Artes Cênicas

"O teatro enfrenta o desafio de se adaptar"

Diretora de "O Estrangeiro_reloaded", em cartaz no Recife nos dias 24 e 25, e protagonista de "Ficções", nos dias 10, 11 e 12 de setembro, Vera Holtz fala sobre a carreira e o teatro brasileiro

TEXTO Felipe Cordeiro

23 de Agosto de 2024

Vera Holtz em cena de

Vera Holtz em cena de "Ficções", baseada em "Sapiens", de Yuval Harari

Foto Flávia Canavarro/Divulgação

Vera Holtz é uma legião: de personagens, memórias e linguagens. Poucas pessoas transitaram com tanto prestígio em locais tão distintos como uma peça de Gerald Thomas, uma novela das nove, um feed de Instagram e um texto de James Joyce. Vera passou e passa por cada um desses ambientes como uma operária incansável, que cumpre religiosamente o seu ofício. Ela afirma ser muito intensa, mencionando que entra “dentro do vulcão” e que, em qualquer obra, se envolve profundamente. Diz que, se está presente em algum lugar, está ali por completo, sem desejar estar em outro lugar senão ali com os demais. Mas, quando algo termina, ela simplesmente vai embora: “Eu seduzo e abandono” (risos). “Cem por cento entusiasmo e zero expectativa”, como a define seu parceiro de cena, o italiano Federico Puppi.

A intensidade e o flerte com as mais diversas artes que marcam cada uma de suas atuações estarão em evidência nas temporadas dos espetáculos O Estrangeiro_reloaded e Ficções, que a artista apresentará no Recife nesta semana, nos dias 24 e 25 de agosto, e nos dias 10, 11 e 12 de setembro, respectivamente, no Teatro do Parque. Em O Estrangeiro_reloaded, Vera atua como diretora do solo de Guilherme Leme. Já em Ficções, ela é a protagonista, dividindo a cena com o músico Federico Puppi, sob a direção de Rodrigo Portella. Em entrevista à Continente, Vera compartilha os bastidores dessas montagens, sua visão sobre o teatro brasileiro e as nuances de sua trajetória tão complexa.

CONTINENTE Tanto O Estrangeiro_reloaded, inspirado no livro de Albert Camus, quanto Ficções, baseado na obra de Yuval Harari, têm suas origens em textos literários que circularam amplamente antes de serem adaptados para o teatro. Além dessa coincidência, que outros paralelos e divergências você percebe entre essas peças?
VERA HOLTZ Eu acho que há uma diferença marcante entre elas. O Estrangeiro foi escrito por Albert Camus em 1942, enquanto Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, que inspira a nossa peça Ficções, é de 2011. As narrativas são bem distintas. Camus escreveu no contexto da Segunda Guerra Mundial, e a obra reflete esse período. Já Ficções se apresenta como uma obra de caráter científico-filosófico, oferecendo uma reflexão sobre o Homo sapiens. Enquanto O Estrangeiro é repleto de imagens absurdas e trata da individualidade do personagem, Ficções explora a questão do coletivo. Camus foca na história de um indivíduo, um drama pessoal, enquanto Ficções aborda a sobrevivência da espécie humana como um todo, com suas potências para o bem e para o mal. Então, já não é mais uma história individual de um drama de guerra. Em O Estrangeiro, a história é sobre um homem que é julgado e condenado não por seus atos, mas por não demonstrar emoções esperadas em momentos sociais, como no luto pela morte da mãe. É uma peça que pode ser vista como um olhar sobre o “cancelamento”, o julgamento simplista e as normas sociais. A peça se passa no momento em que ele está refletindo sobre o fim, relembrando a história, de acordo com a montagem que estamos encenando. A narrativa é mais introspectiva e filosófica, refletindo um amadurecimento tanto do texto quanto da nossa interpretação. Na remontagem que fizemos, o Guilherme queria enxugar ainda mais a peça e trazer questões pessoais e desse amadurecimento. Então, a obra se funde com as experiências individuais e se transforma em um projeto mais performático, onde a atuação se entrelaça com as vivências do ator, enquanto antes havia um distanciamento maior.

