Artes Visuais

“Sou tudo isso”

Pioneiro na arte urbana e envolvido em múltiplas atividades, o paraibano Chico Pereira, 80 anos, se considera um artista volúvel, infiel a si mesmo

TEXTO Carol Botelho

27 de Março de 2025

Foto Leopoldo Conrado Nunes

JOÃO PESSOA - Há quem defenda que só se pode chamar alguém de artista quando a obra adquire tantos elementos identificadores que não prescinde de assinatura. Mas desde que a vanguarda sessentista jogou fora a chatice da estática para viver o delicioso dinamismo do experimentalismo, algo mudou. É preciso emitir identidade mesmo a quem arrancou do polegar a impressão digital em nome da liberdade estética e técnica. “Admito ser um artista volúvel, infiel a mim mesmo, não me prendendo a estilos ou ao mercado, consciente de que não dá para ser identificado por uma marca peculiar que não seja minha história pessoal caótica”, declara Chico Pereira, 80 anos, 60 deles dedicados à arte.

Ao tentar se definir como indefinível, o artista se revela tão somente um coerente contraditório. Contraditório como o próprio fato de ser quase um ilustre desconhecido além das fronteiras paraibanas, mesmo sendo um dos pioneiros, no Brasil, da arte urbana, essa que até hoje utiliza spray e estêncil sobre paredes, em vez de óleo sobre tela.

Mesmo sendo um reconhecido gestor, guardador e curador do acervo artístico e cultural paraibano. “Sou desenhista, sou designer, sou intelectual, sou professor, sou ‘museólogo’, sou escritor.  Eu sou tudo isso. Todos os Franciscos Pereira”, declara o também membro da Academia Paraibana de Letras, fundador do Núcleo de Arte Contemporânea da UFPB, professor aposentado do Departamento de Artes Visuais da UFPB, coordenador do Museu da História da Paraíba, e integrante do  Conselho do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba (Iphaep).

Atualmente residente em João Pessoa, mas nascido em Campina Grande, em 1944, a vida se passa nesse lá e cá entre as duas cidades. A mãe dizia que havia um quê de cigano nessa inquietude residencial. Na morada em que habita há um ano, as caixas abarrotadas de papéis e objetos revelam o que ainda está por assentar ou que jamais ocorrerá. Até que venha a próxima mudança ou a próxima obra de arte.

Não fosse pelo caráter colecionista, a Paraíba não teria um livro que registrasse e guardasse a história cultural do estado: Paraíba Memória Cultural (2011).  “Passei a vida juntando material.  Talvez eu seja a única pessoa que possui, pelo menos a partir dos anos 1960, todo um acervo de documentos e livros sobre a Paraíba, recortes de jornal, catálogos e revistas”.

Saindo da máquina de escrever – que guarda na sala de casa como relíquia – e voltando ao spray, a mais emblemática obra de Chico com a técnica que se convencionou chamar de grafite é o painel Tropicália (1969), representação da influência da pop art acrescida da assinatura brasileira do tropicalismo.  O mural está até hoje na parede do restaurante da antiga Universidade Regional do Nordeste (atual UEPB). “O reitor queria que a obra registrasse em imagens os acontecimentos da época. Era o tempo da pílula anticoncepcional, da conquista do espaço; a figura do astronauta havia se popularizado; e o Tropicalismo de Caetano Veloso e Gilberto Gil não saía da vitrola nem das reuniões intelectuais”.

A inevitável influência norte-americana aparece nas figuras dos quadrinhos de Batman e Super Homem. “Um identificador da Geleia Geral brasileira”, resume Chico, usando o termo cunhado pelo poeta concretista Décio Pignatari para definir aquele Brasil sessentista dos anos 1960 dividido entre a vanguarda e o tradicionalismo.

POP TROPICALISMO

Irônico questionador do conceito da arte, moça inclassificável porque dinâmica e inquieta, o campinense criou a obra ARTE?. “É um trabalho que fiz anos atrás apresentado numa grande coletiva de artistas paraibanos, realizada no Espaço Cultural José Lins do Rego, em João Pessoa,  um grande painel pintado de preto em cujo centro letras maiúsculas recortadas em alumínio formavam a sentença:  ‘ARTE?’”, recorda o artista, acrescentando que a intenção da obra era justamente um convite à reflexão sobre o termo. A ideia era levar pessoas a ver além do objeto artístico, como fez Marcel Duchamp com seus ready-mades.

