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Road movie: Viagem com a morte

No longa 'Uma passagem para Mário', diretor Eric Laurence aborda a perda do amigo num percurso por paisagens desérticas da América

TEXTO Pethrus Tibúrcio

01 de Dezembro de 2014

Eric Laurence seguiu sozinho para o deserto chileno, onde terminou de gravar o filme que planejara com o amigo Mário Duques

Eric Laurence seguiu sozinho para o deserto chileno, onde terminou de gravar o filme que planejara com o amigo Mário Duques

Foto Divulgação

Sair do Recife, atravessar a Bolívia e chegar ao deserto do Atacama era o plano de Eric Laurence junto a Mário Duques, que dá nome ao longa Uma passagem para Mário. Mas, no dia 19 de outubro de 2010, Eric Laurence pegou o avião sozinho, no Aeroporto Internacional Gilberto Freyre, rumo ao deserto chileno. Isso porque, quatro anos antes, Mário recebeu a notícia de que tinha um câncer no fígado. Decidiu deixar o tratamento por um tempo e fazer uma viagem em tom de despedida, como quem precisa aproveitar muito o mundo, mas faleceu antes de realizar o intento, aos 34 anos de idade.

Eric continuou a viagem sozinho e terminou de gravar o filme, que teve o seu roteiro adaptado diante das circunstâncias tristes. O trajeto fílmico é marcado por contraluzes em janelas de ônibus de turismo, intercaladas com depoimentos de moradores e turistas em cidades como Santa Cruz de La Sierra, Sucre, Potosí, Uyuni e San Pedro de Atacama. O filme funciona como uma road trip solitária, na qual o cineasta tenta simbolizar a presença do amigo, impedido de viajar, nos assentos dos ônibus, nas pedras rachadas e nos quartos de albergue. Isso é feito através da exibição, em seu computador pessoal, de vídeos que Mário tinha gravado para registrar a própria vida depois do câncer, com o qual passou mais de quatro anos: a visita ao médico, um beijo de uma namorada na mesa de um bar, um banho de piscina daquelas de plástico, que se improvisa no quintal.

Pode parecer que o documentário seja uma busca por conforto ou por esclarecimento. Nos 45 dias de estrada, Laurence registrou uma série de conversas com estranhos que falaram – em tom de consolo, como quem tinha acabado de ouvir a sinopse do filme – sobre vida, morte e amizade. Em um lugar qualquer, três amigos se abraçam e avisam: “Unir-se é a coisa mais revolucionária do mundo”. A sensação de busca através de alguém que parece perdido é reforçada pelos ambientes vazios e os sussurros de vento que sonorizam a aridez das paisagens incríveis do deserto.

Mário é bem-apresentado pelo filme. As imagens que faz de si são marcadas pelo contraste entre a aparente fragilidade de seu corpo e a constância de suas piadas. Parece o tipo de gente que as pessoas costumam lamentar também a sua morte pela postura que assumia diante dela. A personalidade dele e a sua resistência diante de um tratamento sofrido fazem com que, em poucos minutos, quem não o conheceu também lamente a sua história.

Mais perto do seu desfecho, o filme encontra um de seus maiores méritos. Primeiro, na cena gravada pelo próprio Mário, em que, pela primeira vez, ele não fala praticamente nada. Liga a câmera, afasta-se, deixa o sol bater, olha ao redor e sobe por uma escada. Depois, na última cena gravada por Eric, uma tentativa de materialização do amigo posterior a uma série de cenas dele sozinho em planos abertíssimos. As imagens que antes vimos em telas de computador ou ampliadas no cinema são projetadas em pedras em alguma noite do Atacama e musicadas pela trilha sonora de Plínio Profeta.

Falar de permanência é importante num filme no qual alguém se apresenta e diz como quer ser lembrado. O filme é sobre morte, mas é também sobre como a gente quer se manter, de alguma maneira, vivo. Nele, ainda bem, a memória que fica é a de um Mário submerso em água, acenando e sorridente.

O diretor Eric Laurence é cearense, radicado no Recife desde 2003. Começou a trabalhar com cinema três anos antes, em 2000, e de lá para cá ganhou mais de 50 prêmios com seus primeiros curtas, Entre paredesO prisioneiroNo rastro do camaleão e Azul. Também é publicitário e foi responsável pelo videoclipe Canção que não morre no ar, de China, além de dirigir um DVD para o cantor Silvério Pessoa.Uma passagem para Mário, seu primeiro longa-metragem, estreou nacionalmente no último dia 6 de novembro. 

PETHRUS TIBÚRCIO, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.

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