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Sonhos: Apropriações do que é intangível e tão presente

Artistas contam como os estados de inconsciência contribuem à criação, enquanto psicólogo afirma a relevância desses estados para a realização artística

TEXTO Luciana Veras

01 de Julho de 2014

Imagem Mauricio Planel

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 163 | jul 2014]

Em A interpretação dos sonhos, publicado em 1900,
Sigmund Freud propunha uma revisão de toda a literatura disponível acerca dos devaneios oníricos que invadem a mente durante o sono e oferecia o inédito enfoque de analisá-los à luz da incipiente ciência que ele havia fundado. “Eu me disponho a mostrar que os sonhos são capazes de interpretação”, escreveu o neurologista e pai da psicanálise no segundo capítulo da obra, cujas primeiras 600 cópias demoraram oito anos para serem vendidas. Contrapondo-se à quase totalidade de avaliações existentes à época em que compilou os escritos no livro, ele defendia que os sonhos iam além de aspectos demoníacos ou divinos atribuídos a eles desde a antiguidade, ou de meras profecias de um futuro ainda obnubilado pelo inconsciente, e que neles havia, sim, material para colher significados.

“Fui forçado a perceber que aqui, mais uma vez, temos um daqueles não tão incomuns casos em que uma antiga e teimosa crença popular parece estar mais perto da verdade do que a opinião da ciência moderna. Devo insistir que o sonho, de verdade, possui um significado e que é possível um método científico de interpretá-lo”, reforçou Freud, mais interessado nas narrativas que seus pacientes faziam dos sonhos do que em quaisquer resquícios deles. Ainda assim, embora o foco de suas descobertas fossem as neuroses desveladas pelos sonhos e não eles próprios, é certo que seu projeto de investigação os inseriu em um outro patamar. Se não para todos, pelo menos para os que deles se apropriam para criar.

A artista visual baiana Virgínia de Medeiros define como um “grande work in progress” todas as suas incursões – sejam elas instalações, vídeos ou fotografias de moradores de ruas recriadas a partir de como eles gostariam de se ver retratados, a exemplo de Fábula do olhar, obra de 2013, exposta recentemente no Recife, na mostra Cães sem plumas. “Vou colhendo relatos e catalogando tudo em um diário de bordo que me acompanha. Escrevo, me aproprio de outros textos, objetos, retratos, dos resultados das filmagens. Quando engato num processo criativo, é como se fosse uma espécie de portal”, vislumbra. Para ela, esse caminho incorpora também tudo aquilo que não é tangível, mas que se sente quando o corpo descansa e a mente vagueia.

“Estabeleço uma conexão muito sutil quando estou imersa nesse processo. Quando adentro o mundo dos sonhos, me vejo sempre em situações que o projeto me traz. O que acontece? Decido coisas pelo sonho. Meus sonhos antecipam momentos que vou vivenciar. Como tenho o hábito de anotá-los, comecei a ver que eles passavam a fazer parte da realidade. Tem uma passagem em que Gilberto Gil fala de uma ‘paranormalidade’, que seria algo como o milagre de uma impessoalidade ou transpessoalidade que você atinge quando cria. Acredito mesmo que é quase uma paranormalidade. Entre os sonhos e o processo de vivência que desenvolvo e me toma por completo, sei que existe uma comunicação sutil. E vou seguindo os sinais”, revela Virgínia.

Há os que trafegam na via oposta. A compositora carioca Bárbara Eugênia vem metamorfoseando o jeito de incitar a criatividade, mas longe de quaisquer influências das fantasias ora incoerentes, ora utópicas dos profundos estágios do sono. “Estou começando a experimentar novas formas no processo da escrita e na criação das melodias. Meus horizontes criativos estão se ampliando, inclusive no ato de cantar, pois tenho buscado explorar novas nuances da voz, vozes dentro da voz. Acho que é uma segurança que foi sendo adquirida com o trabalho. Mas, para a inspiração em si, não trago nada dos sonhos. Sei que sonho bastante, sim, mas não me lembro de nada.”

Independentemente das memórias (ou da ausência delas), os sonhos desempenham função primordial na criação, na opinião do psicólogo e presidente do Conselho Regional de Psicologia/PE Hermes Azevedo. “Muitos autores, pintores, escritores e cientistas afirmam que foi durante seus sonos e sonhos que processos de criação foram desencadeados, ideias inovadoras foram-lhes reveladas e apareceram soluções para grandes problemas. Isso porque, de uma forma geral, sonhos são fragmentos de situações conflituosas e/ou inacabadas da história e do dia a dia do sonhador. Não raro, ajudam-no a finalizar tais situações que o afligem, pois as preocupações e defesas naturalmente erguidas para o enfrentamento da rotina diária se ‘afrouxam’ e cedem espaço a um pensar mais livre das regras, normas e demandas sociais mais rígidas”, afirma.

Tal relaxamento tem lastros fisiológicos. O sonho é o produto da fase REM do sono – REM significa “rapid eye movement”, ou movimento rápido dos olhos, um dos sintomas físicos desse estágio em que o cérebro corre, enquanto o corpo repousa. Quando ele acontece, a serotonina, substância neuromoduladora responsável pelo controle da memória, se ausenta. Isso justifica, por exemplo, a tendência a recordar apenas os trechos finais das maratonas oníricas, pois é na derradeira fase do REM em que reaparece a serotonina. Entre as áreas do cérebro afetadas por esse mecanismo tão fantástico quanto misterioso, estão o córtex occipital, o pons e o sistema límbico – este último composto pelo tálamo, pelo hipocampo e pelas amígdalas, que, por sua vez, armazenam as sensações de medo, ansiedade e as memórias afetivas e emocionais.

Em 2004, em artigo publicado no Annals of neurology da Associação Americana de Neurologia, o neurologista Cláudio Bassetti, da Universidade Hospital de Zurique, na Suíça, descreveu o caso de uma senhora de 73 anos que, após um derrame, perdeu a habilidade de sonhar. Classificado como Síndrome Charcot-Willbrand, que denota a perda de sonhos como consequência de um dano cerebral em uma área específica (e chamada assim por causa de dois proeminentes neurologistas do século 19, cujas pesquisas teóricas foram revisadas por Freud em A interpretação dos sonhos), o episódio trouxe o pioneirismo de associar os sonhos à região do lobo occipital, localizada na parte traseira do cérebro e severamente prejudicada na paciente em questão.

O pintor recifense Bruno Vilela tem certeza de que sonhar é elemento indispensável em seu cotidiano criativo. “Acordo e anoto as sensações, as imagens que me vieram, as cores. Tento pintar o que vi e vivenciei, pois o sonho é um mergulho no inconsciente”, resume. Ele compara os insights derivados dos sonhos com os estados alterados de consciência oriundos do consumo de bebidas alcóolicas ou da imersão meditativa provocada pela audição repetida de um álbum – em seu caso, uma caixa de Miles Davis: “Isso me joga, hoje, dentro de mim mesmo, me ajuda a evocar os ancestrais, os espíritos, as entidades da natureza, da umbanda. Quando entro nesse lugar sagrado, me concentro naquilo que estou criando e esqueço as contas a pagar”. 

LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.

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