As artimanhas e as armadilhas quando se leva Canudos ao teatro
Cia do Tijolo apresenta no Sesc Belenzinho, São Paulo, o espetáculo Restinga de Canudos. Embora com bons momentos, a direção pareceu optar francamente pela pedagogia
TEXTO Sidney Rocha
21 de Março de 2025
Foto Alécio Cézar/Cia Tijolo/Divulgação
Nos palcos brasileiros, frequentemente, a história se torna matéria-prima na tentativa de iluminar nosso passado e compreender nosso presente. Este é o mote da montagem de Restinga de Canudos, do grupo Cia do Tijolo, em cartaz no Sesc Belenzinho, em São Paulo.
Contudo, em muitos casos, surge um problema recorrente: quando a pedagogia substitui a poética; a dramaturgia é reduzida ao exercício didático, enlouquecido por intenções explicativas.
O teatro não deve ser uma aula de história. Deve ser uma experiência estética que questiona, confronta, transforma. No caso da Guerra de Canudos, muitas transposições teatrais têm tropeçado na arapuca desse didatismo excessivo e, tantas vezes, falhado ao reduzir aquela tragédia nacional a um conjunto de lições “edificantes”.
Canudos, se vê, não é novidade nos palcos. José Celso Martinez Corrêa (1937-2023), ao adaptar Os Sertões, em 2002, tentou estruturar a obra de Euclides da Cunha em um épico o mais espichado possível, com temporadas longas e um espetáculo em várias partes. O grande risco, ali, foi o peso da grandiloquência e a difícil transferência da linguagem euclidiana para a cena.
Há o monólogo “A luta”, adaptação da última parte de Os Sertões, por Ivan Jaf, encenado por Amaury Lorenzo, entre muitos exemplos. Quase todos seguem o modo Brecht ou ao modo Teatro de Arena. A maioria buscou o viés marxista e a ênfase na luta de classes. Muitos caíram na armadilha de um discurso excessivamente explicativo, que privava o público da ambiguidade e da complexidade de um episódio que desafia narrativas reducionistas.
O problema maior dessas montagens não está no tema, mas na abordagem. Canudos não é um episódio que possa ser enquadrado no maniqueísmo puro e simples. A relação entre a queda da Monarquia e o nascimento da República – e particularmente como isso tocou os sertanejos –, não pode ser vista como mera oposição entre o atraso e o progresso. O Brasil contemporâneo, onde o termo “polarização política” esquenta em banho-maria as disputas em torno da memória nacional, torna ainda mais difícil estabelecer paralelos simples entre aquele tempo e o nosso, sem cair em anacronismos ou simplificações.
A recepção de Canudos no Brasil de hoje passa por disputas de narrativa que tornam qualquer montagem teatral um território delicado. Grupos conservadores podem se apropriar do episódio para reforçar um nacionalismo religioso, enquanto setores progressistas podem ver na destruição da comunidade conselheirista uma metonímia para as políticas de repressão do Estado atual. É mais o caso da Cia do Tijolo.
Ambos os caminhos, quando impostos rigidamente ao espetáculo, criam obras herméticas, que pouco permitem ao espectador a experiência de interpretar e sentir a complexidade dos fatos.
Para Canudos funcionar no teatro, é necessário mais que lições de história dramatizadas. A encenação precisa recuperar o horror, o delírio, o fanatismo, a esperança e a brutalidade daquele momento, sem resumir tudo ao panfleto. O teatro, em sua essência, é um espaço de evocação e questionamento, e não um quadro-negro onde se escreve uma única interpretação sobre um tema. No Brasil atual, onde a história é constantemente disputada no espaço público, a montagem de Canudos precisa mais de poesia do que de pedagogia ou ênfase didática.
A montagem de Restinga de Canudos, em sua estreia, caiu em quase todas as armadilhas de certo anacronismo, só não maior que o didatismo. Embora com bons momentos, a direção pareceu optar francamente pela pedagogia, e não somente porque escolheu como narradoras duas personagens-professoras, as boas atrizes Odília Nunes e Karen Menatti.
Além disso, se acrescente ao conjunto o acúmulo de textos literários que vão de um “prólogo”, como o "Sermão de Santo António aos peixes”, do padre António Vieira (1608-1697), o exaustivo lugar-comum do trecho sobre o sertanejo é antes de duro um forte, e as adjetivações no texto de Euclides da Cunha (1866-1909), passando por uma das crônicas de Machado de Assis sobre Canudos, chegando-se ao atualíssimo Marcelino Freire (1967) e seu texto-ensaio “Sobre a poesia”, como “epílogo”, entre canções e mais canções do grupo, me pareceu, entre outras da MPB, onde se inclui “Apologia ao jumento”, de Luiz Gonzaga (cujos versos: “Padre Vieira falou/... “Padre Vieira escreveu/...” fazem boa ligação com o Sermão do padre no início da peça), passando pela excelente composição de Belchior, que agora o título me foge à memória.
