Começo este texto sobre a música em Bacurau falando sobre gêneros no cinema por duas razões. Primeiramente, para destacar o que acredito ser mais interessante nesse tipo de filme: a relação necessária e consciente estabelecida entre uma película e as outras daquele domínio ao qual se filiam. Também, porque a música é um elemento estético relevante para a realização cinematográfica, não podendo ser encarado como um mero acessório ou algo à parte. Se bem utilizada, a música de um filme pode nem ser percebida, sendo apreciada como uma incorporada à cena de forma orgânica e praticamente indissociável. Por outro lado, não vai ser difícil lembrar de casos em que a música, por mal escolhida, ou mal utilizada, atrapalha o andamento de uma sequência.
Muitos nomes importantes se consagraram e são considerados grandes autores tendo suas carreiras dedicadas aos filmes de gênero. John Ford e Alfred Hitchcock são dois exemplos clássicos de uma lista extensa. Trabalhar dentro de um determinado gênero possibilita usar e redefinir elementos usados ao longo dos anos por realizadores mais ou menos criativos, possibilitando desafios de criar algo inusitado a partir do que poderia ser chamado pejorativamente de clichê e ainda se comunicar com um público já acostumado com as regras desse mesmo gênero. Trata-se do que, em trabalhos criativos, pode se chamar de referência, influência, citação ou, até mesmo, homenagem.
Referências, influências, citações e homenagens estão presentes em Bacurau, em seus diversos aspectos: narrativa, fotografia, montagem, estética e, obviamente, na música.
O diretor americano Martin Scorsese chega a uma conclusão pertinente durante uma entrevista ao historiador de cinema Richard Schickel – publicada no livro Conversas com Scorsese (Cosac Naify, 2011) – em que tratam da importância da música nos filmes dele: “As trilhas pesquisadas – compostas com músicas preexistentes – parecem mais adequadas para filmes de gênero”. Isto porque, segundo ele, é possível trabalhar o ritmo e o clima da cena já sabendo como a música irá integrar-se, levando em conta a movimentação da câmera e a performance dos atores. O curioso no caso de Bacurau é que essa pesquisa foi beber na fonte das referências cinematográficas.
O filme abre com uma imagem de um céu estrelado até revelar um satélite e a visão da terra a partir do espaço, e vai se aproximando do continente americano até encontrar a localização da pequena vila de Bacurau, no sertão Pernambucano, daqui a alguns anos. Ouve-se Não identificado, composição de Caetano Veloso, na interpretação de Gal Costa. É a mesma canção que integra o encerramento de Brasil ano 2000, de Walter Lima Júnior. Lançado em 1969, o filme se passa num Brasil devastado pela Terceira Guerra Mundial. Também pode ser considerado um filme de gênero.
Outro destaque é Réquiem para Matraga, música de Geraldo Vandré para o filme A hora e vez de Augusto Matraga (1965), adaptação do conto homônimo de Guimarães Rosa dirigida por Roberto Santos. Aqui mais uma vez temos um diálogo entre duas obras com suas tramas a se desenrolarem no interior do Brasil, palco de seus embates entre a pulsão de vida e a pulsão de morte.
A presença de Sérgio Ricardo na trilha também reforça a filiação de Bacurau a uma parte importante da filmografia brasileira. Compositor de trilhas importantes – como seu trabalho para os filmes de Glauber Rocha, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em transe, Sérgio Ricardo também é conhecido como cineasta. É dele A noite do espantalho, filmado no interior de Pernambuco, mais precisamente no teatro de Nova Jerusalém, no município de Brejo da Madre de Deus. A canção Bichos da noite – composta para uma montagem da peça O Coronel de Macambira, de Joaquim Cardozo – surge no filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles como uma espécie de hino da localidade de Bacurau. A relação do repente de viola e o cordel, tão presente nas trilhas de Sérgio Ricardo, aqui ganha corpo em uma cena em que Rodger Rogério – cantor e compositor integrante do movimento conhecido como Pessoal do Ceará – enfrenta dois forasteiros empunhando uma viola.
