A ciência vem dando dicas de como caminhar nessa “longa e tortuosa estrada”. Um trabalho publicado na revista britânica NeuroReport, por exemplo, revelou que dizer palavrões pode ajudar a diminuir a sensação de dor física. O texto focaliza um teste realizado com 64 pessoas, que foram orientadas a colocar as mãos em baldes de água supergelada enquanto diziam palavrões. A experiência foi repetida com os mesmos voluntários, só que, na segunda vez, eles pronunciaram palavras comuns. Resultado? Na etapa do teste em que chamaram seus palavrõezinhos, as pessoas suportaram a dor provocada pela gélida água por 40 segundos a mais, em média.
O Kama Sutra e a Vênus de Willendorf figuram no hall dos pornográficos.
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De acordo com a publicação, os cientistas também realizaram o monitoramento do batimento cardíaco dos voluntários durante o teste, constatando que ele se tornou mais acelerado quando as pessoas diziam palavrões. A conclusão é de que a aceleração pode ser resultado de um aumento da agressividade, a qual também concorreria para reduzir a sensação de dor provocada pela água com gelo. Na opinião dos pesquisadores, em tempos remotos, esse “mecanismo” teria sido muito útil para o homem primitivo, ajudando-o, nos momentos de perigo, a suportar a dor provocada por algum ferimento e a lutar contra o eventual inimigo. Em resumo, o teste demonstrou que, ao ser pronunciado, o palavrão provoca uma considerável resposta física.
Então o palavrão está eternamente vinculado à agressividade e, por isso, seu caráter é sempre negativo? Não é preciso ser pornógrafo convicto para negar isso. Porque até mesmo numa época como a atual – na qual a violência nem de leve está para brincadeira – os “nomes cabeludos” têm passado por “um visível enfraquecimento de sentido”, como diz Souto Maior, acrescentando que existe “até o palavrão carinhoso, pois nem sempre o palavrão significa, realmente, o que sua literalidade quer dizer”.
O escritor refere-se ao costume que algumas pessoas, principalmente homens, têm de saudar os amigos com palavras e expressões que, em outros contextos, seriam ofensivas. Exemplo é “FDP”, que pode representar até um elogio. De maneira geral, devido ao processo de banalização, o palavrão bem que tem perdido sua carga negativa. Existe até uma página na internet, o Portal Power, que brinca com essa tendência, disponibilizando um artigo intitulado Aprenda a falar palavrão de maneira educada, no qual o “FDP” acima citado recebe a seguinte definição: “Filho de uma inocente mãe que presta serviços sexuais a troco de dinheiro”.
Vênus de Willendorf. Foto: Reprodução
Na verdade, o palavrão, ao longo do tempo, sempre passou por mudanças semânticas, podendo os nomes feios de certa época terem se transformado em expressões banais de hoje, da mesma forma que palavras atualmente consideradas chulas podem ter uma cândida origem. “As palavras fazem sexo, convivem, cortejam-se, acasalam até virarem uma só carne”, diz Luiz Costa Pereira Júnior, em Com a língua de fora, que tem como subtítulo A obscenidade por trás de palavras insuspeitas e a história inocente de termos cabeludos. Num dos capítulos do livro, intitulado Turista acidental, Pereira Júnior alerta para o fato de que as mudanças de significado não se dão apenas no tempo, mas também no espaço. Referindo-se a Xuxa, por exemplo, ele diz que, se for fazer um show no Chile, a “apresentadora infantil que se cuide”. Nesse país, o nome é sinônimo de genitália feminina.
CIVILIZATÓRIO
Talvez não seja impertinente afirmar que em certos períodos da História, ou da Pré-História, o palavrão chegou a ser um grande indicativo de que o homem estava evoluindo. “Se considerarmos as ideias de Sigmund Freud em O mal-estar na civilização, somos levados a supor que foi e ainda é necessário certo esforço para controlar nossos impulsos agressivos em direção aos outros seres humanos. O primeiro ato civilizatório teria ocorrido quando, em vez de responder ao impulso de eliminar fisicamente alguém que o tenha desagradado, o ser humano xingou aquele outro. Converteu o impulso que pedia uma ação contra o outro em palavra contra o outro”, exemplifica o mestre em Psicologia da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), Paulo Bessa da Silva, no artigo Linguagem obscena.
