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Gênios: Cérebros privilegiados

Para os neurocientistas, é possível reconhecer o cérebro de uma pessoa superdotada. Os sociólogos trabalham a partir de referências contextuais

TEXTO Luciana Veras

01 de Julho de 2014

Imagem Mauricio Planel

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 163 | jul 2014]

Albert Einstein. Alfred Hitchcock. Bob Dylan. James Joyce.
Ludwig van Beethoven. Pablo Picasso. Stanley Kubrick. Stephen Hawking. Vincent van Gogh. William Shakespeare. Wolfgang Amadeus Mozart. Em um hipotético certame criativo mundial, essa poderia se tratar de uma seleção de gênios. Ei-los, os seres de uma existência que paira acima de todas as outras. Suas capacidades de articulação de ideias acarretam impressionantes resultados; a partir das faíscas de inspiração que seus cérebros operam, florescem descobertas científicas ou magníficas obras de arte. Em alguns casos, a eles são atribuídos, até, a conceituação da vida e seus meandros. Em Shakespeare – a invenção do humano, o crítico literário norte-americano Harold Bloom vaticina: “Será que podemos nos conceber sem Shakespeare? Não incluo aqui apenas atores, diretores, professores e críticos, mas também o presente leitor e todas as pessoas de seu relacionamento”.

Na ótica fisiológica, existem, sim, as mentes diferenciadas, como lembra a neurocientista norte-americana Lisa Aziz-Zadeh, professora do Brain and Creativity Institute da Universidade da Southern California. “É absolutamente possível identificar o cérebro de alguém tido como genial. Por exemplo, existem muitos estudos sobre o cérebro de Einstein. Se qualquer um ler, vai constatar que ele era único. Na perspectiva das pesquisas, talvez seja a mente mais explorada até hoje. No meu instituto, atualmente, estão sendo explorados os cérebros de famosos artistas e músicos, mas o estudo ainda não está concluído”, afirma.


Albert Einstein. Foto: Reprodução

Em The corpus callosum of Albert Einstein’s brain: another clue to his high intelligence? (O corpo caloso do cérebro de Albert Einstein: outra pista para a sua alta inteligência?), publicado em setembro de 2013, na Brain, revista virtual da Universidade de Oxford, no Reino Unido, dedicada à neurologia, uma equipe de pesquisadores chineses, liderada pela dra. Weiwei Men, do Departamento de Física da East China Normal University, explana a seguinte teoria: a interconectividade entre os dois hemisférios cerebrais do autor da teoria da relatividade era muito maior do que em outras pessoas. Essa ligação cabe ao corpo caloso, uma estrutura cuja função é, justamente, servir de elo entre as metades do órgão supremo do corpo humano; o de Einstein era muito mais desenvolvido do que normal. No estudo, foram usadas imagens de ressonância magnética de cerca de 70 homens, cotejadas com as fotografias do cérebro de Einstein, removido sete horas após sua morte, aos 76 anos, em 1955.


William Shakespeare. Imagem: Reprodução

Se, por um lado, são incontestáveis os achados científicos relacionados à anatomia cerebral de uma mente extraordinária, por outro, o conceito de gênio é reexaminado em outras esferas do conhecimento. “O grande esforço da Sociologia é entender como uma determinada obra pode causar estranhamento e provocar reações no meio em que ocorre e qual é o ambiente em que o artista e essa obra estão acontecendo. Sob esse ponto de vista, a ideia de gênio é profundamente questionável e frágil, sobretudo quando se toma a dimensão histórica em que se construiu”, sustenta Paulo Marcondes, professor de Sociologia da Arte na graduação, no mestrado e no doutorado no Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco.

Ele recupera Mozart – sociologia de um gênio, escrito pelo sociólogo alemão Norbert Elias, para ilustrar seu argumento: “A ideologia do gênio está diretamente relacionada a visões idealistas e românticas da arte. Na história da arte moderna, remonta ao Renascimento e aos mestres criadores. Naquele momento, quando o artista assinava uma obra, gerava com isso uma característica de distinção; ele se tornava alguém acima do gênero comum, que fazia uma obra de um belo transcendente que as pessoas comuns não alcançavam. Mas quando Elias fala de Mozart não reassume ou traz a ideologia renascentista, mas mostra como Mozart surgiu na corte em que ele vivia, as adversidades que enfrentou e como conseguiu produzir essa obra de características tão renovadoras, que a tudo influenciou posteriormente. Ele faz uma análise relacional entre a obra, o artista e o meio”.


James Joyce. Imagem: Reprodução

A romantização do artista-gênio, prossegue ele, é implodida com as vanguardas históricas que anunciam o século 20. “Os novos artistas começam a dessacralizar o gênio e a reivindicar a necessidade da obra de manifestar-se no contexto da vida cotidiana. Dadaístas, cubistas, surrealistas traziam o objeto mundano para o contexto da obra, que assumia um modo mais performático, ready made. Um iconoclasta absoluto como Marcel Duchamp provocou um nível de estranhamento que se tornou um paradigma em relação à arte contemporânea. Uma visão mais idealista poderia tomá-lo como gênio, mas nunca os que defendiam um olhar mais purista da arte. Com a arte contemporânea, tem-se uma relação com elementos do cotidiano, com a dimensão do corpo, da sexualidade, e vamos deixando de falar em ‘obra de arte’ para falar em manifestação artística, movimento artístico. Abandonamos certas tendências convencionais de lidar com a arte. Isso gera circuitos e redes dentro de um processo novo. Nele, a ideia de gênio tem se inclinado a ser algo arrefecido, não mais evocado ou creditado”, comenta o professor da UFPE.

Para o professor de Filosofia da PUC-RJ, crítico de arte e curador do MAM-RJ, Luiz Camillo Osório, a ideia de genialidade tal qual foi postulada por Kant no século 18, configurada por uma “perspectiva de subjetividade original”, diluiu-se ante o novo cenário de produção, fruição e visibilidade artísticas. “Não se decide e nem se pode querer ser um gênio. A genialidade acontece. O problema é que a ideia de gênio terminou se tornando consumida pelo próprio mercado, que fica alimentando a criação de gênios momentâneos, provisórios, de 15 minutos. Sempre foi difícil demarcar a excepcionalidade que caracteriza a dimensão genial, mas hoje tudo tende à banalização, inclusive o que seria ‘genial’. Se todo mundo virar gênio, ninguém o é”, assinala.


Vincent Van Gogh. Imagem: Reprodução

No contexto do efêmero e da trivialização, como verificar os merecedores de um rótulo que, mesmo revisto, não caduca? “Van Gogh, Rimbaud e Baudelaire são exemplos de artistas que eram reconhecidos entre seus pares, mas cujas obras ficavam à margem do próprio mercado. Hoje, são vistos como gênios. Hélio Oiticica, Andy Warhol, Lygia Clark e Artur Barrio são outros que, de alguma maneira, têm a posteridade garantida com obras que, ao longo do tempo, foram produzindo uma interpretação, uma ativação da própria criação e da própria criatividade no público. Mas a história é necessariamente lenta nessa definição. O artista é o primeiro público da sua obra, porém não se basta. De alguma maneira, tem que disseminá-la e, para isso,vai precisar do acolhimento, da recepção do público e da posteridade. A obra genial é aquela que produz o seu público e esse público vai se renovando com o passar do tempo. Ela tem a capacidade de transcender seu tempo e seu espaço, de despertar no público uma outra obra criativa”, afirma Luiz Camillo Osório. 

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