A trilha ainda conta com a bela valsa de Nelson Ferreira, Entre as hortencias, e a inesperada presença da banda inglesa Spandau Ballet, com o hit True. Cada uma dessas faixas já aparecem no filme com suas próprias cargas estéticas e afetivas aproveitadas e, às vezes, remodeladas para se adaptarem às imagens e sons do filme.
"Tem um momento incrível da montagem, Juliano também gosta, que é ficar na Apple Music ou no Spotify ouvindo coisas e pensando no filme. Foi assim que apareceu Hoje, de Taiguara, para Aquarius, e Não identificado. Eu estava ouvindo muita coisa de Caetano, Gal, Maria Bethânia, tenho essa atração pelo som da Tropicália. Aí apareceu essa música linda, que fala de disco voador, fala do céu de uma cidade do interior! Caralho! Aí levei no outro dia para a montagem, falei com Juliano e Edu (Eduardo Serrano, montador de Bacurau), “Vamos ouvir isso aqui”. “Bota aqui” e já tinha um boneco do efeito da cena. Quando deu play, caralho, que negócio incrível! A escolha de música é um negócio muito foda. Você sabe imediatamente que não vai funcionar. Em um segundo, você sabe que não vai dar certo. E quando entra a outra, a certa, 'Uau!'”, contou Kleber, na entrevista concedida às jornalistas Débora Nascimento e Luciana Veras, para a capa da Continente deste mês.
A música em Bacurau, no entanto, não se restringe ao reportório emprestado da música popular. A trilha original do filme é assinada pelos irmãos Mateus Alves e Tomaz Alves Souza. O nome dos dois compositores está atrelado ao cinema pernambucano desde a década passada. Tomaz fez a música de Cinema, aspirina e urubus, de Marcelo Gomes; KFZ-1348, de Marcelo Pedroso e Gabriel Mascaro; foi premiado no Festival de Brasília, ao lado de Karina Buhr, pela trilha de Era uma vez eu, Verônica, também de Marcelo Gomes e já havia trabalhado com Juliano Dornelles no curta-metragem Mens Sana in Corpore Sano. Mateus assina a trilha de Amores de chumbo, de Tuca Siqueira, e, em 2014, recebeu dois prêmios no Festival de Brasília, pelo trabalho no longa-metragem Brasil S/A, de Marcelo Pedroso e no curta-metragem Loja de répteis, de Pedro Severien; além disso, teve três composições suas incluídas em Aquarius, de Kleber Mendonça Filho.
Os irmãos Tomaz Alves de Souza e Mateus Alves, autores de 11 das 20 músicas da trilha sonora de Bacurau. Foto: Divulgação (esquerda) e Alcione Ferreira (direita)
Apesar dos irmãos compartilharem a mesma carreira como músicos e compositores para cinema, Bacurau é a primeira vez que os dois assinam juntos uma trilha sonora. Anteriormente haviam trabalhado juntos na trilha de Amigos de risco, de Daniel Bandeira, cujo crédito está em nome de Tomaz Alves Souza e Chambaril, banda da qual Mateus era um integrante. A razão para isto pode ser explicada na forma diversa com que compõem e executam suas trilhas, com resultados diferentes entre si.
Mateus Alves tem uma formação acadêmica mais tradicional, fez Licenciatura em Música na Universidade Federal de Pernambuco e Mestrado em Composição da Royal College of Music (Londres). Foi na Inglaterra que através de uma eletiva – Música para Cinema – desenvolveu suas habilidades como compositor de trilhas, estudando as técnicas mais tradicionais estabelecidas por Max Steiner – compositor austríaco responsável pela música de diversos clássicos hollywoodianos, Casablanca e Rastros de ódio entre eles – citado por Mateus como uma de suas influências. As trilhas assinadas por Mateus são caracterizadas pelas orquestrações e tendem a ser elemento central dentro de um filme, como é o caso de Brasil S/A.