As canções dedicadas ao deus Dionísio traziam elementos ligados à sexualidade.
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Um pensador contemporâneo que tem ressaltado os profundos vínculos do palavrão com a natureza do ser humano é o psicólogo e linguista da Universidade de Harvard, nos EUA, Steven Pinker. Para o autor de Como a mente funciona – um dos grandes best-sellers científicos dos últimos tempos –, o palavrão é muito mais rico e sofisticado do que as palavras comuns. “Mais do que qualquer outra forma de linguagem, xingar recruta nossas faculdades de expressão ao máximo: o poder de combinação da sintaxe; a força evocativa da metáfora e a carga emocional das nossas atitudes, tanto as pensadas quanto impensadas”, diz Pinker em seu mais recente livro, Coisas do pensamento.
Isso porque o palavrão consegue dizer até o indizível, expressar o inexpressável, devido à carga emocional que contém. Pudera. Ao contrário da linguagem comum e bem-comportada, ligada ao neocórtex – que desempenha um papel central nas funções mais complexas do cérebro –, o palavrão tem a ver com o sistema límbico – responsável pelas emoções e que, por isso, induz as pessoas a comportamentos nem um pouco refletidos, como xingar a pedra em que se tropeçou.
Claro que, por essas características, o palavrão pode também assumir feições patológicas. É o caso da coprolalia, definida como “tendência involuntária de proferir palavras obscenas”. Espécie de loucura que atinge os neurônios, essa inclinação tornou-se mais conhecida como Síndrome de Tourette, por ter sido estudada pioneiramente por Gilles de la Tourette. O primeiro caso do gênero analisado pelo neurologista francês se deu em 1825 e teve como “protagonista” a marquesa de Dampierre, descrita como “uma nobre de 26 anos, que impressionava a todos pela inteligência”, mas que, ao mesmo tempo, costumava pontuar seus discursos – mesmo que o tema fosse a arte francesa – com fortes palavras relacionadas a sexo e assuntos correlatos.
O linguista Seteven Pinker ressalta os vínculos do palavrão com a natureza do ser humano. Foto: Divulgação
Por ser a sexualidade uma das características fundamentais no ser humano, nada mais natural do que a maioria dos palavrões estar a ela associados, embora também se refiram a órgãos de excreção e aos produtos em que estes são especializados. Nada mais lógico que, por assim ser, o palavrão e a pornografia em geral – perseguidos, mas também adorados ao longo dos tempos – tenham escrito os seus nomes e “nomes feios” (além de muitas imagens) na História. Como diz o filósofo belga Raoul Vaneigem, autor de Nada é sagrado, tudo pode ser dito, “a proibição incita a transgressão. O que é recalcado suscita o furor da catarse e as astúcias do ressentimento”.
PORNOGRAFIA
Há quem defenda a tese de que a pornografia, em seu aspecto visual, teve como primeira manifestação uma estatueta esculpida há mais de 20 séculos, a Vênus de Willendorf. Com apenas 11 centímetros, retrata a figura de uma mulher que, na descrição de um dos descobridores, é “gorda, inchada, com grandes glândulas mamárias, uma barriga saliente, cadeiras e coxas grossas (...)”. Por que um artista produziria uma peça tão distante dos padrões de beleza? Difícil dizer os significados culturais de algo tão antigo, mas acredita-se que a estatueta seja um louvor à fecundidade, expresso no estilo que hoje talvez fosse chamado de “expressionista”.
Satyricon, obra de Petrônio, levada ao cinema por Fellini, discorre sobre todas as formas de perversão sexual. Foto: Reprodução
No terreno da literatura, uma das mais antigas produções é o Kama Sutra – escrito na Índia, há cerca de 18 séculos, por Mallanaga Vatsyayana –, hoje mais conhecido como “o livro do amor”, por sugerir mais de uma centena de posições sexuais. Na Grécia, onde a sexualidade desfrutava de grande liberdade, o pornográfico estava presente nas canções em homenagem ao deus Dionísio e até nos pratos de terracota, decorados com cenas de sexo. Aliás, a própria palavra pornografia tem origem grega e significa, literalmente, “escrever sobre prostituta”. Já no teatro, um dos destaques é a comédia Lisístrata, de Aristófanes, com tão fortes cenas de sexo, que, em 1950 (mais de 2.400 depois de sua estreia), foi censurada nos EUA. A Grécia é também a terra natal de Safo, de cujo nome teria se derivado a palavra “safada”. Outro termo ligado à poetisa – nascida na ilha de Lesbos e, segundo a tradição, homossexual – é “lésbica”.
