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Práxis: O papel do cidadão

Arquitetos apontam que a preservação do acervo moderno depende da valorização e tomada de consciência de sua relevância pela população

TEXTO LUCIANA VERAS
FOTOS TIAGO LUBAMBO

01 de Maio de 2014

Projeto da sede do IAB-PE, de Luiz Nunes, funcionou antes como Pavilhão de Verificação de Óbitos

Projeto da sede do IAB-PE, de Luiz Nunes, funcionou antes como Pavilhão de Verificação de Óbitos

Foto Tiago Lubambo

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 161 | mai 2014]

"Nossas sociedades ainda não consolidaram a ideia
de que a arquitetura moderna é um produto cultural e que deve ser protegida para as futuras gerações. O reconhecimento de um edifício como bem cultural de uma comunidade leva certo tempo. Muitos edifícios modernos estão sob o risco de descaracterização ou demolição, mas vários deles ainda não tiveram seus valores reconhecidos pela sociedade”, expõe Fernando Diniz, arquiteto, professor do programa de pós-graduação em Desenvolvimento Urbano da UFPE e diretor-geral do Centro Avançados de Estudos da Conservação Integrada, no artigo Os desafios postos pela conservação da arquitetura moderna, resultado de uma pesquisa realizada no ICCROM – International Centre for the Study of Preservation and Restauration of Cultural Properties.

A preservação do patrimônio, portanto, é indissociável do envolvimento dos cidadãos. De uma maior aproximação entre a arquitetura moderna e a população também se ocupa o Docomomo, coordenado no país pela professora e arquiteta pernambucana Sônia Marques. “Qualquer pessoa pode se filiar ao Docomomo. Aqui no Brasil, por vários fatores, é ainda basicamente um movimento acadêmico, um encontro de pesquisadores. Mas precisamos ir além, usar diferentes linguagens para atrair as pessoas. Porque, enquanto ficarmos nisso, não se conserva mais nada. Cai casa, cai igreja, cai prédio, cai tudo. O serviço do Docomomo é tentar mostrar essa importância a quem não está vendo e tornar esse patrimônio moderno visível e, se possível, amado. Através dessa visibilidade, poderemos salvar e preservar algumas coisas”, afirma.

Esforços para ampliar o interesse pelo tema têm sido empreendidos também no âmbito institucional. Em 2010, o 19º Congresso Brasileiro de Arquitetos foi realizado no Recife sob o lema Arquitetura em transição e com uma homenagem a Acácio Gil Borsoi. Organizado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB, o encontro levou a seção local da entidade a discutir as ações de preservação.

“A nossa própria sede fica em um prédio tombado, de autoria de Luiz Nunes, um dos primeiros expoentes do modernismo. Entendemos que um dos papéis do IAB é atuar também na educação dos arquitetos e contribuir para diminuir o distanciamento entre a academia e o mercado. Nossas ações voltadas para a preservação passam por esse viés da formação. Tanto que, para o congresso, reeditamos o clássico livro de Armando de Holanda, Roteiro para construir no Nordeste, distribuído entre todos os participantes”, diz Vitória Régia Andrade, presidente do IAB-PE.

Vitória Régia considera essencial que o debate sobre arquitetura ultrapasse as fronteiras universitárias. “Creio que em 2013 avançamos muito nesse sentido, com a atuação de grupos como o Direitos Urbanos. É preciso envolver sociedade, poder público e academia nesse debate, porque o que entra em jogo não são apenas o modernismo e as lições que o movimento deixou, mas a própria história da cidade”, complementa, citando o Direitos Urbanos/Recife (direitosurbanos.wordpress.com), grupo de discussões surgido para se opor ao projeto Novo Recife, iniciativa que construirá edifícios residenciais na área do Cais José Estelita, e que propõe um olhar vigilante sobre os rumos do desenvolvimento urbano na capital pernambucana.

“Se estamos destruindo as marcas do passado, temos que repensar a política de patrimônio, enquanto cuidamos do que ainda está aí, a exemplo dos edifícios-sede da Celpe e da Sudene”, emenda Vitória Régia.


Edifício-sede da Sudene foi inaugurado em 1974 e é marcado pela monumentalidade

SUDENE
Construído por uma equipe técnica coordenada pelo engenheiro Pedro Gorgônia, da qual faziam parte os arquitetos Maurício Castro, Paulo Roberto de Barros e Silva, Pierre Reithler e Ricardo Couceiro, num terreno de 7,6 hectares doado pela UFPE, o edifício-sede da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – Sudene foi inaugurado em janeiro de 1974. Quatro décadas depois, no último mês de abril, o seminário Um prédio fantástico... foi organizado pela UFPE, pela Sudene e pelo Docomomo Brasil para marcar o início do processo de tombamento do prédio, seus anexos e jardins, concebidos pelo arquiteto e paisagista Burle Marx, junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan.

“Começamos a discutir as características, a importância do prédio no contexto da arquitetura moderna, o panorama do pensamento arquitetônico e as edificações institucionais naquele período. Estamos levantando as informações sobre o conjunto. Haverá outras atividades e a ideia é preparar uma documentação para encaminhar o pedido de tombamento aos diversos órgãos municipal, estadual e federal”, comenta Luiz Amorim, professor da UFPE e integrante do Docomomo Brasil.

