Psicanálise: De onde vem a nossa atração pelo terror?
O fascínio por essas narrativas e sua ação psicológica surgem da tensão entre o que não se deve saber e aquilo em que não se pode acreditar
TEXTO Christian Ingo Lenz Dunker
01 de Maio de 2012
Ilustração Indio San
[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 137 | maio 2012]
De todas as formas do romance, a do terror é a que nos parece mais atual e a que menos experimentou alterações e experimentações. Nascido no Romantismo, esse gênero literário adquiriu ao longo do tempo excepcional capacidade para conciliar mutação de cenários com relativa preservação de enredos. Prova disso é sua variação de meios: adaptações dos contos dos Irmãos Grimm, crepúsculos vampirescos, quadrinhos de Lovecraft, ópera gótica, rock metálico do Black Sabbath ao Sepultura.
O terror não esmorece com a repetição. Ele parece ficar mais forte e se dissemina com o reencontro da mesma combinação já conhecida entre excitação e temor. A estética de sua recepção retoma o que experimentamos quando crianças e queríamos ouvir a mesma história de novo, em todos seus detalhes sórdidos, com bruxas, lobos, madrastas e vilões.
Freud distinguiu o terror baseado no retorno de experiências que negamos em nós mesmos e o que explora a suspensão de crenças sobre a realidade. É preciso ter esses dois elementos combinados, a corrupção da intimidade e a crítica da realidade, para estarmos de fato no universo do terror. A narrativa da intimidade traz intriga, suspense e mistério, enquanto o discurso de suspensão da realidade investe em outros mundos possíveis, fantásticos e sobrenaturais. Hawthorne (1804-1864) e Poe (1809-1849) inauguram o primeiro tipo. Neles proliferam coincidências insólitas, estranhamentos e superstições, mas seus personagens são marcados pelo retorno da vilania deste mundo. Eles torcem nossa relação com a verdade, mostrando coisas que já sabíamos, mas preferíamos esquecer. Partindo de signos de segurança como a casa, a família e a vida cotidiana, somos levados a perversidades obscuras. Moral da história: a verdade está em outro lugar, o horror baseia-se no fato de estarmos enganados, de sermos traídos ou abandonados.
O segundo ramo do terror como gênero literário deriva de Hoffman (1776-1822) e Lovecraft (1890-1937) e se orienta para a crítica de nossas crenças na natureza da realidade. Aqui não é a verdade, mas o real que está em outro lugar. O horror decorre da aparição de algo que não tem forma, nome ou sentido. Sua imagem é suspeita. Não sabemos se o próprio texto é um relato descritivo, um sonho, uma ilusão ou a presença de realidades até então desconhecidas ou malconhecidas. A narrativa prefere partir do insólito para nele reencontrar o signo do maldito, opressivo e macabro que nos põe em contato com criaturas e seres de outros mundos.
Terror e pornografia prosperam como gêneros que acentuam a vivência real no corpo, de prazer ou de angústia. Sintoma, mas também antídoto narrativo contra a banalidade do real e a inconsequência da verdade. Lembremos que o terror e o estranhamento são experiências que nos acontecem na vida real, mas com exceção das crianças, raramente somos levados a questionar o valor de realidade das experiências de terror, a não ser quando elas se tornam traumáticas. Diante de um fato muito violento ou de extrema angústia podemos demorar bastante considerando a valor de realidade do que teria acontecido. Por exemplo, quando perdemos um ente querido, com quem tínhamos uma convivência próxima, é comum sentirmos que, apesar de saber que tal pessoa morreu, não é possível acreditar na realidade do acontecimento.
Com excesso de iluminação, o filme O iluminado subverteu clichê máximo do gênero.
Foto: Divulgação
PERDA DA ALMA
Psicanálise e gênero literário do terror são contemporâneos históricos e tributários de um grande tema comum: a alienação, a perda da alma, a experiência social e psíquica de perder o que há de mais próprio em si. A alienação é, antes de tudo, como uma patologia do déficit de reconhecimento de nosso próprio desejo. Aquele que não quer saber disso, é porque já sabe demasiadamente do que é feita sua vontade. O equivalente narrativo da alienação é naturalmente a criatura indeterminada, autônoma ou autômata, humana ou inumana. Kleist, em Sobre o teatro de marionetes (1810), descreve o sentimento de ser comandado por outro. Shelley, em Frankenstein (1831), acrescenta a isso o sentimento de perda da unidade e origem. Finalmente, Balderstone, com A múmia (1932), evolui o problema para a dimensão da alma, sobre a qual não se sabe se está viva ou morta, revitalizando em metafísica materialista a antiga tradição dos fantasmas.
