2017. Seu último papel mais importante no cinema foi talvez Never here, filme no qual atuou pouco antes de falecer. Harry Dean Stanton faleceu também em 2017. Robby Muller, diretor de fotografia, morreu em 2018.
Entre os vivos, a francesa Aurore Clément, depois de Paris, Texas, teve uma carreira modesta, principalmente no cinema europeu e francês. Atuou em um filme de Sofia Coppola (Marie Antoinette,XXX) e em A bigger splash, de Luca Guadagnino. Tem 79 anos.
Hunter Carson, que tinha entre 8 e 9 anos de idade à época, está vivo. Trabalhou em outros filmes como no remake Invasores de Marte (1986), Mr. North (1988), sem maiores destaques. Sua atuação enquanto adulto não teve altos pontos. Até agora. É jovem. Tem apenas 49 anos de idade.
Nastassja Kinski, 64, está viva. Ainda bem. Depois dos filmes de Wenders (ela havia atuando em de Wenders, antes de Paris, Texas) continuou a atuar bastante, nos EUA e Europa, embora não na mesma escala de sucesso comercial que alcançava nos anos 1980.
O filme conta a história do atormentado Travis (Harry Dean Stanton), andarilho pelo Texas e a luta do seu irmão Walt (Dean Stockwell) e sua esposa Anne (Aurore Clément) para readaptá-lo, quatro anos depois de Travis ter literalmente andado e andado para todo mundo. O drama, que parecerá nunca acabar bem, envolve o filho de Travis, Hunter (Hunter Carson) e a busca de ex-marido por sua ex-esposa Jane (Nastassja Kinski).
Luto. Culpa. Remorso. Ciúme. Medo. Beleza. Paris, Texas é “um western imóvel, sem diligência, sem xerife, sem índio, uma viagem ao deserto tendo como guia um Ulisses taciturno e mudo”, segundo o crítico Claude Beylie, que morreu também, mais cedo, em 2001.
Em uma dessas cenas desérticas, esse Ulisses, Travis anda sobre os trilhos, a caminho de sua Paris, no Texas. Ele veste um boné vermelho que não seria demais terem bordado eletronicamente a sigla M.A.G.A. na cópia digital. Talvez não precisasse: não tem como não ver o homem estadunidense de hoje naquela cena. Aliás, nos anos 80, sua jornada era lida como metáfora da América em crise. Quando Paris, Texas estreou, Travis foi visto como um tipo de herói americano ferido: um homem marcado pelo ciúme e pela perda, em busca de redenção.
Já hoje, à luz do feminismo e do politicamente correto, a leitura se desloca. Travis não é apenas um homem trágico, mas também um agente de opressão: alguém que abandonou responsabilidades, que reproduz uma masculinidade possessiva e tóxica. Sua errância pode vista, hoje, como fuga, não como nobreza. Jane, um tipo de Penélope (mas mais ao modo da obra Ulisses, de James Joyce) ganha grande destaque. Hoje, pode ser vista como uma personagem subalternizada, usada para que o homem tenha sua catarse. A linda cena do peep-show, uma das mais belas do cinema, antes celebrada como momento poético, hoje pode ser lida como voyeurística, cruel, em que a dor da mulher é “enquadrada” pelo olhar masculino.
Assim, se nos anos 1980 Travis representava um drama humano universal, em 2025 ele aparece também como símbolo da falência de um modelo masculino patriarcal, em que a dor do homem não pode mais eclipsar a experiência e a voz da mulher.
Revi o filme. Sua beleza permanece inalterada, por mais ou menos cores que os tempos tendam a dar a tudo.
O filme ficou em cartaz nos salas do Recife somente até 29 de setembro. Agora é procurar ver em streaming ou nas mostras especiais de cinema.