Desde que a arte conceitual ganhou cadeira cativa, a matéria interessa muito menos do que o ato e/ou o registro do ato. “Como Duchamp, me interessa a ideia, e não a sacralização do objeto artístico. A Monalisa é nada menos que uma imagem pintada com tinta, solventes e vernizes sobre um tecido emoldurado por uma peça de madeira rebuscada que nem faz parte da obra. Dissecada em laboratório, não passa de material vulgar”, compara Pereira.

Um de seus trabalhos, História da arte na era da vulgarização eletrônica e suas interferências ideológicas, consiste em uma instalação composta de assentos de vaso sanitário com frases convidando o espectador a levantar as tampas onde se depara com imagens consagradas da história da arte. Estaria aí, segundo Chico, o enigma do filósofo Walter Benjamin sobre o valor da obra de arte na era da reprodutividade técnica. “O resto é a famosa aura que envolve o objeto artístico como significado histórico.”

A infidelidade temática e estilística seria, para ele, a resposta para o anonimato dentro do cenário artístico nacional.  “Não me considero um artista conhecido, mesmo transitando no espaço da arte brasileira por mais de meio século. Aqui mesmo, na Paraíba, vez ou outra, encontro pessoas que me reconhecem como alguém da cultura, mas se espantam em saber que também sou artista plástico”, conta. Bagagem, porém, Chico tem sobrando. Participou de exposições importantes como a XVI Bienal Internacional de São Paulo (1981) e a Bienal Internacional de Valparaíso (1986), no Chile, além de mostras em países como Alemanha, França, Portugal, Argentina e Uruguai.

Além de registrar a riqueza cultural paraibana em livro, Chico também foi responsável por colocar a feira de Campina Grande em seu devido lugar: o de espaço artístico de arte popular, essa arte que ainda teimam em separar da chamada erudita. Ambas, para o artista, são nada menos que a mesma coisa: arte. “A estética da feira vai do horripilante ao belo das barracas de cordel, do cantador, da gastronomia. É uma síntese da cultura regional. A feira possui um modus operandi social. As cidades nasceram das feiras ”, afirma o artista-escritor-pesquisador, autor da obra Feira de Campina Grande: um museu vivo da cultura popular e do folclore nordestino (1977),  editado pela Universidade Federal da Paraíba.

Somente 40 anos depois, em 2017, foi que a feira ganhou o título de Patrimônio Cultural. Recentemente, a obra esgotada ganhou nova edição, de capa dura, com ilustrações do artista paraibano Flávio Tavares, pela editora do jornal A União. “Desde que me envolvi com as artes, entendi que as manifestações artísticas, de qualquer natureza, são expressões exclusivas do ser humano. Uma invenção como qualquer outra, mas diferente porque se destina ao espírito, ao conforto da alma, à embriaguez dos sentidos, transitando entre o espaço da alegria e da tristeza, do real e da ficção”, resume liricamente o sentido da arte. Para ele, na arte só existe uma certeza: a eternidade. Mas não sem ressalvas.  “É um adendo à humanidade e viverá enquanto o homem existir.”

 Em Chico a arte chegou cedo, ainda na infância, quando se apaixonou pelos gibis. “ Eles me ajudaram a  ler e entender o mundo com mais facilidade, discernir desde cedo o bem e o mal, a percepção da ética e a realidade das coisas vulgares, a existência do heroísmo, da covardia, ficções, desejos de ir além dos limites, sonhos…”.  Mais tarde, o cinema e a literatura também fizeram esse papel. “ Comecei reproduzindo figuras legendárias do faroeste, da Disneylândia, e outras imagens do universo impresso.” Não demorou para o jovem ingressar na Escola de Artes de Campina Grande.  “O ensino academicista e realista do desenho anatômico e da pintura tradicional me ajudaram a adquirir as técnicas necessárias para atuar como ilustrador”, recorda Pereira, que também estudou desenho técnico no Senai.

