Cinema

Manas e a invisibilidade das garotas do Marajó

O primeiro longa-metragem de ficção de Marianna Brennand estreia nesta quinta-feira (15) nos cinemas brasileiros e, em Cannes, a cineasta receberá prêmio por seu trabalho

TEXTO Laura Machado

15 de Maio de 2025

Foto Divulgação

Em setembro de 2024, o longa-metragem de estreia da diretora Marianna Brennand no mundo da ficção, Manas, recebia o principal prêmio da Giornate Degli Autori, mostra do Festival de Cinema de Veneza, um dos mais significativos eventos para o meio cinematográfico. Depois de diversos meses integrando mostras — e acumulando vitórias — o filme chega oficialmente aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (15).

A princípio, Manas se projeta como uma obra bonita, repleta da relação simbiótica entre homem e natureza, porém, logo se revela muito mais do que isso. É um filme genuíno que traz como tema primordial a violência sexual sofrida por meninas e mulheres na Ilha de Marajó, no Pará.

Situado na Área de Proteção Ambiental (APA), o Arquipélago de Marajó consiste em uma das regiões ecológicas mais importantes do Brasil, além de ser o maior arquipélago flúvio-marítimo de todo o mundo, atraindo turistas brasileiros e de outras partes do globo. Apesar da importância geográfica e variedade de fauna e flora, o arquipélago “abriga quatro das dez cidades com o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país, incluindo a que tem o número mais baixo (0,418), Melgaço”, como explicado na reportagem "As mentiras que atormentam o Marajó", publicada em 2024, na revista Piauí.

Com essa realidade de carência, Marianna Brennand se debruçou em pesquisas e estudos sobre o arquipélago durante 10 anos a fim de construir um documentário que expusesse as lutas do local, mas acabou percebendo que a melhor forma de denunciar as violências sexuais sofridas por meninas e mulheres no Marajó seria através de uma obra de ficção.

“A ficção foi a maneira que eu encontrei de contar essa história de uma maneira que não trouxesse mais violência, que eu pudesse proteger mulheres e crianças que haviam sofrido esses traumas, porque você não deve pedir a uma pessoa que passou por uma violência para recontar essa violência, porque a pessoa vive de novo esse trauma, essa dor”, explicou a cineasta, em entrevista à Continente.

A protagonista da narrativa é Marcielle, uma menina de 13 anos que vive com os pais (interpretados por Rômulo Braga e Fátima Macedo) e irmãos mais novos, no Arquipélago de Marajó, diante de um ambiente que mistura as experiências universais da adolescência com a vida no coração da floresta. Depois da primeira menstruação, ela passa a ser confrontada por um cotidiano de violência velada, onde o silêncio é regra e a fuga é outra prisão.

Além de ser uma obra sensível que explora o amadurecimento, Manas é um filme de muita robustez no momento de expor os abusos sexuais que acontecem com crianças, adolescentes e mulheres na região. Apesar de ser uma ficção, muito da realidade e dos personagens do filme são inspirados em situações e pessoas reais e saber disso cria uma aura de ainda mais força para o longa-metragem de Brennand.

No papel da protagonista, a atriz estreante Jamilli Correa encanta especialmente nos momentos de silêncio. Através de um roteiro cuidadoso, que opta pela não exibição de momentos explícitos de violência, o medo, a raiva, a tristeza e o desespero da protagonista podem ser sentidos através dos olhares de sua intérprete. Como se enxergasse o mundo de verdade pela primeira vez, Marcielle encanta o espectador desde o primeiro momento e se torna impossível não exercitar a empatia por aquela criança.

A empatia, de acordo com Marianna, foi algo essencial para a criação do filme: “Eu acredito que a gente só gera transformação quando a gente consegue se colocar no lugar do outro. Será que a gente consegue transformar um a um, fazendo com que as pessoas se coloquem e sintam através dessa menina o que é passar por uma violência? Isso é uma pauta que tem que ser de todos nós, não é só das manas, não é só de nós, mulheres. Isso é uma pauta de todo cidadão, de todo ser humano: lutar contra a violência contra crianças e mulheres”.

Durante toda sua duração, Manas opta de maneira muito acertada a não exibir os abusos que critica de maneira explícita, uma decisão que acaba por tornar o conjunto da obra ainda mais forte. Na tela de cinema, cada pequena insinuação ganha um peso imenso e, ao espectador, é como um soco no estômago.

A personagem Danielle, mãe da protagonista, também é de extrema complexidade e sua presença em tela escancara as maneiras que tantas vezes o abuso se torna algo quase conjectural, que acontece de maneira tão normalizada que se torna absoluta para suas vítimas. A atuação de Fátima Macedo contribui para que o filme ganhe ainda mais profundidade e a sua personagem é uma das mais tridimensionais de toda a trama. Apesar de amar suas filhas, ela enxerga o marido como um salvador que a livrou dos abusos sofridos ainda nova e, por isso, se torna conivente com suas práticas.

Pela sensibilidade e urgência temática, as razões que tornaram Manas um longa-metragem tão premiado são palpáveis e enfim culminarão na premiação de Marianna Brennand no Festival de Cinema de Cannes 2025, cuja abertura se deu na última terça-feira (13). Celebrando as mulheres no audiovisual, a cineasta brasileira receberá o prêmio Women In Motion Emerging Talent, que lhe presenteia com uma bolsa de 50 mil euros para seu próximo projeto.

“É um prêmio que tem uma força coletiva muito grande porque é um prêmio que reconhece o meu trabalho, mas é um prêmio que é para fortalecer a carreira de diretora de mulheres estreando com seus primeiros filmes. Receber esse prêmio com um filme como Manas, que dá voz às mulheres e que é sobre mulheres é muito especial pra mim. Eu estou realmente muito orgulhosa e me dá energia pra continuar a ter coragem de enfrentar a sociedade patriarcal em que vivemos”, contou Marianna.

LAURA MACHADO, jornalista das revistas Continente e Pernambuco

veja também

"Lispectorante" e o universo de Clarice

"Essa gangue de desajustados carrega um pouco do país como está"

A beleza (quase) invisível de Parthenope