Cinema

Cinema é a maior diversão do São Luiz, outra vez

Cinema de rua, situado no bairro da Boa Vista, reabre, na abertura da 15ª edição do Festival Janela Internacional de Cinema do Recife, após reformas em sua estrutura

TEXTO Cleide Alves

01 de Novembro de 2024

Inaugurado há 74 anos, o São Luiz é um dos últimos remanescentes dos cinemas de rua e é tombado como patrimônio histórico

Inaugurado há 74 anos, o São Luiz é um dos últimos remanescentes dos cinemas de rua e é tombado como patrimônio histórico

Foto Morgana Narjara/Secult-PE/Fundarpe

Na esquina onde a Rua da Aurora se encontra com a Avenida Conde da Boa Vista, no Centro do Recife, um prédio de estilo protorracionalista abriga o último cinema palácio da cidade. É lá, no Edifício Duarte Coelho, que funciona o São Luiz, desde 6 de setembro de 1952. A famosa e exuberante sala de espetáculos completou 72 anos em 2024 - com várias interrupções nas atividades, algumas de longa duração - e se consolida como um símbolo de outros tempos no bairro da Boa Vista. Fechado em maio de 2022 por causa de avarias, o  Cinema São Luiz passou por obra de restauração, financiada pelo Governo do Estado, administrador do espaço. Para alegria do público cinéfilo pernambucano, as portas reabrem nesta sexta-feira (1º/11), para a 15ª edição do Festival Janela Internacional de Cinema do Recife.

Se você circular por esse endereço, não se deixe impressionar pela aparência do prédio de 15 pavimentos, que há muitos anos reclama, no mínimo, por uma mão de tinta. Quem vê cara não vê coração. Nesse caso, um coração onde cabem 992 pessoas sentadas, com grandes janelas de vidro para contemplação do Rio Capibaribe; um painel do artista plástico Lula Cardoso Ayres (1910-1987) pintado na parede do hall, com representações de sobrados e figuras de folguedos como bumba-meu-boi e maracatu; e um par de vitrais que, para deleite da plateia, são acesos poucos minutos antes do início das sessões, em cada lado da tela, colorindo jarros de flor-de-lis.

Os vitrais do São Luiz são a mais famosa criação da vitralista Aurora de Lima (1915-2016), única mulher a participar do projeto do cinema. Aurora era discípula do artista alemão Heinrich Moser, um dos fundadores da Escola de Belas Artes do Recife, assim como ela. O painel de Lula Cardoso Ayres é uma pintura mural de 1952, com a técnica de óleo sobre parede. "Meu pai pintou o painel lá mesmo, com a temática adequada ao local, como ele sempre fazia em seus trabalhos, o mural representa coisas do Recife, é como se transportasse a agitação da cidade, a vida cotidiana, para o cinema, em cores brandas", declara o engenheiro Lula Cardoso Ayres Filho.

O São Luiz é um cinema palácio, pelo luxo e capricho na decoração da sala, é um cinema de calçada, porque as portas se abrem diretamente para a via pública, e é um cinema de rua, porque está fora dos shopping centers, classifica a arquiteta, urbanista e pesquisadora Kate Saraiva. "Ele foi inaugurado numa época em que cada sala de cinema tinha a sua magia, seu encantamento e sua arquitetura singular, tudo isso criava a atmosfera para a pessoa entrar no filme", destaca Kate, autora do livro Cinemas do Recife, lançado em 2013 com financiamento do Funcultura, e que nasceu do trabalho de graduação em Arquitetura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), defendido pela urbanista nove anos antes.

Único cinema palácio preservado no centro do Recife, o São Luiz recebeu esse nome em homenagem ao fundador, Luiz Severiano Ribeiro, e a São Luiz, Rei da França. "A flor-de-lis dos vitrais e as conchas, palmas e escudos da decoração das paredes remetem ao rei, o gesso do forro, de tão espetacular, parece uma tapeçaria", afirma Kate Saraiva. A sala mantém até hoje a decoração tardia art déco, estilo em voga nas décadas de 1920 e 1930. "O São Luiz é um exemplo de que arquitetura é aquilo que emociona, que transcende", diz a urbanista e integrante do Coletivo Cine Rua, que vai propor à Secretaria de Cultura do Estado a inclusão do cinema num roteiro de visitação do Recife.

Arquitetura - A sala de espetáculos está inserida num prédio de uso misto, comum à época, inspirado na arquitetura protorracionalista - fase que antecede a arquitetura moderna, com uso de novas tecnologias como o concreto armado, marquises e sem adornos nas fachadas que lembrassem o passado - de Copacabana, bairro do Rio de Janeiro, observa a arquiteta e urbanista Guilah Naslavsky, professora na UFPE. De acordo com ela, o Edifício Duarte Coelho foi projetado pelo arquiteto carioca Américo Campello, em 1943, com três blocos: um para habitações, um para escritórios e outro misto, tendo o engenheiro Meyer Mesel como calculista. O pavimento térreo era destinado a comércio, serviço, lazer e ao cinema.

