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“Calabar como traidor era um anacronismo que convinha”

O historiador carioca Ronaldo Vainfas comenta a figura controversa que foi Calabar, considerado um "quinta-coluna" em sua adesão aos holandeses em Pernambuco

TEXTO Luciana Veras

01 de Agosto de 2015

Ronaldo Vainfas

Ronaldo Vainfas

Foto Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 176 | ago 2015]

Professor de História da Universidade Federal Fluminense,
com foco na história ibero-americana e luso-brasileira dos séculos 16 e 17, o historiador carioca Ronaldo Vainfas é autor de Traição (2008), livro que ilumina a saga de religiosidade e aleivosia do frei Manoel de Moraes, tão quinta-colunana guerra entre portugueses e holandeses na capitania de Pernambuco quanto o famigerado Calabar.

CONTINENTE Calabar é descrito em Traição (2008) como o “patriarca dos traidores”. Mas sabe-se, a julgar pelo seu livro e outros trabalhos acerca do Brasil holandês, que ele não foi o único a praticar o que Evaldo Cabral de Mello descreve como quinta-colunismo. Por que, então, ele entra para a História como o maior “vira-casaca”?
RONALDO VAINFAS Em primeiro lugar, porque foi o caso mais comentado na crônica portuguesa da conquista holandesa. Frei Manoel Calado, Rafael de Jesus, Francisco de Brito Freire, Duarte de Albuquerque Coelho, todos enfim, destacaram, na época, a passagem de Calabar para o inimigo holandês como desastrosa para a resistência. Mais tarde, quando Francisco Varnhagen se dedicou ao tema, na sua História geral do Brasil (1854-1857), embarcou nessa e adensou o mito. Em segundo lugar, porque a adesão de Calabar aos holandeses, em 1632, coincidiu com o avanço da conquista, até então restrita ao litoral de Pernambuco e à Ilha de Itamaracá. Em 1635, a conquista holandesa estava consolidada, inclusive na Paraíba e no Rio Grande do Norte, além do interior pernambucano. Os cronistas portugueses destacam muito o papel de Calabar, que conhecia trilhas e maneiras de lidar com os índios, pois era mameluco e falava a língua de tabajaras e potiguaras. Mas há exagero. O que contou mais foi o aumento dos investimentos da Companhia das Índias (WIC) e a troca do comando militar. A chegada do coronel polonês Christoffel Artichewsky foi muito mais importante. Aliás, ele ouviu muito os palpites do Calabar sobre como fazer a chamada guerra brasílica. Em terceiro lugar, Calabar ficou famoso pelas circunstâncias da sua morte. Traído por um espião duplo, Sebastião do Souto, quando do cerco de Porto Calvo pelo exército luso-brasileiro, em 1635, foi capturado por Matias de Albuquerque e sumariamente julgado, enforcado e esquartejado – episódio de grande repercussão na época.

CONTINENTE Muito se especula sobre os motivos que teriam levado Calabar a passar para o lado neerlandês. Que razões o senhor aponta?
RONALDO VAINFAS Ele não foi o único, embora tenha sido o mais famoso e um dos primeiros. A maior parte dos que passaram para o lado holandês foi motivada pela convicção de que a derrota era certa. O rei de Espanha, que também era o de Portugal, mal enviava reforços. As derrotas militares se sucediam. A perspectiva de fazer negócios rendosos com os holandeses pesou. O quinta-colunismo cresceu muito entre 1632 e 1635. No caso de Calabar, muitas razões foram aventadas, desde a de que ele fugiu de uma acusação de estupro, fato meio delirante, até a de que ele tinha dado um desfalque no Arraial de Bom Jesus, o que é possível, mas muitos também faziam. Vasco Mariz, no livro Depois da glória, sugeriu que ele fugiu de uma sociedade em que o preconceito racial era muito forte e, de fato, os holandeses não fizeram caso de ele ser mestiço. Também Manoel de Moraes não teve problema com os holandeses por ser mestiço. Na minha opinião, Calabar passou para o lado holandês porque viu nessa ação um meio de ascensão social. Percebeu, em 1632, que os holandeses venceriam a guerra e quis ficar do lado vencedor. Até onde sei, ele mesmo ofereceu seus serviços, à diferença de Manoel de Moraes, que só o fez quando se viu cercado na Paraíba, em 1634.

CONTINENTE A história de Calabar é pouco documentada. Ainda assim, ele é um dos mitos do período da ocupação holandesa, nome repetido nos livros escolares, junto ao de Maurício de Nassau, como personagens principais da história vivida entre 1630 e 1654. A que o senhor atribui a perpetuação dessa pecha de “grande traidor”?
RONALDO VAINFAS Antes de tudo, a uma tradição historiográfica do século 19 que, como disse, se baseava na crônica portuguesa da guerra. Mas o século 19 foi tempo de construção do Brasil e de invenção da memória nacional, tarefa delegada ao Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Tratava-se de afirmar uma espécie de brasilidade vocacional, um sentimento patriótico que vinha desde o período colonial. Daí a consagração de termos como “invasão francesa” ou “invasão holandesa” para nomear disputas entre países colonialistas europeus, como se os inimigos da metrópole portuguesa fossem também inimigos do Brasil. Lembre que, segundo Varnhagen, o principal historiador brasileiro do século 19, a história brasileira era uma continuação da portuguesa. Logo, como Calabar aderiu ao “invasor holandês”, acabou celebrizado, negativamente, como o grande traidor do Brasil, mesmo antes de o Brasil ser Brasil.