 Mas antes mesmo dos gibis e da escola de artes, o forro da Catedral de N.S. da Conceição, padroeira da cidade de Campina Grande, foi o primeiro a chamar a atenção do ainda menino para o universo artístico no qual futuramente mergulharia de cabeça, técnicas e tintas. Pintado pelo artista paraibano de Sumé, Miguel Guilherme (1902-1995) – que encantava fiéis e crianças ao retratar com seus trompe l’oeil (expressão em francês que significa engana o olho) a cena celestial da padroeira rodeada por anjinhos nus e com asas flutuando no espaço. Infelizmente, nos revela o artista, nos anos 1960, com as reformas de João XXIII, as pinturas foram sumariamente apagadas.

“Lembro também de admirar a revista O Cruzeiro, com as ilustrações de Cândido Portinari sobre os capítulos semanais do romance Os cangaceiros, de José Lins do Rego, dos desenhos do (cearense) Aldemir Martins e da leveza dos tons pastéis do (ilustrador de moda mineiro) Alceu Penna. Foi meu primeiro contato com a arte moderna brasileira”, afirma Chico.

Tais influências e o interesse pela estética de ficção científica, do cosmo, do Surrealismo e do Futurismo,  misturada à realidade urbanas com toques lúdicos, filosóficos e irônicos fizeram Chico colocar os dois pés na pop art, impregnada de geometria, abstracionismo e figurativismo.  “Me divirto quando uso técnicas tradicionais da pintura na era que tudo isso pode ser feito pelo computador”.

 Ao visitar a 9ª Bienal Internacional de São Paulo, em 1967, Chico ampliou, e muito, o repertório Pop Art, principalmente norte-americano, exibido nas obras de Robert Indiana, Jasper Johns, Roy Lichtenstein, Andy Warhol, Robert Rauschenberg, James Rosenquist, George Segal, Edward Hopper e tantos outros. Tantos outros que a bienal ganhou o apelido de Bienal Pop, e foi muito criticada pela ausência de critério curatorial, e bastante prejudicada pela censura militar, que retirou da exposição muitas obras e dificultou o trabalho da imprensa.

OS PAINÉIS

Com a grandiosidade dos painéis e murais, criou fama, ao menos em Campina Grande e João Pessoa. O painel de cobogós feito de quadrados, círculos e diagonais inspirado nas redes de dormir decora um dos espaços da Estação Cabo Branco de Ciência, Cultura e Artes, em João Pessoa. Varanda de Rede, um paredão de 40 metros, foi encomenda de Oscar Niemeyer, que assinou o projeto arquitetônico do espaço. “Tornei-me uma espécie de representante informal do escritório de Oscar Niemeyer aqui”, comenta. Também assina o mural de cerâmica vitrificada Civilização do couro (1993) , em Campina Grande, contando a história da indústria do couro em tons ocre e desenhos geométricos cheios de curvas.

A cidade-natal também ganhou, em 2017, no Parque de Bodocongó, um painel azulejado que traz uma alegoria da evolução da cidade conhecida como Rainha da Borborema. Da colonização à chegada das primeiras indústrias, do trem e do automóvel, o azul faz a ponte com o barro e com a azulejaria portuguesa.“Esse mural foi pichado. Basquiat, um dos mais valorizados artistas do mercado mundial, veio dessa cultura da pichação. Fazer o quê?”, resigna-se.

 A primeira exposição individual, Arte das Cousas, aconteceu em 1965, no hall do Teatro Municipal Severino Cabral, em Campina Grande.  O evento contou com o show Do Modernismo à Bossa Nova, dirigido pelo pernambucano Jomard Muniz de Britto, com a participação do percussionista Naná Vasconcelos e a cantora Tereza Calazans e foi marcante para o artista.  “Nessa noite, uma caravana vindo de João Pessoa e Recife veio assistir ao espetáculo, cujo cenário era de autoria de Anacleto Eloi, o mesmo que projetou a minha exposição. Foi quando conheci Jomard e os visitantes, que logo mais à frente formaria a emblemática geração de jovens artistas e intelectuais do eixo Recife/Olinda/João Pessoa/Natal/Campina Grande,  marcada pela poesia-processo, pelo Cinema Novo e pelo Tropicalismo.” Quando Jomard lançou seu Manifesto Tropicalista, no Recife, paraibanos e pernambucanos se reuniram em torno dos ilustres Caetano Veloso e Gilberto Gil. 