Já as composições de Tomaz Alves Souza são, em geral, mais discretas, com uso de sintetizadores e ruídos. Tomaz não tem uma educação musical no sentido formal, seu trabalho é um desdobramento da cinefilia. Mateus Alves considera o irmão como uma das pessoas que mais entende de cinema dentre aqueles com quem convive, comparando-o a Kleber Mendonça Filho. Tomaz cita o fato de, ao longo dos anos, a maioria das produções em que se envolveu não direcionarem recursos financeiros suficientes para a música, como razão de ter desenvolvido um processo de trabalho em que a criação, a gravação, a mixagem são feitas de maneira solitária, em seu estúdio caseiro, onde faz grande uso de plugins misturados a alguns instrumentos acústicos. Outra diferença com relação ao trabalho do irmão, cujo trabalho de composição é feito na partitura e costuma colaborar com outros músicos nas gravações.
Embora assinem em parceria a música original de Bacurau, o contraste entre as formas peculiares de criarem e executarem suas composições proporciona dinâmica à trilha, que busca reverberar os diferentes elementos da imagem, do som e da narrativa do filme. É possível notar os ruídos e o som de sintetizadores com seus timbres ao mesmo tempo datados – como em antigos clássicos do sci-fi – e atemporais. A orquestração que preenche e expande a paisagem do Sertão, às vezes de forma harmônica, às vezes de forma caótica. E ainda uma atmosfera de tensão através de uma instrumentação pulsante que mistura música eletrônica e instrumentos acústicos. Essa relação se estabelece tanto entre as composições originais, quanto entre essas e as canções preexistentes. A intenção, mais do que criar uma coesão a partir da semelhança, é criar uma unidade refletindo as qualidades narrativas do filme.
Daniel Davies, John Carpenter e Cody Carpenter durante a gravação do álbum Lost themes, do qual foi retirada a faixa Night, que está na trilha de Bacurau. Foto: Divulgação
Se as diferentes abordagens dos compositores com relação à trilha criam uma complementaridade importante para o resultado visto e ouvido durante a sessão do filme, é interessante entender como conseguem chegar a isso através de influências tão díspares trazidas por cada compositor para o trabalho. Enquanto Mateus Alves bebe no academicismo inventivo de Steiner e na versatilidade rebelde de Bernard Hermann, Tomaz Alves Souza cita Vangelis e Giorgio Moroder, desbravadores dos territórios propiciados pelos sintetizadores, e Alessandro Allesandroni, idiossincrático compositor italiano. Ennio Morricone surge como uma referência compartilhada pelos irmãos. Mateus também reverencia o trabalho da compositora inglesa Mica Levi, de filmes como Sob a pele, de Jonathan Glazer, e Jackie, de Pablo Larrain.
O fato de os dois irmãos terem em comum também o trabalho em outras áreas da realização cinematográfica – Mateus é diretor do curta-metragem de animação Bolhas, e Tomaz assina o argumento de Todas as cores da noite, em parceria com o diretor Pedro Severien – explica a influência de John Carpenter sobre os dois. Carpenter, cineasta consagrado pela sua extensa contribuição ao cinema de gênero, também é citado como uma inspiração importante para os diretores de Bacurau. Uma das peculiaridades desse mestre do filme de gênero é o fato de também compor a música de alguns dos seus filmes. O célebre tema do filme Halloween é uma das suas criações. A presença de John Carpenter em Bacurau não se restringe ao território da influência. Ele está presente como compositor de Night, música lançada no seu disco de estreia Lost themes, de 2015. A afirmação final de que fazer música para cinema é antes de tudo fazer cinema.
LUIZ OTÁVIO PEREIRA é jornalista, roteirista e professor de Jornalismo.