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“Não temos mais lugar para gênios”

Livre docente da Unicamp, o professor, escritor e tradutor Márcio Seligmann-Silva fala sobre a não existência de superdotados na contemporaneidade

TEXTO Luciana Veras

01 de Julho de 2014

Márcio Seligmann-Silva

Márcio Seligmann-Silva

Foto Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 163 | jul 2014]

Professor livre-docente de Teoria Literária na Universidade
Estadual de Campinas – Unicamp, Márcio Seligmann-Silva possui formação em História, com mestrado em Letras e doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Freie Universität de Berlim. Prolífico autor, com extensa lista de publicações nos meios acadêmicos, é também tradutor e escritor premiado: seus livros Walter Benjamin: Romantismo e crítica poética (1999) e O local da diferença – ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução (2005) venceram, respectivamente, o prêmio Mario de Andrade de ensaio literário da Biblioteca Nacional, em 2000, e o Jabuti de melhor livro de teoria/crítica literária, em 2006. Autoridade em romantismo alemão e em Teoria Estética dos séculos 18, 19 e 20, entre outros temas em que atua, ele falou à Continente sobre a noção de “gênio” no âmbito da contemporaneidade.

CONTINENTE Você afirma que o conceito do “artista-gênio” segue em reconfiguração, até por conta das novas técnicas de mapeamento do cérebro. Hoje, à luz da História da Arte e da Literatura, que são seus campos de maior atuação, como se enquadraria a noção de “gênio”?
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA Na verdade, esse conceito de gênio e, mais especificamente, de artista-gênio, foi sendo deixado de lado ao longo dos séculos 19 e 20. O auge dessa noção foi a segunda metade do século 18 e início do século seguinte. Essa época coincide com a fundação tanto da Teoria Estética (com Baumgarten e Kant) como a da História da Arte (com Winckelmann). O Romantismo foi o paroxismo desse conceito. Depois, passa-se a falar mais em intuição, criatividade, fantasia ou, em termos da filosofia de Peirce, em abdução. Um termo do qual não conseguimos ainda nos livrar é o de “originalidade”, que tem relações claras com a noção de “gênio artístico”. Todas essas categorias projetam no artista uma capacidade intelectual (e sensível) que está além da razão e da lógica do tipo cartesiano. Hoje, tentamos perseguir essa capacidade singular dos artistas (incluindo aí os escritores) com o auxílio de máquinas que escaneiam nosso cérebro em funcionamento. A bem da verdade, do que já pude ler dessas pesquisas, não me parece que elas estão aportando novidades, mas apenas confirmando o que já sabíamos com base, justamente nos tratados de estética desde o século 18. A única diferença é que agora associamos àquele saber belos gráficos coloridos de nosso cérebro pulsante.

CONTINENTE Um dos seus artigos traz o seguinte pensamento de Kant: “O artista deve descobrir em si a própria originalidade ao admirar a obra do artista-gênio”. Como se encaixaria aí o “gênio contemporâneo”? Um “gênio” seria o criador a partir do qual surgiriam as imitações, releituras ou ressignificações, para usar termos caros aos tempos de hoje?
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA A questão, para Kant, era como conciliar a veneração dos clássicos, ainda dominante na sua época (o final do século 18), com uma valorização da potência “genial” do artista. Se este não podia mais ser visto como simples imitador, restava a ele aprender com as grandes obras a transformar-se ele mesmo em um “original”, digno de admiração. Mas o paradoxo é que esse artista-gênio que se torna um original também será imitado. Portanto, não existe uma obra absolutamente original e a famosa angústia da influência, teorizada por Harold Bloom, é um mal dos artistas até hoje. Essa busca da “originalidade absoluta” é ilusória e reflete, na verdade, angústias do indivíduo moderno e de sua constante crise de identidade. Por mais que em nossa era tenhamos aprendido a valorizar uma série de gêneros e figuras do discurso que desconstroem o culto da originalidade, como o pastiche, a imitação, a ironia, a colagem e mesmo a cópia e a tradução, ainda não nos livramos totalmente desse paradigma e continuamos a valorizar a assim chamada “originalidade” artística. Consideramos um artista original quando ele nos abre novos caminhos para pensar a própria arte. Esse caminho passa a ser frequentado e transforma nossa imagem da própria história da arte e da literatura. Figuras originais, nesse sentido, foram Van Gogh, Picasso, Duchamp, Kafka, Joyce ou o nosso Guimarães Rosa. Eles mudaram seu presente, o futuro e nossa imagem do passado das artes.

CONTINENTE No contexto da criação literária atual, incluindo aí a profusão de novos autores e mecanismos de recepção/fruição, como os e-books, há espaço para mentes geniais ou para uma concreta originalidade?
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA No nosso universo da hiperinformação e da hipermnésia, ou seja, de uma memória gigantesca que permite que diferentes gêneros, estilos e modas convivam paralelamente, tornou-se difícil de se estabelecer quem seriam esses “gênios”, ou artistas originais que estariam apontando para novas direções. De certa maneira, podemos pensar que, apesar de ainda tendermos a pensar com uma cabeça romântica e a valorizar o artista “original”, essa categoria já se esgotou ou está se esgotando. Ela foi esmagada pela revolução midiática. Mesmo a noção de autoria entrou em crise: quem é o autor de uma fotografia, por exemplo: quem clica, quem a manipula eletronicamente, o engenheiro que inventou o software ou o que criou o dispositivo captador de imagens? Estamos falando de milhares de técnicos e de técnicas, vinculadas à sintetização dessas imagens. Também textos, ao entrarem na web, são imediatamente engolidos, cortados, reproduzidos e transformados. Temos que desenvolver conceitos para lidar com essa nova produção. Nossa era exige que pensemos a arte na sua profunda relação com a técnica e com a ciência.

CONTINENTE Para terminar: na sua opinião, que escritores mereceram/ merecem o epíteto de “gênio”? Por quê?
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA Como disse, hoje não podemos ver alguém que consiga elevar-se a tal ponto, no cenário cultural, para ser chamado de “gênio”, de um “original”. A massificação da produção das artes gera uma democratização dessa capacidade de se abrir sendas. Os movimentos são agora mais sutis. Não temos mais lugar para o “artista-gênio” que, de uma tacada, muda os rumos da sua arte. Da mesma forma, nas ciências, também o saber se dispersa em uma enorme cadeia de produtores. Estamos em uma era pós-autoral e, portanto, para o bem e para o mal, não temos mais lugar para os gênios. 

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