CONTINENTE O senhor considera que a historiografia oficial foi injusta com Calabar?
RONALDO VAINFAS Não é questão de justiça ou injustiça, mas de saber distinguir bem a história da memória. Calabar como traidor da pátria brasileira é um anacronismo que, no entanto, convinha a um tempo em que os historiadores estavam empenhados em construir uma história pátria, confundida com memória da então jovem nação brasileira. Calabar não foi mais do que um dos primeiros e o mais famoso militante do quinta-colunismo na conquista holandesa do Nordeste. Ele traiu? Claro que traiu. Mas traiu, sim, o rei de quem era súdito, Filipe II de Portugal ou Filipe IV de Espanha. E traiu, sobretudo, Matias de Albuquerque, o comandante da resistência que tinha depositado enorme confiança nele – que, por isso, foi implacável ao capturá-lo. Trair o Brasil, Calabar não traiu, porque não existia o Brasil como nação.

CONTINENTE Frei Manoel de Moraes, por sua vez, tem uma trajetória rica em reviravoltas, incluindo a liderança de um pelotão indígena ao lado de Portugal e uma posterior conversão ao calvinismo. Tudo isso é narrado em seu livro. Para o senhor, ele foi um oportunista, um espertalhão, um traidor ou um sobrevivente?
RONALDO VAINFAS Foi tudo isso, mas evito falar em oportunismo ou esperteza para não emitir juízo de valor descabido. Manoel de Moraes era, de um lado, um homem comum, daqueles que preferiram aderir ao vencedor por ambições e circunstâncias de momento. Mas, como era jesuíta que se converteu ao calvinismo e, mais, deu informações logísticas de grande valor para os holandeses, Manoel foi um colaborador especial. Trocou a Companhia de Jesus pela Companhia das Índias e isso diz tudo. Trocou a militância católica pelo fetiche da riqueza. Mas ele nunca deixou de ser católico e jesuíta nas profundezas de sua alma, embora fosse capaz de vender ou alugar sua fé e suas convicções para quem pagasse melhor. O que mais me atraiu na figura é o exemplo que ela dá de um tempo em que os valores tradicionais de lealdade e convicção religiosa conviviam com valores novos: riqueza e ascensão social. Manoel de Moraes viu no calvinismo uma via para poder casar, ter filhos, ganhar dinheiro, granjear prestígio, subir na vida, sem deixar de ser cristão praticante. Deu um passo enorme. Mas teve que dar outro maior para regressar ao seu nicho, porque sempre foi católico.

CONTINENTE O que mais o surpreende na trajetória de Calabar e de frei Manoel de Moraes? A traição em si ou a coragem de praticá-la?
RONALDO VAINFAS A traição em si não me surpreende, porque foi (como é) muito comum. As circunstâncias pesaram, como sempre pesam. A qualidade da traição não me surpreende, mas é digna de nota, sobretudo no caso de Manoel, considerando a sua formação jesuítica. A obra de Joannes de Laet sobre a Companhia das Índias contém inúmeras informações valiosas que ele deu ao coronel Artichewsky sobre as aldeias indígenas do Nordeste: localização exata, número de guerreiros, nomes dos chefes em tupi e em português. Um luxo!

CONTINENTE O senhor considera essas duas figuras ainda pouco conhecidas no contexto geral da História do Brasil – aquela que se ensina nas escolas ou mesmo nas universidades?
RONALDO VAINFAS Calabar é mais conhecido no Ensino Médio, mas muitas vezes de maneira tradicional, como traidor, e ponto. Manoel de Moraes sequer aparece nos manuais didáticos. Nos cursos universitários de História – nos bons –, aí é diferente, os personagens são conhecidos e problematizados. Meu livro Traição procurou ajudar esse processo de conhecimento histórico.

CONTINENTE Que passagem da vida de frei Manoel de Moraes lhe chama mais a atenção?
RONALDO VAINFAS O que mais me chamou a atenção foi o “retrocesso” dele. Em 1642, ele estava casado com uma bela mulher holandesa, Adriana Smetz, vivia em Leiden com ela, um filho do primeiro casamento e duas meninas. Era assistente de Joannes de Laet, grande intelectual, em uma universidade de ponta. Publicava textos, redigia uma história do Brasil com preciosas informações etnográficas e geográficas. Quando soube que fora condenado pela Inquisição à revelia, simbolicamente queimado como herege em Lisboa, ficou transtornado. Começou a procurar os embaixadores portugueses em Haia para negociar sua volta, desde que perdoado pela Inquisição; passou a frequentar a Igreja do Cordeiro Branco em Amsterdã, um reduto de católicos portugueses ali residentes; publicou texto a favor da restauração portuguesa contra a Espanha; ofereceu-se para lutar pelo novo rei de Portugal. Nenhum português condenado à revelia que vivia na Holanda sequer cogitou fazer uma coisa dessas. Tudo na surdina. Também na surdina, negociou com a Companhia das Índias um empréstimo para explorar pau-brasil em Pernambuco. Fez leilão de si mesmo e outra vez se vendeu aos holandeses. Mas já tinha o plano de dar calote nos holandeses e voltar ao catolicismo no Brasil, abandonando mulher, filhos, doutrina de Calvino e o que fosse. Era um jogador. Manoel passou a trair também os holandeses, sem deixar de trair os portugueses. Tentava combinar seus interesses pessoais com a glória devida a Deus – ad majorem Dei gloriam, “para maior glória de Deus” –, lema jesuíta que ele tinha aprendido quando menino. Tarefa impossível. 

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