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Poetinha: O tradutor do amor

Caderno de poemas inéditos de Vinicius de Moraes, principal item da coleção 'Arquivinhos', apresenta o surgimento do artista que levou sua vida aos versos

TEXTO Débora Nascimento

01 de Janeiro de 2014

Vinicus de Moraes na adolescência, época em que já aspirava ser poeta

Vinicus de Moraes na adolescência, época em que já aspirava ser poeta

Foto Reprodução

No prológo do caderninho de poemas dedicado aos amigos do Colégio Santo Ignacio, o jovem de 16 anos, aspirante a poeta, desculpa-se lírica e antecipadamente com seus possíveis leitores pelos versos das páginas seguintes. O manuscrito, de caligrafia bem-cuidada, denuncia que foi feito num tempo em que os adolescentes não viviam com os dedos em teclados de computadores, perdendo, assim, o jeito de lidar com a escrita em papel. Era o final dos anos 1920, uma época em que os garotos costumavam suspirar de paixões idílicas e platônicas e escreviam versos que adormeceriam em suas gavetas ou nas de suas musas.

No entanto, alguns desses ganhariam vida pública, principalmente porque seus autores “vingaram”, a exemplo de um dos mais populares do nosso país, Vinicius de Moraes, cujo centenário de nascimento se deu em outubro do ano passado. Dentre as homenagens rendidas ao Poetinha, está o relançamento, agora mais arrojado, da pasta que inaugurara, em 2002, a coleção Arquivinhos de escritores brasileiros, da editora Bem-Te-Vi, que recebe o acréscimo do tal caderno com 14 poemas manuscritos do artista, sendo 13 inéditos.

O caderninho é o carro-chefe do pacote, que inclui minibiografia, um belo retrato de Vinicius feito por Portinari, fotos, seu primeiro registro como letrista, Loira ou morena (de 1928, gravado em 1932), cartões-postais e cartas que levam a assinatura de personalidades como Orson Welles, Manuel Bandeira, Pablo Neruda e Charles Chaplin, tudo isso em versões fac-símiles, com direito a manchinhas amareladas “pelo tempo”, mas sem o cheiro de guardado, claro.


Vinicius (quarto à direita, da fileira abaixo) dedicou caderno de versos aos colegas do Colégio Santo Ignacio. Foto: Reprodução

O objetivo do lançamento é que se estabeleça uma sensação de proximidade afetiva com o artista, a partir das cópias de algumas relíquias do seu acervo pessoal. O conjunto ainda inclui o CD Miúcha canta Vinicius & Vinicius. A duplicidade do nome no título se explica porque a intérprete escolheu músicas em que não somente a letra é de autoria do artista, mas também a melodia. A cantora registrou 14 das 20 canções compostas apenas por Vinicius, sem seus mais famosos parceiros (Tom Jobim, Baden Powell, Carlos Lyra, Toquinho e Chico Buarque). O disco traz algumas participações especiais, como as do citado Chico, Bebel Gilberto, Zeca Pagodinho e Yamandu Costa.

Vinicius, a propósito, é um dos poucos letristas da música brasileira (bem) tratado como poeta, apesar de haver quem o considere um poeta menor – talvez o fato de ser tão popular colabore com essa controversa ideia. Ele soube traduzir, como poucos poetas/letristas de seu país, em linguagem acessível, sincera, plena, a sensação de estar apaixonado e de sofrer por amor, trabalhando com emoções tão conflitantes e, ao mesmo tempo, tão correlatas, como paixão, solidão, tristeza, esperança, superação, desejo.

As 250 canções compostas por Vinicius, quando juntas, podem formar o que seria um tratado para se compreender o amor romântico. Muitas delas se tornaram clássicos e algumas das músicas mais tocadas no Brasil e até no mundo, Se todos fossem iguais a vocêA felicidadeEu sei que vou te amarInsensatez e Chega de saudade, que, em 1958, lançou a bossa nova, e Garota de Ipanema, que, em 2005, foi eleita uma das 50 Grandes Obras Musicais da Humanidade, pelo Congresso norte-americano.


Em Soneto, de 1931, surge a resignação do sofrimento por amor.
Imagem: Reprodução

Fora as canções, também se tornaram bastante populares poemas como o Soneto de fidelidade (declamado junto com a música Eu sei que vou te amar), Poema de Natal Soneto do amor total. Os versos do caderno, contidos na coleção Arquivinhos, revelam esse poeta ainda imberbe, entre 1929 e 1931, dando seus primeiros passos também como homem que ama (Vinicius se casaria nove vezes). Num poema, Confissão, ele registra o começo de um romance, depois, em Desdém, sua desilusão, e em Soneto, a resignação, seu destino seria sofrer (“No masoquismo do bom sofrimento”, termina, ensaiando a sentença que faria futuramente em Canto de Ossanha: “O amor só é bom se doer”).

Dois anos depois de encerrar esse caderno, Vinicius fez sua estreia em livro, com O caminho para a distância. O segundo, Forma e exegese, veio em 1935. Três anos mais tarde, estreou na editora José Olympio, consolidando-se como um dos principais autores da geração de 30 do Modernismo. Já Cinco elegias, de 1943, é considerado o trabalho que marca sua maturidade. O livro de sonetos saiu em 1946. Em 1962, Rubem Braga e Fernando Sabino, proprietários da Editora do Autor, publicaram o livro de crônicas Para viver um grande amor. Em 1970, foi lançado o livro de poemas Arca de Noé. No total, foram 12 publicações.

O lírico pedido de desculpas do jovem Vinicius, naquele seu longínquo prólogo, antecipa o retrato do que seria a trajetória de sua alma de poeta até 9 de julho de 1980, quando partiu, aos 66 anos: “Não repares se a forma é apurada/ Ou se a métrica foi talvez torcida/ Olha somente a vida dos meus versos/ Que a vida do meu verso – é a minha vida!” 

DÉBORA NASCIMENTO, editora-assistente da revista Continente.

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