Nota-se, portanto, um esmero de alguma consultoria (o termo é horrível, mas curadoria é pior) literária, na tentativa de empurrar a narrativa, mas aquilo que deveria ser inconsútil deixa o tempo todo a marca das costuras, nem sempre bem-feitas.
A estreia teve isso das estreias, misto de ensaio geral e certo arrebatamento natural dos elencos quando finalmente conseguem levar um trabalho ao palco, resultado de muitos anos de pesquisa. Sobretudo quando o palco e o drama e tudo o mais é o Brasil e sua história submersa, neste caso da Cia do Tijolo.
Estruturalmente, o “textão” talvez não dê aos atores e atrizes muitas oportunidades de demonstrar seu talento completo e muitos, no palco, parecem somente figuração. O elenco também exagera na opção pela caricatura. Em alguns momentos, quando os atores e atrizes dançam no palco, não passa em branco a lembrança dos estereótipos das quadrilhas juninas sudestinas, mas também no Nordeste, onde nordestinos macaqueiam os próprios nordestinos.
Ao final de uma sessão de teatro, costumo perguntar a algumas pessoas sobre suas impressões. Nisso se mostraram dois pontos positivos: “Pelo menos assumiram o sotaque local e não tentaram falar o nordestinês das novelas de televisão”, disse alguém. Concordei.
“Sobre as cenas de morte” (matada: por tiros ou decapitação), disse uma engenheira de São Paulo, ainda no elevador: “Eles preferiram mais a solução simbólica ao recurso da violência bruta”.
Talvez o comentário dela se apoie nas escolhas de direção sutis, recentes, do cinema como em Zona de interesse, sobre o Holocausto – de Jonathan Glazer, Oscar de Melhor Som de 2024 –, ou em Ainda estou aqui, de Walter Salles – Oscar de Melhor Filme Internacional de 2025 –; em relação às sessões de tortura. Em ambos os filmes, a sutileza do som serve como elemento narrativo mais eloquente. Isto ocorre um pouco no verborrágico Restinga de Canudos, onde há excesso de certa caricaturização também na linguagem com seus “se achegues”, a forçação de barra como o trocadilho de “catinga” com “caatinga”, entre outros cacoetes, na intenção de gerar empatia ou humor, quase nunca alcançados, no geral. Além, é claro de muitos lugares-comuns repetidos aqui ou acolá, como a tal ideia-feita de “silêncio ensurdecedor”.
Há excelentes pontos na interpretação: a mímica do ator Danilo Nonato e seu Calango, personagem que pode ser mais bem explorado. A excelente voz da atriz Jaque da Silva, cujo figurino, envolvendo um black power, tanto serve bem para “Restinga...” quanto para um musical de Hair, na Broadway.
Na estreia, a professora argentina de literatura Silvia Adoue foi convidada para falar ao público, em cena. De improviso, como no bom teatro, ela proferiu uma das frases mais tocantes naquela noite: “Me desculpem falar como uma professora: sou uma professora”. Terrível quando alguém sente que precisa se desculpar pelo tom, para qualquer plateia, por ser uma "professora”. Bem a cara do Brasil.
Na peça, Rodrigo Mercadante é Euclides da Cunha e Dinho Lima Flor é o Conselheiro. Perto do final, eles travam excelente diálogo, que parece intenso e franco, digno dos grandes conflitos, com a força da dialética, mas no último quarto disso, o texto volta a cair e se perde uma grande oportunidade de emocionar o público que não só com retoricismos.
Ao cabo de mais ou menos duas horas e meia, Restinga de Canudos resulta em uma grande aula-espetáculo, que o dramaturgo Ariano Suassuna (1927-2014) talvez aplaudisse. De pé, como virou o costume das plateias do Brasil ou da Broadway, por qualquer coisa.
Sucesso à temporada, portanto. Sei que o espetáculo ganhará mais alcance se sair mais da “sala de aula”, da instrução teórica, e optar pela poderosa poética do teatro. Esta, bem usada, nunca falha.
Restinga de Canudos
(Companhia do Tijolo)
Criação e dramaturgia: Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante
Direção geral: Dinho Lima Flor
Elenco: Dinho Lima Flor, Rodrigo Mercadante, Karen Menatti, Odília Nunes,Artur Mattar, Jaque da Silva, Danilo Nonato, João Bertolai, Marcos Coin, Dicinho Areias, Jonathan Silva, Juh Vieira
Sesc Belenzinho – São Paulo
Sexta e sábado: 20h
Domingo: 17h
Ingressos: R$ 15,00 - credencial plena; R$ 25,00 -meia-entrada; R$ 50,00 – inteira
Temporada até 27/4
Para maiores informações, clique aqui.
Sidney Rocha é escritor, autor de O melhor dos mundos, A estética da indiferença, Matriuska, O inferno das repetições, Sofia, entre outros