O ponto característico nessa linhagem do terror é que o protagonista restringe sua vida a um único objetivo, um único desejo, perseguido de forma irreflexiva, automática e inflexível. O semi-humano de A volta dos mortos vivos (Romero, 1980) anda lentamente, come carne humana e está sem lugar no mundo, depois que deixou o túmulo. Para ele, a vida tornou-se uma mera função que se repete de modo insensato, coletivo e indiferenciado. Os zumbis não podem propriamente morrer, pois o que está em questão é justamente seu estatuto de vivente. Por isso são mortos impunemente, como o homo sacer de Agamben. Ao custo de vigorosas deformações, a frugalidade, insipidez ou superfluidade de nossas vidas, sem alma, quando nos demitimos de nosso próprio desejo, adquire visibilidade trágica e universal. Essas figuras que não querem saber, mas apenas agir. Encontramos aqui uma das montagens mais comuns da fantasia inconsciente. Quando nela só há espaço para o objeto e quando a sombra desse objeto cai sobre o eu, sobrevêm o desamparo e a melancolia.
Nosso fascínio pelas narrativas de terror e boa parte de sua benéfica ação psicológica decorre do exercício com a própria fantasia, da tensão entre o que não se deve saber e aquilo em que não se pode acreditar. O filme de terror pede que coloquemos as mãos na frente dos olhos, tentando controlar o limiar entre excitação transgressiva e horror traumático, como que a negociar a presença de um estranho fragmento de verdade sobre nosso próprio desejo e o horror despertado por esse grão de real, que é o objeto de nossa angústia. Fugimos da verdade dizendo: “não quero saber”, mas evitamos o real nos convencendo de que “é só imaginação”.
O gênero do terror mostra como essas duas atitudes reunidas definem a fórmula fundamental do autoengano. A moral das histórias de terror reza que pagamos um preço alto demais para continuar dormindo sem saber. Se a grande metáfora pós-moderna do progresso e da conformação do eu aos dispositivos de saúde, higiene e cuidado afirma que a transformação é sempre possível e desejável, o terror lembra que há mudanças súbitas, irreversíveis e orientadas para o pior.
FRAGMENTAÇÃO DO EU
Encontramos aqui a segunda estratégia discursiva do terror, compatível com uma experiência de desregulação do espírito. Em vez da fixação cega em um objeto, nesse momento, o terror se infiltra pela multiplicação ou fragmentação indefinida do Eu, privando-o de sua unidade e totalidade. Os elementos adquirem o valor de funções e estas são destituídas de suas finalidades. Uma parte do corpo ganha vida própria e autonomia em relação ao resto. Em O iluminado (1980), as funções de um hotel, construído no solo sagrado de um antigo cemitério indígena, começam a impor ao personagem vivido por Jack Nicholson, uma obsessão com seu trabalho. Ao contrário de outros filmes de horror, que enfatizam as sombras como metáfora visual para o desconhecido e misterioso, Kubrick constrói as cenas com excesso de iluminação, mas sem focar objetos e personagens diretamente. Isso produz a incômoda sensação de que por mais visível que determinado traço se mostre, ainda assim não o conseguimos apreender corretamente. Perfeito para mostrar a ausência de funcionamento sistêmico e interno ao conjunto, em cujos elementos o eu se multiplica e fragmenta.
O tema do duplo surge em diversas produções, como O médico e O monstro, com Spencer Tracy. Foto: Divulgação
O efeito de terror advém dos aspectos esquizoides da montagem da fantasia. Presentes literariamente no tema romântico do duplo, desde Dr. Jekyll and Mr. Hyde (Stevenson, 1886), até Gêmeos – mórbida semelhança (David Cronenberg, 1988), e desde A metamorfose de Kafka (1915) até A mosca (Neumann, 1958), a esquizoidia é sentimento de quebra, fragmentação e estranhamento de si. Não se trata de perda da alma, mas do desregramento das formas pelas quais ela poderia ser reconhecida. O corpo próprio torna-se estranho, o Outro não nos reconhece mais, há experiências de disjunção entre partes e elementos, de estranhamento entre o Eu e o Outro. Ocorre uma espécie de possessão do desejo pelos interesses do sistema, ou seja, pelo Outro.