Em 1966, integrou o primeiro grupo de artistas de Campina Grande, a Equipe 3, ao lado de José Anacleto Eloi de Almeida e Eládio Barbosa. “Nossa primeira ação foi viajar pelo Brasil para visitar exposições. Além da Bienal de São Paulo, fomos ao Salão Nacional de Belas Artes da Prefeitura de Belo Horizonte, em Minas Gerais, onde aproveitamos para conhecer a arquitetura moderna de Oscar Niemeyer, na Pampulha, e depois o barroco das cidades coloniais de Sabará, Ouro Preto e Congonhas”, revela Chico.  Em Brasília, o trio visitou o Salão Nacional de Arte Moderna e a então nova capital do país,  “com a sua instigante arquitetura e o modelo urbanístico do plano piloto”.

 A intervenção urbana “Um dia de sol” (1979) já chamava atenção para o meio ambiente quando a crise climática era algo tão distante quanto Marte.  “No verão de 1979, no final da tarde de um domingo, eu e os garis da prefeitura de João Pessoa recolhemos o lixo deixado pelos banhistas nas praias urbanas da cidade, entre os bairros do Cabo Branco e Manaíra”, relata. Ao separar o lixo orgânico do industrializado, colocar em sacos transparentes e pendurados em frente ao então badalado Hotel Tambaú, estava pronto o cenário para um show da Banda 5 Estrelas, da Bahia, contratada para o happening.  No dia seguinte, alguém ateou fogo aos sacos de lixo e o material novamente voltou para a areia. “Estava dado o recado.”

MUSEU É FUTURO

Em casa, no centro de João Pessoa, Chico nos mostra uma parte do painel Love Air Force, a Força Aérea do Amor, criado nos anos 1990, um avião gigantesco cujo nome vem dentro de um coração. “É o avião de bombardeio da Segunda Guerra Mundial, o mesmo que disparou a bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki.” Em sua morada está também outra representação irônica do amor, um coração todo feito de chaves.

Aliás, a simbologia do coração se transformou em verdadeira obsessão para o artista, que guarda uma caixa com diversas representações do coração, em desenhos, objetos e embalagens de produtos, desde que começou a produzir a série, em 1970. “É a imagem mais comercializada do mundo. É antiga e contemporânea ao mesmo tempo.” No caso das chaves,  “é uma coisa que está dentro da velha tradição do mito do coração, que passou a ser uma espécie de símbolo dos sentimentos humanos. Daí porque, desde a antiguidade, o coração existe como o centro das emoções”, explica.  Chico já fez coração em serigrafia, litografia, retalhos, em acrílica…

O lado gestor-museólogo-curador de Chico Pereira está carimbado na Paraíba desde 1967, quando foi convidado a desenhar a ocupação do antigo edifício da reitoria da Universidade Regional do Nordeste-URNE (atual UEPB), em Campina Grande, para abrigar o Museu de Arte Assis Chateaubriand (MAAC). “Me iniciei no mundo dos museus numa época em que essas instituições eram sinônimo de antiguidade, uma casa para abrigar arte, história e ciências de ontem.  Mas já naquela época se falava da importância de esses espaços museológicos serem dinâmicos, destinados não apenas à preservação de memórias passadas, mas também presentes e futuras, mas, também, à educação, informação, lazer, ensino e pesquisa.”

Apesar de acolher museus públicos e privados, segundo Chico, a Paraíba ainda carece de museólogos profissionais. Mesmo sendo uma formação acadêmica antiga, a museologia não era uma atividade obrigatória como nos dias atuais. “Agora o governo está fazendo concurso para museólogos, arquivologistas, paleontólogos, geógrafos e historiadores”, comemora Pereira, um museólogo ad hoc, como se define. Daí a vocação para a coleta de materiais de pesquisa como livros, revistas, catálogos, jornais, fotografia e documentos que culminaram na importante publicação sobre a cultura paraibana.

Cultura essa que, em Francisco Pereira, se mistura com outra a universal: “Não esperava chegar a ver a conquista do espaço, a liberdade sexual, a queda da União Soviética, guerras na Europa, as mídias digitais e tantos outros acontecimentos que só existiam na imaginação ou em ficção. Essas coisas absorvidas lentamente foram se incorporando como os moluscos que se prendem ao casco da embarcação, que, mesmo removidos do barco, voltando ao mar, eles retornam. Os acontecimentos ficam impregnados na nossa vida. Mas navegar é preciso…”.

CAROL BOTELHO, repórter das revistas Continente e Pernambuco.

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