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“O 'sim' maior por trás do 'não'”

Mestre em Filosofia pela UERJ, Bruno Cava analisa o atual ciclo mundial de protestos e diz que a democracia é manifestada além dos canais institucionais de participação

TEXTO Fábio Lucas

01 de Abril de 2014

Bruno Cava

Bruno Cava

Imagem Zenival

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 160 | abril 2014]

Mestre em Filosofia
do Direito pela UERJ e autor de A multidão foi ao deserto: as manifestações no Brasil em 2013 (AnnaBlume, 2013), o blogueiro Bruno Cava é uma das vozes no país que buscam analisar o sentido político positivo e fundador dos movimentos das multidões nos últimos anos. Para ele, novas dinâmicas de produção política e cultural estão nascendo dentro de um quadro de mudança qualitativa nos movimentos ativistas, apontando para uma democracia que ultrapasse os impasses criados pelos canais institucionais tradicionais. Seus artigos podem ser lidos em www.quadradodosloucos.com.br.

CONTINENTE A participação das multidões deverá ter um papel relevante na configuração política nos próximos anos?
BRUNO CAVA Existe um ciclo global de protestos, que começou em dezembro de 2010, na Tunísia, contagiou o norte da África como um todo, e ficou conhecido como Primavera Árabe. A imagem da Praça Tahrir ocupada no Cairo, Egito, foi a senha para que, em 2011, mobilizações acontecessem também na Europa, principalmente na Espanha, com o movimento do 15 de Maio e suas centenas de acampadas autônomas, bem como com o movimento Occupy, nos Estados Unidos e Canadá. Nessa época, já aconteciam algumas microexpressões desse estouro aqui no Brasil, com dezenas de “ocupas” em algumas metrópoles, já indicando uma mudança qualitativa na movimentação ativista, o que não passou despercebido por quem pesquisa esses processos de luta. O ciclo se prolongou por 2012, percorrendo um arco de requalificações, desafios e impasses, até chegar renovado em 2013, principalmente no Egito (de novo), na Turquia e, a partir de junho, no Brasil.

CONTINENTE Qual a característica comum na expressão dessas multidões mundo afora?
BRUNO CAVA Exatamente a capacidade de mobilizar grandes quantidades de pessoas, numa diversidade enorme de sujeitos sociais, muitos que até então não haviam participado de espaços tradicionais, sem passar pelas estruturas estabelecidas da representação: partidos, sindicatos, movimentos sociais tradicionais etc., de esquerda ou direita. Além disso, as mobilizações não se restringem a reivindicar diante dos poderes constituídos, pretendendo introduzir um novo ator político dentro da máquina representativa. Não. Trata-se, antes, de uma manifestação com um caráter constituinte, que favorece novas dinâmicas de produção política, cultural, midiática, uma democracia radicalizada para além dos canais institucionais. Os sistemas-redes dos movimentos formam vasos comunicantes que, no conjunto, são também resistência à crise do capitalismo global.

CONTINENTE E a principal diferença?
BRUNO CAVA Grosso modo, no hemisfério norte, é uma crise recessiva, e assim se resiste ao desmantelamento final dos sistemas de proteção social. No sul, por sua vez, é uma crise do crescimento, onde a resistência se dá contra a partilha desigual dos rendimentos, contra um modelo neodesenvolvimentista. Aqui, há uma lógica de governo pautada pelo crescimento econômico e uma distribuição relativamente tímida dos rendimentos, enquanto os serviços (transporte, saúde, educação etc.) continuam péssimos. Existe também uma dimensão de formulação de alternativas de desenvolvimento, seja como modelo de gestão da cidade e seus territórios (moradia, mobilidade urbana, produção cultural em rede), seja da própria macroeconomia (contestação das barragens, do modelo energético, da ideia de sustentabilidade). Não são protestos simplesmente destituintes, embora haja, sim, uma recusa muito forte.

CONTINENTE É possível notar, ainda, em vários locais e por motivos bem diversos, um ânimo geral para o protesto, e até mais, para o confronto. Por quê?
BRUNO CAVA Existe essa disposição de enfrentar a repressão com os próprios corpos. Isso só acontece porque, mais do que compromisso ideológico, há condições existenciais que passam por cada um, de maneira diferente, mas que terminam por motivar as pessoas a lutar nas ruas e nas redes. Mas, mais do que isso, é também um momento constituinte, um “sim” maior por trás do “não”, base de continuidade e persistência de um ciclo, que o faz existir como tal. No Brasil, presenciamos grandes manifestações, chegando à casa do milhão de pessoas numa única ocasião, no Rio de Janeiro, totalmente por fora das estruturas partidárias e militantes existentes. Proliferaram novos grupos, coletivos, mídias alternativas, táticas de autodefesa, uma nova maneira de viver a democracia e lutar por ela. A maioria dessas formações ainda está incipiente, é verdade, existe pouco acúmulo, mas não há dúvida de que está aprendendo de maneira intensiva e compartilhada.

