Procura-se um personagem
Anjos, pastores, santos e soldados juntos num universo miraculoso onde cabia até Marilyn Monroe
TEXTO Ronaldo Correia de Brito
01 de Dezembro de 2002
Quem entrava na casa de minha avó materna, avistava na parede da sala de visitas uma imagem do Coração de Jesus, litogravura suíça, herança de família. Logo abaixo dessa imagem em tons verdes e pretos, lembrando um ícone russo, o retrato do meu avô, Pedro Zacarias de Brito, fotografado dentro do caixão em que o enterraram. Esses dois personagens reinavam absolutos na casa grande e antiga do sítio Boqueirão, no Crato. Era impossível não avistá-los uma centena de vezes por dia e mais impossível não se sentir olhado, vigiado e protegido por aqueles dois senhores.
Minha avó Dália Nunes de Brito professava uma religiosidade popular, que parecia ter sido inventada por ela mesma. Nesse cristianismo sertanejo não aconteceram as sangrentas matanças dos cruzados, nem as fogueiras dos tribunais da Inquisição e nunca se mencionou a usura de Roma, acumulando tesouros ao longo da história. Minha avó tinha desapego aos bens materiais e fazia questão de não possuir quase nada, além das terras que meu avô deixara. Os únicos objetos intocáveis na casa de portas escancaradas eram as imagens dos santos, a mesinha de altar com toalha de renda de bilros, dois castiçais de vidro e uma jarrinha de porcelana.
Ela rezava um rosário às três da manhã, outro ao meio-dia e um terceiro ao anoitecer. Valia-se do Coração de Jesus e do marido morto, em todas as agonias. Uma vez por ano se festejava o Sagrado Coração, na data em que ele fora entronizado na parede de onde nunca deveria sair. A renovação, como se chamava a festa, acontecia no mês de julho, época de fartura. Os reisados cantavam:
“Quando eu entro nessa nobre sala
É pelo claro dessa luz
Louvor viemos dar
Ao Coração de Jesus”.
As mulheres entoavam os benditos, os homens soltavam os fogos de caibro, servia-se aluá de abacaxi, bolo de puba, pão-de-ló de goma, sequilhos e biscoitos. Tudo modesto e exíguo. Porém, não existia felicidade terrena maior do que aquela.
No Natal, o Sagrado Coração ficava um pouco esquecido e desprestigiado. Minha avó só cuidava do Jesus Cristinho, um meninozinho de madeira, rosado e risonho, vestido numa camisa de seda, esculpido lá longe em Portugal, e recebido de presente da nossa tia-avó Nizinha. Diferia de todos os Meninos-Deus que conhecíamos, por ser igual a nós. Debaixo do vestidinho rendado, lá entre as coxas, tinha como todos os meninos, um pinto e dois ovinhos. Minha tia Alzeni achava aquilo uma profanação e tentava por todos os meios esconder a sexualidade do Deus Menino. Pensou em mandar castrá-lo, livrando-se da nossa curiosidade. Todas as vezes que passávamos diante da lapinha, levantávamos a saia do menino e olhávamos o seu sexo, comparando com o nosso. Era difícil imaginar que aquele camarada deitado na manjedoura de palha, em tudo semelhante a nós, crescera e se tornara o Senhor pregado logo acima na parede, vigiando-nos com os seus olhos bondosos, mas severos.
Minha avó confeccionava os enfeites da lapinha com lã de ciumeira e de barriguda. O tempo livre de que ela dispunha, entre os trabalhos e as rezas, ocupava naquele artesanato minucioso, dando vida a carneiros, bois, burros e camelos. As figuras de José, Maria e dos Reis Magos, de louça modesta, eram as mesmas dos outros anos. Mais bonita que a lapinha da nossa avó, só mesmo a das irmãs do alfaiate Zé de Rita, famosas no Crato. O ano tornava-se curto para elas construírem a cidade cenário que ocupava quase uma sala. Havia de tudo naquele universo miraculoso: uma Jerusalém reproduzida, montanhas, lagos com cisnes e peixes, exércitos de soldados romanos, vilas, currais, bichos domésticos e selvagens, florestas, campos, pastores e pastoras em profusão, anjos e santos, tudo distribuído nos três níveis: o superior divino; o intermediário e o terreal. Era impossível imaginar-se alguma coisa que não estivesse representada ali. Uma vez, eu juro, cheguei a avistar uma Marilyn Monroe de papel, seminua, pendurada no galho de uma árvore.
O cinema trouxe para o Crato o glamour hollywoodiano e a fantasia dos natais com neve e pinheiros. As lapinhas perderam prestígio, como o catolicismo. O cineasta italiano Federico Fellini anunciou o fim da mitologia cristã, mas eu teimei em saudar o Jesus pagão da minha infância, em teatro e música, numa festa batizada com o nome de Baile do Menino Deus. Um dia, convidaram-me no Recife para conversar com uma turma de colégio de classe média. A escola decidira fazer um espetáculo de Natal e os meninos, em torno de vinte, escreveriam o texto.
Queriam minha ajuda, um empurrãozinho. Aceitei e fui ao encontro. Eram crianças inteligentes, com certa automação dos jogos de computador e vídeo games. Propus um começo. Anotaríamos a lista dos personagens do Natal, os mais importantes. Gritaram todos ao mesmo tempo. Pedi ordem. Surgiram os nomes, as figuras famosas das decorações natalinas dos shoppings: Papai Noel, o trenó, as renas, a árvore de natal, a neve. Estranhei as respostas. Insisti. Lembraram os gnomos, os duendes, a oficina de brinquedos do Gepetto e os anõezinhos de Branca de Neve. Assustei-me. Não acreditava no que ouvia. Não é possível! Quem são os verdadeiros personagens da festa de Natal, aqueles, sem os quais nada teria acontecido? Todos concentrados. Espera aí... Espera aí... E nada. Não vinha um nome. Apelei. Lembrassem pelo menos do personagem mais importante, o que deu origem à noite de Natal. Por fim, um geniozinho gritou: Já sei! Já sei!
Que alívio!
E com ar vitorioso anunciou:
– O peru da Sadia.
*Texto publicado originalmente em dezembro de 2002, na coluna Entremez da revista Continente, edição 24.