Exatamente no caso de palavrão, estamos diante de uma palavra que compõe uma zona especial do léxico das línguas, que serve a conteúdos específicos (1), a usos determinados (2) e a funções específicas (3). A seguir, faremos uma incursão por essas dimensões que corporificam o uso do palavrão, sem deixar de mencionar um pouco de sua história e da transformação de sentidos que o tema enseja.
Só ultimamente os dicionários passaram a incluir nos seus verbetes palavras que denotam conteúdos associados ao sexo, à escatologia ou aos valores morais vinculados ao mundo do sexo e da sexualidade (V. dicionários de Aurélio e Houaiss). Esses são os terrenos conteudísticos (1) de onde são retirados os termos que, designados com expressões metafóricas, constituem o universo do que se chama palavrão. Com alusão aos órgãos genitais – “o baixo corporal”, no dizer de Bakhtin (Mikhail Bakhtin, Cultura popular na Idade Média e no Renascimento, Hucitec) –, vê-se de onde brotam as designações, o corpo, e daí a extensão para o universo dos valores morais.
Com base na metáfora direcional – “para o alto, o bem; para baixo, o mal” –, essas partes baixas reúnem as condições para a produção do escárnio, da depreciação, da baixeza, para resumir. Tanto os órgãos sexuais, já aludidos, quanto o que eles produzem constituem a extensão dos conteúdos, transformados em palavrões. Assim, o ventre, o ânus, as nádegas, a vulva, o pênis assumem designações pejorativas, sarcásticas, para produzir ora o gracejo, ora a depreciação, ora a agressão. Daí o que esses órgãos produzem também assumem essas funções. As fezes, os gases, o esperma, por exemplo, recebem outras designações pejorativas.
Por outro lado, os homens e as mulheres, na sua sexualidade ou nas formas como realizam suas relações sexuais, portanto no contato com o “baixo corporal”, passam a fornecer matéria-prima para esse universo das formas linguísticas agressivas ou pejorativas para se aludir à moral. Muitas formas, hoje mitigadas, trazem essa herança. “Ele é macho” não tem o correspondente “ela é fêmea”, evidenciando um fenômeno chamado “sexismo linguístico”, que não se confunde com o nosso tema, mas relaciona uma pseudodiferença entre modos de falar de homens e mulheres. Mas “mulher-macho”, usada em canção conhecida na voz de Luiz Gonzaga, Paraíba mulher-macho, passou a denotar um caráter ambíguo, com gracejo evidente. Ademais, designações como gilete, veado, fresco (essa última hoje muito menos contundente e prova da perda da força expressiva do palavrão), ao lado do clássico puta, mais popular do que lupa (latim loba), de onde provém lupanar, demonstram essa conexão.
SOCIAL
Em relação ao uso (2) do palavrão pelas classes sociais, observa-se uma extensão de empregos entre outras camadas da sociedade. Muito do que se criou nos palavrões da língua portuguesa surgiu no seio das culturas populares. Evidência disso se nota pela modificação dos termos originários, como no caso de cuião, derivado de
c(o)ulhão, c(o)ulhões. Essa transformação do lh em i é característica das variedades linguísticas mais populares e a oscilação na grafia indica existência cômoda na oralidade e dificuldade de padronização na grafia (Veja-se boceta ou buceta). Também a escolha lexical dos falantes aponta o tipo de vocabulário e sua função. É claro que, no caso do exemplo anterior, testículos (etimologicamente pequenas testemunhas, talvez do ato sexual) não surtiria o mesmo efeito. Essa extensão vai se dando ao longo de décadas e séculos até que, com a transformação de valores educacionais, de caráter moral e religioso, aumenta a licenciosidade para uso dessas palavras.
Em última análise, novos conceitos de moral e maior laicização da cultura promoveram mudanças comportamentais importantes. Isso não quer dizer que as camadas socialmente mais prestigiadas sejam refratárias ao uso do palavrão, mas, historicamente, em face desses valores educacionais mais universais e tradicionais acima aludidos, elas passaram a empregar esses termos de cunho mais popular num movimento contrário ao que acontecera na Idade Média, quando a separação entre as duas culturas não existia. A partir do século 16, a cultura popular e a erudita foram se separando, principalmente com o advento da imprensa (Peter Burke, A cultura popular na Idade Moderna, Cia. das Letras). A democratização das sociedades ocidentais e a massificação da indústria cultural capitalista interpretam um papel importante nessa reaproximação.
Quanto à sua função (3), talvez o sufixo ão de palavrão se deva ao ímpeto que promove no papel de agressão com que é usado. Geralmente se recorre ao palavrão nos momentos de raiva, ofensa, menosprezo e pode levar muitas vezes à agressão física. Essa tem quase sempre o motor da linguagem no seu desencadeamento. Associado a esses efeitos está o humor. As peças teatrais, os programas humorísticos, as músicas de duplo sentido recorrem sobremaneira ora ao palavrão, ora à ambiguidade de sentido que esses termos evocam, combinando chacota, humor, ridicularização para produzir o riso.
Quanto à extensão e perda de efeito de sentido dessas expressões, as gerações mais novas vão assumindo o palavrão do passado com outra conotação. Esse perde o caráter de agressão, neutralizando seu efeito, permanecendo o tom emotivo, impulsivo, ácido em contextos de brincadeiras coletivas, como jogos de equipes, em que muitos desses termos emergem. Carai, no lugar de caralho, porque não é mais o objeto que se quer designar, senão o emotivo, preservado na sua função genérica, carrega outra conotação. Porra, cuja origem deve remontar a um pedação de madeira com formato cilíndrico, rijo, portanto, que substitui de forma pejorativa o nome pênis, já se ouve nos meios de comunicação de massa. (Compare-se porrete, porrada, derivados de porra, mas sem a associação semântica da obscenidade, e ainda pau ou cacete, para confirmar a associação entre porra e pênis, embora o termo possa assumir outros significados nesse mesmo universo discursivo). Estamos, evidentemente, diante de um fenômeno de reinterpretação semântica, que, em última análise, consubstancia o surgimento dessa zona especial vocabular das línguas humanas.
MARLOS DE BARROS PESSOA, doutor em Filologia Românica pela Universidade de tübingen e professor de letras da UFPE.
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