Guilherme Leme, protagonista de O Estrangeiro Reloaded. Foto: Gustavo Leme

CONTINENTE A primeira montagem de O Estrangeiro, em 2010, marcou sua estreia na direção. Você e Guilherme Leme já haviam trabalhado juntos anteriormente, tanto na TV quanto em projetos teatrais, como Medeamaterial (1994), do Bando de Teatro Olodum. Como é essa parceria, especialmente considerando que você começou atuando ao lado dele e depois assumiu a direção? Como essa dinâmica cênica evoluiu ao longo do tempo?
VERA HOLTZ Sim, a primeira montagem com o Guilherme foi de fato um marco, pois foi meu primeiro trabalho de direção. Nossa parceria começou na novela De Corpo e Alma (1992), e, desde então, nosso relacionamento foi se estreitando; inclusive, tivemos um relacionamento afetivo por um período. Nossa primeira colaboração teatral foi com Medeamaterial, uma peça baseada na obra de Heiner Müller, e a partir daí nossa relação artística evoluiu. O processo de amadurecimento na parceria é muito interessante. No teatro, há uma riqueza de experiências coletivas, mas também é um campo onde a vivência individual é crucial. Trabalhar com o Guilherme me deu uma compreensão mais profunda tanto de sua visão criativa quanto do seu estilo de direção. Nosso relacionamento começou de forma mais objetiva, mas com o tempo, se transformou em uma mistura de afeto, inspiração e transpiração, tudo embolado. Conheço Guilherme profundamente agora, não só como criador e diretor, mas também como pessoa. Esse conhecimento vertical da pessoa permite uma colaboração mais eficaz e um diálogo mais direto nas escolhas artísticas. Além dos trabalhos em teatro, como os musicais Romeu & Julieta (2018), com músicas de Marisa Monte, e Merlin e Arthur (2019), também colaboramos em outros projetos. Um exemplo é a sequência de Camus, com a peça A Peste (2018), que ele realizou com Pedro Osorio, e sei que ele ainda planeja fazer mais uma, completando uma trilogia. Guilherme tem um espírito criativo muito forte e está sempre desenvolvendo novos projetos.

CONTINENTE Agora, falando especificamente sobre Ficções, a peça explora muitas construções que inauguram novos mundos na sociedade e no campo da criatividade. Como vocês enxergam que o teatro contribui para a criação dessas novas perspectivas e quais são as possíveis influências dos desafios atuais, como a Inteligência Artificial, nessa criação?
VERA HOLTZ Essa é uma questão muito relevante, especialmente considerando o impacto crescente da Inteligência Artificial em vários setores. A discussão sobre o que permanece e como o ser humano lidará com a IA é central no momento. A IA levanta questões sobre direitos autorais e a organização da criação artística. Na nossa área, há uma crença de que a presença física e a experiência direta do teatro são insubstituíveis. Enquanto a tecnologia pode auxiliar na criação, como na elaboração de cenários, a essência do processo criativo humano — a “mágica” da criação — é algo que a IA ainda não pode replicar. O teatro, assim como outras formas de arte, enfrenta o desafio de se adaptar, mas sua função como espaço de criação permanece única. Pode ser que se transforme e incorpore novas tecnologias, mas o pacto cênico — a experiência de assistir a uma performance ao vivo e acreditar nela — é algo que parece permanecer imutável. Vivemos uma época de grande fluxo de novidades e mudanças rápidas, o que gera ansiedade e dificulta a percepção crítica. É importante ter paciência e permitir que as inovações se acomodem para que possamos ter uma visão mais clara do que permanece e do que muda. Apesar dos desafios, a essência do teatro e da criação artística continua a se reafirmar, oferecendo uma perspectiva única sobre a nossa experiência e criatividade. Estamos recebendo uma enxurrada de novidades, e isso está tudo muito misturado, quase empapado, como se estivéssemos virando xaxim. Mas em breve tudo isso vai se assentar, e outras coisas surgirão. É preciso ouvir com atenção e entender que uma coisa vai se estabilizando enquanto outra passa. A ansiedade está muito grande na humanidade e a sociedade está enfrentando questões ainda mais graves. Talvez não tenhamos o distanciamento crítico necessário para perceber tudo isso. Mas nós, que já ultrapassamos a linha do horizonte (risos), já conseguimos ver o pôr do sol de outra forma, de outro lugar (risos).