Em Roma, a pornografia correu solta em vários períodos históricos e, durante o Império Romano, é encontrada não apenas nas inscrições feitas nos banheiros de Pompeia – e em paredes de vários locais da cidade –, mas em livros como A arte de amar, de Ovídio, e Satyricon, de Petrônio (levado ao cinema por Federico Fellini), que discorre detalhadamente sobre todas as formas de perversão sexual. Tempos de Nero, Calígula e outros famosos libertinos, muitos romanos da época imperial demonstravam um profundo interesse pelas formas mórbidas de prazer.
Marcada por grande religiosidade, a Idade Média tinha um espírito bem diferente do romano, chegando muitos cristãos, perturbados pelo sexo, ao autoflagelo, a fim de castigar o diabo que teimava em habitar seus corpos. Foi nesse período que surgiu, entre outras invenções, o “cinto de castidade”. Mas, no embalo das transformações sociais e culturais, as coisas começaram a mudar, chegando-se à chamada “pornografia moderna”. Um dos marcos desses novos tempos é o Decameron, de Giovanni Boccaccio, com histórias que focalizavam até a luxúria de religiosos. Desnecessário dizer que o livro terminou alimentando as chamas das fogueiras da Inquisição.
Uma ação jurídica foi movida contra a ativista Annie Besant devido a um folheto seu sobre controle de natalidade. Foto: Reprodução
Muitas obras e escândalos depois – até Marguerite de Valois, mulher do rei Henrique IV, escreveu um livro na linha de Boccaccio, o Heptameron –, chega-se ao século 18, no qual pontificam figuras como Casanova, autor de Memórias, com picantes detalhes de sua famosa vida amorosa, e o Marques de Sade, que lançou obras como Os 120 dias de Sodoma e terminou sendo o responsável pelo surgimento do vocábulo “sadismo”. Um amplo apanhado do que foi a literatura pornográfica nesse período é um estudo publicado por Jean-Marie Goulemot, com o sugestivo título Esses livros que se leem com uma só mão: leitura e leitores de livros pornográficos no século XVIII.
O século 19 não deixaria por menos. É nele que Sacher-Masoch publica A Vênus de peles, inspirador do termo “masoquismo”. Também são desse período, entre outras obras célebres, Madame Bovary, de Gustave Flaubert, e As flores do mal, de Charles Baudelaire, que terminaram alvos de processo por ofensas à moral e à religião. Uma curiosa ação jurídica do século 19 foi movida, na Inglaterra, contra Annie Besant, por haver escrito um folheto sobre controle da natalidade. Em revide, ela preparou uma lista com 150 trechos do Antigo Testamento e seis do Novo, dando a esse segundo folheto o título Será a Bíblia condenável?. Entre os trechos do mais famoso livro do cristianismo reproduzidos por Annie estão o Cântico dos cânticos – atribuído a Salomão e ainda hoje considerado fortemente erótico – e capítulos sobre o profeta Ezequiel, que, furioso com questões religiosas e políticas de Jerusalém, compara a cidade a uma mulher infiel, chegando a dizer: “(…) profanaste a tua formosura, e abriste as pernas a todo que passava, e multiplicaste as tuas prostituições. Também te prostituíste com os filhos do Egito, teus vizinhos de grandes membros...”.
O século 20 – perfeito ascendente do século 21 – vive um verdadeiro boom pornográfico, por contar com o desenvolvimento da tecnologia voltada para a cultura e o lazer, muito bem representada pela fotografia e pelo cinema. A literatura, no entanto, não fica atrás, como demonstra o lançamento, logo em 1907, de As onze mil varas, de Guillaume Apolinaire. Maior impacto teriam Ulysses, de James Joyce (com aspectos da fisiologia humana considerados impublicáveis), O amante de Lady Chatterley, de D. H. Lawrence (que mostra o despertar sexual de uma mulher) e Trópico de câncer, de Henry Miller (em que as relações sexuais têm descrições mais que naturalistas). Lançados, respectivamente, em 1922, 1928 e 1934, esses livros – classificados entre as maiores criações artísticas do século passado – passaram muitos anos proibidos em vários países do chamado “primeiro mundo”.
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