De completo desconhecido a porta-voz de uma geração
Com oito indicações ao Oscar, cinebiografia de Bob Dylan mostra transformação do cantor folk em ídolo do rock
TEXTO Marcelo Abreu
28 de Fevereiro de 2025
Timothée Chalamet compôs um personagem ao mesmo tempo discreto, tímido, obcecado com a música e com uma ponta de arrogância
Foto Searchlight Pictures/Divulgação
Numa entrevista que deu à televisão certa vez, Allen Ginsberg (1926-1997), o maior nome da poesia beat norte-americana, relembrou o impacto que sentiu ao ouvir pela primeira vez a canção “A hard rain’s a-gonna fall”, de Bob Dylan. “Estava na California e lembro que chorei ao perceber que tínhamos conseguido, a tocha da poesia tinha sido passada para uma nova geração”. Esse mesmo espanto dos contemporâneos, ao tomarem contato com a força das palavras cantadas por aquele recém-chegado ao cenário musical no início dos anos 1960, é um dos trunfos do filme Um completo desconhecido, de James Mangold, que trata dos primeiros anos de carreira de Bob Dylan.
O filme, que teve oito indicações ao Oscar, aborda justamente os anos de 1961 - quando Dylan chegou a Nova York - até 1965, quando aconteceu sua polêmica participação no festival de música folk de Newport, no estado de Rhode Island. Durante esses primeiros anos, a música de Bob Dylan foi conquistando admiradores: primeiro no ambiente boêmio do Greenwich Village, cheio de cafés e casas noturnas que incentivam a onda folk. Depois entre militantes pelos direitos civis, entre empresários da música, nas gravadoras, na imprensa, nos grandes espaços de shows e no público em geral.
Procurando fugir dos clichês comuns a esse tipo de filme, Um completo desconhecido vai aos poucos mostrando como as pessoas paravam diante daquele quase adolescente de 19 anos, que chegava com um violão no ombro e, na voz fanhosa com sotaque do interior, ia desfilando letras poderosas, misturando a força dos seus versos com o violão e a gaita. Versos sobre as injustiças sociais, a vida na estrada, o amor. E, no processo, ia estabelecendo um novo padrão de sofisticação na música popular.
A surpresa era justificada. Afinal, parafraseando a canção de Belchior (claramente um de seus seguidores no Brasil), ele era apenas um rapaz norte-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior (no caso, em vez do Ceará, era do Minnesota, lá no extremo-norte, quase na fronteira com o Canadá).
Impressionante a atuação de Timothée Chalamet no papel principal, compondo um personagem ao mesmo tempo discreto, tímido, obcecado com a música e com uma ponta de arrogância. Chalamet toca violão, gaita e piano e canta num timbre parecido com o de Bob Dylan nos primeiros anos. Ótimas também as atuações de Edward Norton (como Pete Seeger, grande nome do folk e incentivador de Dylan em Nova York) e Monica Barbaro, como Joan Baez, outro grande nome do folk e eventual namorada de Dylan (os três, por sinal, indicados ao Oscar). A destacar também a participação de Elle Fanning, como Suze Rotolo (no filme chamada de Sylvie Russo), a primeira namorada de Dylan em Nova York.
Como sempre, quem conhece a história dos personagens reais tende a cobrar um destaque maior a certas figuras que, na simplificação do roteiro, acabam quase não aparecendo. Neste caso, por exemplo, a participação de Dave van Ronk (interpretado por Joe Tippet), cantor e líder da cena folk na época, é menor do que ele merecia no filme de James Mangold. A importante história de Van Ronk, aliás, inspirou o filme Inside Llewyn Davis - Balada de um homem comum, de 2014, dirigido pelos irmãos Joel e Ethan Coen, que se passa no mesmo ambiente nova-iorquino, em 1961.
Em Um completo desconhecido (cujo roteiro é de Mangold e Jay Cocks) também pode-se apontar que não há diálogos suficientes entre o protagonista, suas namoradas, seus amigos e colaboradores, para expor a complexidade do personagem. Dylan, é preciso lembrar, nunca foi mesmo muito de conversa e de dar explicações. O cantor utilizou uma estratégia deliberada de despistar sua trajetória desde o início da fama. Dava entrevistas monossilábicas, confusas, contraditórias, inventava eventos e experiências pelo país, negava as origens, de forma que descobrir como foram seus anos de formação até a fama, suas influências, separar a o mito da realidade, seria, em si, uma tarefa quase impossível. Depois de famoso, Dylan fugiu do público, passou anos quase recluso, apesar de sempre produzindo muito em companhia de amigos. Enfim, um personagem sui generis. Qualquer tentativa de aproximação com a verdade apresenta dificuldades adicionais às que já existem em outros casos. De qualquer forma, eventuais incorreções históricas num filme como esse muitas vezes se devem a opções da dramaturgia, como ocorre fartamente em, por exemplo, Bohemian rhapsody (2018), sobre Freddie Mercury, e Rocketman (2019), sobre Elton John.