CONTINENTE Falando sobre as diferentes linguagens, como teatro, música, tecnologia e cinema, é evidente que você tem uma ampla gama de referências. Quais são as obras e experiências que mais impactaram sua formação e que permanecem com você até hoje? 
VERA HOLTZ Algumas experiências tiveram um impacto profundo na minha formação artística. Em termos de teatro, lembro-me do Festival Internacional de Teatro no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde tive a oportunidade de ver espetáculos de grandes nomes como Bob Wilson, Peter Brook e Víctor García. Essas experiências foram cruciais para minha relação com o teatro, pois eram obras modernas, contemporâneas, que traziam uma visão inovadora e expandiram muito minha compreensão da arte teatral. No campo das artes visuais, tenho uma grande afinidade com a arte contemporânea. Frequentava as bienais e eventos como a Documenta, de Kassel, que é conhecida por sua arte conceitual. Esse tipo de arte me proporcionou um deslocamento significativo em relação à minha formação em artes plásticas, que, na época, não permitia um estudo mais aprofundado de certas áreas. Quando estudei artes plásticas, nem cheguei na parte de performance. Nós paramos nos grandes gravuristas, pois havia um volume de estudo a ser cumprido e o tempo não permitia ir além disso. Na música, parávamos em Debussy e nem chegávamos a conhecer Béla Bartók. Sou de 1952, e naquela época o estudo se limitava a certos pontos e não avançava além disso.

O teatro brasileiro sempre foi muito inovador e avançado, com várias linguagens e festividades marcantes, especialmente nas décadas de 1960 e 1970. Não sei até quando durou, mas pegava, por exemplo, o Grupo Galpão, e aquilo explodia a sua cabeça. Bob Wilson que tinha espetáculos de 12 horas. Em Yerma (1971), de Victor García, havia uma lona imensa que se erguia e as pessoas apresentavam em cima daquela lona, naquela montanha que surgia. Aquela época, era a época dos grandes encenadores e dos grandes cenógrafos. A linguagem cênica do teatro integrava música, luz, artes plásticas e cenografia, com uma gigantesca intersecção de linguagens. Elas se casam, unem-se para contar uma história. No meu caso, a relação com artes visuais e música é muito importante. Sempre gostei de músicas que eu não compreendia completamente, como as de Béla Bartók. Eu sempre me atraí pelas coisas que não entendia.

CONTINENTE Eu vi você mencionar que, ao trabalhar com Alcides Nogueira em Ópera Joyce (1988), você não entendeu nada do que estava acontecendo. 
VERA HOLTZ Não entendi nada e falei: “Então é isso que eu quero fazer!”.

CONTINENTE Você parece ter uma relação com o texto como se fosse uma imagem.
VERA HOLTZ Tenho, totalmente.

CONTINENTE O texto é essa imagem que te fascina, e isso fica evidente quando você trabalha com Gerald Thomas e outras pessoas que têm essa característica muito latente. 
VERA HOLTZ Total.

CONTINENTE Achei interessante você mencionar que, durante seus estudos de artes visuais, não chegou a explorar a performance. É impressionante como, depois, isso se tornou quase preponderante em seu trabalho.
VERA HOLTZ Totalmente presente. Essa questão da performatividade, que você lembrou muito bem, realmente, a minha vida, o meu estudo, o meu processo criativo é pautado pelo visual; eu primeiro entendo a imagem antes de compreender outros aspectos. Por exemplo, durante as entrevistas, Federico Puppi e eu percebemos uma diferença interessante em nossos métodos. Federico possui um embasamento teórico muito sólido, enquanto minha abordagem é mais visual. Ele consegue adicionar camadas teóricas ao meu entendimento visual, e isso cria um jogo fascinante entre nós. Ele coloca balõezinhos no meu visual, porque eu não sei adicionar esses elementos. Percebi também que, em cena, quando há música, eu não sei falar o texto, eu escuto a música antes do texto. Assim como eu tenho o visual antes do texto. Houve momentos em que eu pedi ao Federico para baixar o volume da música porque estava me dificultando a compreensão e a interpretação do texto. Eu não sabia disso, eu me conheci nessa fase, nesse momento.