ESTRANHO
Mudando radicalmente cenários, exagerando grotescamente personagens e apelando para intensa ficcionalidade, a retórica contemporânea do terror explora fartamente o caráter intrusivo da sexualidade, do estranhamento corporal, da solidão e da angústia. Freud abordou transversalmente o tema do terror no espectro do que ele chamou de Unheimlich. Palavra de difícil tradução, pois equivaleria ao ponto no qual o familiar se torna estranho e o estranho se torna familiar. Horror e terror são efeitos que acontecem nessa zona de transição entre o sentimento de segura familiaridade e de perigosa alteridade. É nisso que o terror se afina com a experiência adolescente que se fortalece como público consumidor emergente desse gênero. Mas, desde que não pensemos na adolescência apolínea, para a qual os adultos sonham retornar, e, sim, na adolescência sombria, porém sincera, que percebe como apodrecemos tediosamente entre o passado empobrecido e a trivialidade do futuro.
Daí que, tanto para essa estratégia de indução do terror quanto para essa forma de vida, o passado seja tratado com detalhado respeito em meio a hierarquias medievais, tradições sagradas e mitos fortificados; daí que, para ambas, o futuro seja radicalizado em seu aspecto mais real e inescapável, a saber, a morte e suas experiências adjuvantes, com corpos em decomposição, desamparo, agonia e sofrimento. Nesse sentido, o terror, como linguagem crítica, denuncia nossa voracidade em suturar, por meio de um objeto, o intervalo entre a realidade bem constituída e a verdade socialmente compartilhada. Se o terror baseado na experiência de perda da alma e na intrusão do objeto perturbam nossa relação de crença na realidade, o terror baseado na desregulação do espírito e na violação de pactos simbólicos privilegia a dimensão do saber e da verdade.
A estratégia da indução do terror baseada na violação de um pacto é o recurso mais antigo e tradicional. Geralmente, a narrativa compõe-se em torno de um pedido, trato ou promessa que sofre interrupção e permanece assim não consumado. Como os desejos infantis a que temos que renunciar e que voltam a nos assombrar por toda a vida, as antigas experiências amorosas que nos rondam como fantasmas, e as ilações de desejos que não se cumprem de dia e que voltam realizadas em nossos sonhos, a figura do fantasma tem um grande motivo: ela volta para cobrar uma dívida simbólica. No caso do terror, esse é o ponto de retorno das almas penadas, que vêm fazer seu ajuste de contas com o mundo dos viventes. Trata-se de cumprir uma espécie de justiça simbólica que reequilibra diferenças entre viventes e mortos. Esta é a montagem da fantasia na qual os limites entre realidade e ficção são embaralhados, de tal forma, que há um retorno na fantasia do que foi negado na realidade.
Incluem-se nessa estratégia discursiva o tema dos objetos, lugares e situações malditos ou demoníacos. E geralmente são retornos vingativos de entidades familiares: Chucky, o brinquedo assassino, a televisão em Poltergueist, telefone e vídeo em O chamado, o Freddy Krueger capaz de penetrar na região mais íntima e protegida do sono e do sonho, sem falar nas variantes assumidamente cômicas, como tomates ou Barbies assassinas, insetos e animais de toda, chegando ao cúmulo da sala de estar vazia em Atividade paranormal.
A violação do acordo simbólico entre vivos e mortos, entre homens e deuses, entre adultos e crianças sempre decorre de um ponto de instabilidade, no interior da fantasia inconsciente, entre a função de organização da realidade e a função de transmissão dos desejos. É nesse ponto que algo da realidade não se sexualiza, ou não se simboliza corretamente, dando margem aos fenômenos de retorno. Quando aquela linda garota decide tomar banho nua na lagoa sombria, quando aquele grupo de adolescentes ruma para o cemitério para escarnecer os mortos, ou quando o menino tenta abrir a única porta ostensivamente proibida, sabemos que o risco representado pelo desejo terá uma consequência.
Nossa atração pelo terror, expressa pela compulsão em repetir experiências que o terror nos evoca, não constitui um gosto patológico. Pelo contrário, funciona como uma espécie de antídoto para o empobrecimento de nossa fantasia, eventualmente presa a condições e limitações que exprimem nossa covardia em atravessar pontos de vista protegidos pelo horror e pelo estranhamento. No momento em que enfrentamos tantas formas de segregação, intolerância e forçamento ao mesmo tipo de realidade compartilhada e à mesma posição de verdade, o terror ainda é uma das formas discursivas às quais se pode atribuir algum potencial crítico, bem como alguma potência de recuperação do desejo. Nossa atração pelo terror denuncia que ainda não nos conformamos totalmente com o que a realidade coloca diante de nossos olhos.
CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER, psicanalista.
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