O que pode ser sentido como falta diálogos é compensado por uma fartura de músicas da melhor qualidade. Estão presentes muitas das canções mais conhecidas, algumas mostradas ainda em processo de criação. Lá estão, por exemplo, “Blowin’ in the wind” e “It’s all over now, baby blue” (as duas mais conhecidas no Brasil). E também “The times they are a-changin’”, “Girl of the north country”, “Masters of war” e “Subterranean homesick blues”. Emocionante as cenas que mostram os encontros de Dylan com seu ídolo maior, Woody Guthrie (Scoot McNairy), uma lenda do folk norte-americano, na época já doente e hospitalizado. Num dos encontros, ele canta a tocante “Song to Woody”. E claro, está no filme também a hoje clássica “Like a rolling stone”, de onde saiu o verso “a complete unknown”, que dá nome ao filme: Um completo desconhecido.
UM PÉ NO CINEMA
A relação de Bob Dylan com o cinema não é novidade. Em 1967, ele protagonizou o documentário intitulado Don’t look back (Não olhe para trás), feito pelo norte-americano D. A. Pennebaker (1925- 2019), mostrando sua confusa turnê pelo Reino Unido em 1965. Foi quando se intensificaram os episódios de vaias durante os shows, com Dylan sendo chamado de “Judas” e “traidor” da música folk, devido sua decisão de usar guitarra em seus discos e seus shows, a partir de então. O filme foi feito na linha conhecida como cinema direto (ou cinéma verité para os franceses), com a câmera no ombro, o que ainda era uma certa novidade estética na época, mostrando os bastidores da turnê.
Em seguida veio Eat the document, um documentário dirigido pelo próprio Dylan e filmado por Pennebaker, encomendado pela rede de televisão ABC em 1967 (neste caso para abordar a turnê de 1966 em cidades do Reino Unido, além de Dublin e Paris). Dylan passou anos montando e remontando o filme, ele mesmo, numa mesa de edição na cidadezinha de Woodstock, onde morava. O resultado, considerado incompreensível foi rejeitado pela ABC e nunca foi lançado nos cinemas. Houve apenas umas poucas exibições em espaços alternativos e algumas cópias piratas circularam entre os fãs, a partir de 1972.
Em 1973, ele participou como ator no faroeste Pat Garrett and Billy the Kid, filme dirigido por Sam Peckinpah para a Metro-Goldwyn-Meyer. Foi talvez sua participação mais difundida na indústria cinematográfica para o grande público. Além de interpretar um personagem secundário chamado Alias, fez também a trilha sonora do filme, lançada em LP, que contém o hoje clássico “Knockin’ on heaven’s door”.
Renaldo and Clara, de 1978, foi outra incursão no cinema, com 4 horas e 52 minutos de duração. Após breve carreira nas salas comerciais, nos Estados Unidos, foi retirado de circulação. No filme, mistura-se também imagens da turnê Rolling Thunder Revue, de 1975, entrevistas e cenas de ficção. Dylan fez o papel de Renaldo e Sara, sua mulher na época, foi Clara.
Em 2007, o norte-americano Todd Haynes fez Não estou lá (I’m not there) onde Bob Dylan é interpretado por seis atores diferentes, entre eles Christian Bale e Richard Gere, em diferentes fases da vida. O mais marcante foi a atriz Cate Blanchett interpretando Dylan na fase 1966, sempre de óculos escuros, cabelo arrepiado e cigarro na mão.
Dylan foi também tema de dois grandes documentários de Martin Scorcese. Em No direction home, de 2005, os primeiros anos da carreira são abordados em 3 horas e 28 minutos de duração. Em 2019, Scorcese lançou o semidocumentário Rolling Thunder Revue - Uma história de Bob Dylan, que foca na antológica turnê de 1975, para mostrar um Dylan já distante das restrições da música folk, completamente solto na sua poesia e musicalidade, livre para transitar entre o folk engajado, o rock, as letras surrealistas, num clima quase de circo. O curioso é que, fiel à trajetória do protagonista, o filme mistura realidade com ficção, com o próprio Dylan entrando no jogo e se referindo, em entrevistas, a personagens que, na realidade, não existem. O filme usa também imagens restauradas do antigo Renaldo and Clara.
Uma outra participação de Dylan digna de nota no cinema é no filme O último concerto do rock (The last waltz), que enfoca o show de despedida de The Band em 1976, grupo que acompanhou Dylan nos anos 1960 e 1970 e depois seguiu carreira independente. No filme, também dirigido por Scorcese e lançado em 1978, mostra o show de despedida do The Band, com a participação de muitos artistas, Dylan canta “Baby, let me follow you down”, “Forever young” e “I shall be released” e é claramente um dos destaques da noite.
Mas toda essa trajetória no mundo do cinema estava ficando distante com a passagem dos anos, desconhecida dos mais jovens. Em 2025, o lançamento de Um completo desconhecido, de James Mangold, representa uma chance dada às novas gerações de tomarem contato com a experiência existencial que representa ouvir a música de Bob Dylan. Este é o maior mérito do filme.