CONTINENTE Falando em musicalidade, vi que você mencionou uma possibilidade de montar Finnegans Wake, de James Joyce, que parecia ser um projeto paralelo a Ficções. Esse plano ainda está em andamento?
VERA HOLTZ Não sei. O projeto Finnegans Wake começou com a ideia de montar riverrun, que é um trecho de Finnegans Wake onde o rio se torna uma espécie de narrador, é o rio falando. Isso é um projeto da Susan Mace, e ela me liberou para fazer Ficções. Olha que loucura! Eu estava aguardando por ela e disse que queria fazer Finnegans Wake; acho sensacional. Susan é uma atriz britânica, e o projeto riverun é dela. Se você procurar, vai ver que é um trabalho do National Theatre de Londres, onde o rio “fala” e há projeção e música o tempo inteiro. A Susan me deu permissão para seguir em frente com Ficções, e sou eternamente grata a ela. Ela entendeu que Ficções é um projeto muito maior do que a gente. Não sei se ela vai continuar com o projeto, se seguem os direitos, mas ela havia mencionado que queria trabalhar comigo na época. Enfim, temos que deixar tudo meio fluido, não é?

CONTINENTE E Ficções ainda tem uma vida longa, vocês estão circulando bastante pelo país, já foram a Portugal...
VERA HOLTZ Sim, há essa internacionalização do espetáculo. Como diz o Federico: “Já que está todo mundo aqui, por que a gente também não pode estar lá?!”. Nós estamos em um país onde a bandeira é a palavra, é a língua. Falou português — no nosso caso, não é nem português, é português abrasileirado — é brasileiro. Temos o desejo de levar nossas produções a outros países de língua portuguesa, como Angola, Moçambique e Cabo Verde. Recentemente, estive na África e isso despertou ainda mais essa vontade. Estamos considerando também a participação em eventos em Portugal. Ou em alguns festivais, também, onde a gente tenha convite. Os festivais dependem de curadoria e de convite; o que a gente pode fazer, a gente faz. Assim, a obra vai ter vida própria, as coisas têm vida própria — Beckett fala sobre isso. Acredito que Ficções tem vida própria, com seu próprio tempo. A gente já entendeu isso, então, baixamos a cabeça e respeitamos. Esse é o movimento que estamos fazendo.

CONTINENTE Você trabalhou com grandes nomes do teatro como Bibi Ferreira (1922-2019), Zé Renato (1926-2011), Antônio Abujamra (1932-2015), Luís Antônio Martinez Corrêa (1950-1987), entre outros. Esses artistas marcaram profundamente a história do teatro moderno e contemporâneo. O que você aprendeu com eles e como essas experiências influenciam o seu trabalho hoje? O que deles vive em você?
VERA HOLTZ Todos, todos, todos estão em mim. Sou a mistura de toda essa gente. Em cena, às vezes, sinto que estou sendo o Abujamra, como se estivesse evocando esses grandes artistas. Eu os chamo, assim como chamo outros atores, como Raul Cortez e Dona Nicette Bruno. Agora é a vez de Amir Haddad: “Vem, Amir Haddad!”, “Raul Cortez!”, e entro em cena como Raul Cortez. Ele adorava o Teatro FAAP, então o chamo quando vou me apresentar lá. A cada dia, convoco um deles. (Recordando) Luiz Antônio, genial! O Gerald Thomas... O Gerald era muito perfeccionista. Também chamo o Wagner Pinto, que era o iluminador do Gerald. Todos eles, que de alguma forma tocaram essa “identidade Vera Holtz”, estão com certeza por perto. Sou uma mistura de todos eles, e eles entram em cena; o tempo inteiro estou evocando sua presença.

CONTINENTE Finalizando, que conselho você daria para quem quer começar a fazer teatro?
VERA HOLTZ Eu só diria para a pessoa que quer: resista, resista... resista, resista. Porque tudo vai acontecer, mas você pode resistir e persistir. Mantenha-se firme naquilo que você quer.

Felipe Cordeiro, pesquisador e doutor em Letras pela UFMG e Universidad de Buenos Aires.

SERVIÇO
O Estrangeiro_reloaded
Onde:
Teatro do Parque (Rua do Hospício, 81, Boa Vista)
Quando: 24 e 25 de agosto, sábado e domingo, às 19h
Quanto: R$ 120 e R$ 60 (Sympla)

Ficções
Onde:
Teatro do Parque (Rua do Hospício, 81, Boa Vista)
Quando: 10, 11 e 12 de setembro, terça, quarta e quinta, às 20h
Quanto: R$ 21 e R$ 160 (Sympla)

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