"Nesse tipo de edifício, em formato da letra U, o vazio criado para  iluminar e ventilar internamente, era coberto com telha cerâmica e aproveitado para o cinema. Não se faziam mais cinemas em imóveis adaptados como nos anos 1920", informa Guilah Naslavsky, pesquisadora da arquitetura moderna. O Duarte Coelho, uma construção da B. Dutra e Companhia Ltda, com empreendimento da Incorporadora Imobiliária Recife, ocupa o lugar da antiga Igreja Anglicana (Holy Trinity Church), erguida em 1838, no século 19, e demolida cem anos depois para permitir a obra de alargamento da Avenida Conde da Boa Vista.

Por muito tempo, só havia o Edifício Duarte Coelho na Rua da Aurora (entre a Conde da Boa Vista e a Rua Doutor Sebastião Lins), em meio a casarões e sobrados antigos do século 19, recorda o arquiteto e urbanista Geraldo Santana, professor aposentado pela UFPE. "Moças e rapazes que iam ao São Luiz, nos anos 1960, paravam na sorveteria Gemba, na Rua da Aurora, a mureta baixa margeando o rio, em frente ao cinema, era o quem me quer, um ponto de namoros", diz ele. Geraldo Santana, em parceria com José Fernando Carvalho, projetou o Edifício Novo Recife, na Praça Machado de Assis, que nunca chegou a ser feita, por trás do Duarte Coelho. "O Edifício Tabira (Conde da Boa Vista, 121), na entrada da praça, também previa um cinema no térreo", informa o arquiteto.

Restauração - O cinema que fascina gerações ao longo de sete décadas foi fechado para reparos na coberta, serviços de adaptação na instalação elétrica e melhoria na climatização. Em fevereiro de 2023, num dia de chuva forte no Recife, o sistema de captação de água pluvial colapsou, os reparos da coberta não estavam concluídos e pedaços do forro de gesso decorado desabaram, levando à interdição completa da sala de exibição.

"Contratamos o Estúdio Sarasá, empresa especializada em conservação e restauro, para fazer a recuperação do forro, retiramos cimento e isopor usados em intervenções inadequadas para cobrir perdas, todos os elementos decorativos foram restaurados da forma correta", diz o engenheiro Frederico Almeida, diretor de Obras e Projetos Especiais da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco. A Fundarpe é responsável pela administração do cinema. O serviço custou R$ 950 mil, recursos federais da Lei Paulo Gustavo.

O São Luiz ocupa quatro pavimentos no Bloco A do Edifício Duarte Coelho, térreo e mais três pisos, com hall de entrada, salão nobre no primeiro andar, balcão do cinema logo acima, área administrativa, arquivo, laboratório, cabine de projeção e antiga sala de trabalho de Luiz Severiano Ribeiro. Nova licitação, realizada em agosto, no valor de R$ 2,2 milhões, com verba da Fundarpe e da Lei Paulo Gustavo, vai garantir a colocação de elevador com quatro paradas, acessibilidade em banheiros (agora, haverá sanitários em todos os andares), recuperação de piso, portas, luminárias, letreiro, revestimento de parede, marquises e esquadrias. "São obras que não interferem no funcionamento do cinema e podem ser executadas paralelamente", afirma Frederico Almeida.

Bilheterias antigas, luminárias originais de latão e madeira de imbuia do revestimento de paredes encontram-se preservadas no cinema, tombado como monumento histórico de Pernambuco pelo Conselho Estadual de Cultura em 2008. Ao fim das intervenções, o São Luiz funcionará como Centro de Referência do Audiovisual de Pernambuco, espaço de memória para museu e atividades ligadas à arte cinematográfica, a ser implantado nos andares superiores, diz Frederico Almeida.

O cinema, localizado no número 175 da Rua da Aurora, e construído numa época em que não se exigia vaga de garagem nos prédios, é um ponto de resistência à falta de estacionamento, à violência urbana e ao medo de se frequentar o Centro da cidade, comenta Kate Saraiva. Quando você passar nessa esquina do Recife, por favor, pare em frente ao São Luiz, e se permita conhecer essa história de evolução urbana e do casamento da arte cinematográfica com a arte visual.

Inauguração do São Luiz

[...] A decoração da platéia representa o interior de uma grande tenda real, com vastas tapeçarias suspensas, bordadas com os três lírios de frança, sobre os quais repousam dezesseis escudos de guerra, em lembrança das cruzadas. O teto é como um imenso véu de rede, que grossas cordas amarram. Na frente do palco, os vários ornatos simbolizam as grandes virtudes de um rei, que desceu do trono para subir a um altar: a palma (o prêmio da eterna bem aventurança), a concha (o brasão do peregrino), os besantes (os arautos do valor), a flor de lis (orgulho da casa de frança), e os dois ramos policromados (o perfume de todas as virtudes) em cujo colorido os nossos olhos descansam. Finalmente, as duas colunas esguias e a marquise, moldurando a tela cinematográfica, indicam, na sua simplicidade técnica, a era arquitetônica moderna, e constituem como que uma ligação entre o passado e o presente, entre o longínquo século XIII em que viveu o rei, e o século XX em que vivemos, representado condignamente pela imagem animada, colorida e sonora.

Texto extraído do livro Cinemas do Recife (2013), de Kate Saraiva

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