CONTINENTE E qual a direção dessa nova democracia, já que nenhum dos 32 partidos políticos no país conseguiu ser identificado com as manifestações – pelo contrário, foram hostilizados?
BRUNO CAVA Num contexto em que mesmo os partidos de esquerda estão descolados dos movimentos, em que faltam núcleos e redes militantes enraizadas pelos territórios da cidade, isso significa que existe um enorme campo de construção, para o qual estão convergindo as pessoas interessadas em resistir e afirmar alternativas. Nenhuma força eleitoral conseguiu, até agora, capitalizar o processo. E isso é bom. Um campo autônomo notável está sendo gerado enquanto governos e partidos mais à esquerda se limitam a desqualificar ou desacreditar o movimento – ou mesmo criminalizá-lo, e aí obviamente não podemos mais usar o termo “esquerda”.

CONTINENTE O que essa criminalização revela?
BRUNO CAVA É, no mínimo, inadequado falar em perigo das “massas”, quando a maior parte da violência urbana é mantida, reproduzida e justificada pelo estado. Vivemos num país onde milhares de jovens são mortos anualmente pela polícia e os cadáveres têm endereço e cor bem-marcados. E onde as mortes decorrentes do “tráfico” também podem ser imputadas ao modelo de gerenciamento de um problema social, a droga, que se pauta pela lógica do inimigo e da guerra, e que serve a toda uma economia política nem tão subterrânea assim. Os perigos de um crescimento econômico que empurra os pobres e os nem tão pobres assim para as periferias, que apesar dos investimentos não consegue emplacar um modelo democrático de gestão da cidade, e tampouco desatar os nós do transporte e da saúde. O fascismo é um agente do estado e pode subir em qualquer favela de uma metrópole e matar qualquer jovem negro e, no dia seguinte, sair no noticiário que o jovem era “envolvido com o tráfico”.

CONTINENTE As multidões nas ruas não parecem querer o mesmo destino de multidões no passado, entregues à fé em um líder e a dogmas ideológicos. Nem qualquer tipo de golpe.
BRUNO CAVA O que estamos vendo é o oposto disso. É a possibilidade de muitas pessoas, para quem fazer política sempre foi uma quimera, e mesmo um risco para a própria vida, poderem se encontrar nas ruas e redes, e se auto-organizar. Ora, o golpe é para que as coisas continuem como estão, e isso certamente não é o que desejam os protestos. De forma desajeitada ou não, essa aposta de mudança democrática me parece estar sendo levada a sério, e com resultados duradouros e profundos, nesse ciclo de lutas em sua expressão brasileira. O maior “perigo”, na realidade, está em usar o esmagamento dos processos como pretexto para generalizar o estado de exceção que já está em vigor nas favelas e periferias, ou contra moradores em situação de rua ou com sofrimento mental.

CONTINENTE No artigo A multidão contra o estado, mas também contra o vanguardismo, no blog Quadrado dos Loucos, você escreve que “a verdadeira força do movimento (sua capacidade de renovação, autocrítica, decisão democrática) decorre, acima de tudo, de sua multiplicidade de táticas, pautas, composições sociais, formas de organização e comunicação – uma força na diferenciação, na capacidade de reunir pessoas e grupos muito diferentes”. A multidão ou as multidões podem ser deixadas à própria espontaneidade?
BRUNO CAVA Uma crítica muito comum na tradição política ocidental, e muito antiga, é que a multidão seja espontaneísta. É uma crítica que remonta, pelo menos, a Edmund Burke, um teórico conservador do século 18, que não cansava de alertar para o caráter anárquico, instintivo e perigoso da multidão. Hobbes também dizia que o soberano é necessário para controlar os apetites autodestrutivos do “estado de natureza”, uma terra sem estado onde o homem se revela lobo do homem. Você pode ir mais longe, e vai achar até em Lucrécio, na sua história da peste de Atenas, alertas a respeito dos riscos altíssimos de dissolução da cidade, quando a multidão sai do controle. E aí tem toda uma linhagem dominante da filosofia política, cujo grande objetivo é justificar a existência do estado, sua economia de coerções e mediações, contra a possibilidade de uma democracia mais direta, sem precisar passar pela transcendência da soberania. No Brasil, isso aparece bem claro com a noção de “pacificação”, que, desde a colônia, significa a intervenção policial-militar brutal contra quilombos, tribos indígenas, rebeliões, inconfidências, Canudos, sempre a título de civilizar os impulsos desordenados e bárbaros da “gente grossa”.

CONTINENTE E quem organiza essa formação de uma nova ordem política?
BRUNO CAVA Ainda é cedo, me parece, para dizer “quem organiza”, mas é certo que o movimento se organiza de uma maneira ou de outra, de muitas maneiras, porque são muitas, mesmo, as táticas, instâncias deliberativas, formas de comunicação e redes de produção política e cultural. O fato é que funciona, e que há uma enorme potência aí à solta, tirando a tranquilidade de quem só consegue pensar segundo velhos esquemas, ou que depende da manutenção da ordem vigente para conservar privilégios, da falta endêmica de democracia, da gestão autoritária dos negócios da cidade. E é só imergindo nesse funcionamento, participando desse ciclo em sua constante requalificação e aprendizado, que vai ser possível não só compreender o movimento, mas contribuir com ele, extrapolando dele as tendências positivas, construtivas. O que fica claro, hoje, é que vivemos um tempo de grande transformação, sem gentileza para os esquemas e macetes. 

FÁBIO LUCAS, jornalista, mestre em Filosofia e editorialista do Jornal do Commercio.

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