Se, por um lado, deve-se salientar a importância de preservar o conjunto da Sudene, por outro, é crucial perceber a necessidade de conservação de outros prédios, isolados e menores.

Em setembro de 2013, a demolição do número 375 da Rua do Futuro, nos Aflitos (zona norte do Recife), fez com que moradores da área recorressem às redes sociais para externar sua tristeza.

Em menos de duas semanas, desaparecia outra casa moderna. “Aquela casa fazia parte da memória, do imaginário do Recife, cidade em que o modernismo teve uma concepção forte, regionalizada, com competência. Infelizmente, grande parte já foi perdida”, atesta Lorena Veloso, diretora da Diretoria de Preservação do Patrimônio Cultural – DPPC, órgão vinculado à Secretaria de Cultura da Prefeitura do Recife.

Responsável, na instância municipal, por reconhecer e salvaguardar tudo que deve ser protegido, a DPPC atualmente comanda uma revisão na relação dos IEPs – Imóveis Especiais de Preservação, instituídos pela Lei 16.284, publicada no Diário Oficial, em 23 de janeiro de 1997. No seu artigo segundo, o texto define os IEPs: “Exemplares isolados, de arquitetura significativa para o patrimônio histórico, artístico e/ou cultural da cidade do Recife, cuja proteção é dever do Município e da comunidade, nos termos da Constituição Federal e da Lei Orgânica Municipal”.

“Quando essa lei foi pensada e fechada, a lista inicial era de 395 imóveis, contemplando principalmente exemplares ecléticos. Por quê? Naquela época, pensava-se que a arquitetura moderna ainda era muito recente para preservar. A visão de patrimônio era muito encaixotada. Hoje se tem uma visão mais ampla, já se consegue discernir que aquele imóvel, não interessa se ele é bonito, feio ou se pertence a este ou àquele estilo, tem relevância para a cidade. Talvez, se tivéssemos esse discernimento não teríamos perdido tantos espécimes da arquitetura moderna”, aponta Lorena.


Exemplar moderno que se localizava à Rua do Futuro, nos Aflitos, seguiu o destino de
várias outras casas do estilo. Foto: Mariana Guerra

Desse primeiro quantitativo de quase 400 IEPs, sobraram 154. Sobre esse contingente tem atuado a DPPC, em parceria com professores da UFPE. “Muitos desses são exemplares do modernismo, alguns projetados por Delfim Amorim ou Acácio Gil Borsoi. Nossa ação consiste em definir essa lista, o que é dificílimo, porque houve uma dilapidação muito grande”, explica a diretora da DPPC. Ela defende uma atualização da legislação, para que estímulos mais eficazes sejam oferecidos aos proprietários dos imóveis. No artigo 14, a Lei 16.284 institui as seguintes compensações: “Isenção parcial ou total do Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU; direito de construir na área remanescente do terreno do IEP; transferência do Direito de Construir”.

DESCARACTERIZAÇÃO
Lorena Veloso conta que, ao visitar um conjunto de casas modernas, ouviu a seguinte frase de uma moradora antiga, em diálogo com uma sobrinha: “Eu bem que avisei que a prefeitura vinha tombar essa casa e que deveríamos ter descaracterizado”. Meses depois, ao conseguir uma reunião com representantes da família proprietária, escutou piadas e recebeu cobranças.

“Eles me disseram que aquilo tinha sido construído pelos pais deles, que eles poderiam fazer o que bem entendessem e que, se a prefeitura quisesse tombar, tinha que dar algo em troca. Eu respondi que não era hipócrita para não compreender esse direito. O cidadão tem o direito de propriedade assegurado. No entanto, pela Constituição Federal, esse mesmo cidadão deve reconhecer o que faz parte da memória da sua cidade. Direito de preservação contra o direito de propriedade: essa é a confusão jurídica que muitas vezes atrapalha a salvaguarda. É preciso criar uma sensação de pertencimento nessas pessoas para que elas se envolvam no processo, para que saibam que aquela casa é importante para a cidade”, situa.

A reconfiguração da lista dos IEPs segue até setembro deste ano, quando será pedida uma nova salvaguarda dos imóveis escolhidos. Até lá, nada impede que alguns deles sofram descaracterizações ou venham ao chão.

Talvez, o maior “desafio” seja engajar as “novas gerações” na causa da preservação. “Mentalidade não é chip de telefone, que podemos tirar e botar. Não acredito em catequese, nem em incutir nada na cabeça de ninguém, mas acredito em tornar os valores da arquitetura mais próximos do cidadão comum e que alguns setores poderiam ser mais sensibilizados. Os jovens, por exemplo, estariam aptos a criar uma consciência mais crítica”, argumenta a arquiteta Sônia Marques.

“Não existe nada nem ninguém sem tempo e espaço”, resume Roberto Montezuma, presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo – CAU/PE. “Se você não se sente pertencendo a uma cidade, vai migrar para outra. Porque essa cidade formata algo em você, que é um citadino. O Recife é um conjunto de valores que pouco se tem levado a sério. Para ser essa cidade contemporânea que pretende ser, é preciso respeitar o conjunto arquitetônico do passado e incorporá-lo ao meio ambiente, às águas, às matas. A cidade contemporânea precisa respeitar seus legados. Uma cidade que não se respeita não é respeitada”, condensa. 

LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.
TIAGO LUBAMBO, fotógrafo, sócioda Pick Imagem.

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