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Permuta simbólica entre o individual e o massivo

TEXTO Fábio Lucas

01 de Abril de 2014

Manifestações pela deposição do ditator egípcio Hosni Mubarak são um marco da força exercida pela multidão

Manifestações pela deposição do ditator egípcio Hosni Mubarak são um marco da força exercida pela multidão

Foto Dylan Martinez/Reuters

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 160 | abril 2014]

"Um por todos, todos por um":
a famosa frase é o lema do romance Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas, clássico da literatura publicado em 1844. Seu significado na obra remete à fidelidade entre os integrantes de um grupo de espadachins diante de diversos confrontos. Mas, para o olhar que examina as multidões, o lema pode trazer outro significado – o da permuta simbólica entre o individual e o coletivo, efetuada em qualquer ocasião em que a massa de corpos e mentes se apresente, desde o funeral público de celebridades, como John Kennedy, Tancredo Neves e Ayrton Senna, a eventos esportivos como a Copa do Mundo de Futebol.

Para o escritor e psicanalista Luiz Alfredo Garcia-Roza, em entrevista de divulgação sobre seu 11º romance policial, no ano passado, “a multidão dilui a singularidade das pessoas e, quando faz isso, fica essa multiplicidade sem cara, sem rosto”. A soma das faces daqueles que a compõem não resulta numa face discernível, uniforme, apesar do comportamento de “onda” que muitas vezes caracteriza a massa de gente. Mesmo assim, há um avesso possível de ser visto no indivíduo que se dilui, se mistura, às vezes virando “ninguém”, outras, querendo ser “mais um”, como nas letras de canções populares do Rappa (Boa-noite, Xangô) e de Erasmo Carlos (Mais um na multidão).

Talvez por isso seja tão difícil julgar multidões: não é uma só máscara, não é só um anonimato. A fragmentação de anseios que pode estar presente foi evidente nas manifestações de junho do ano passado no Brasil, em que as mais eloquentes imagens estampavam cada pessoa erguendo o seu cartaz, com a sua queixa, ironia ou demanda particular – que coincidia com a de muitos, mas nem por isso deixava de ter a conotação singular. Nem a pasteurização de desejos, nem a diluição completa do sujeito definem a multidão.

Dois grandes pensadores inauguraram a reflexão sobre o íntimo dos coletivos humanos. O primeiro foi Gustave Le Bon, com Psicologia da multidão, publicada no final do século 19, em 1895. O livro serviu de base para Sigmund Freud que, em 1921, lançava Psicologia das massas e análise do eu. Além do ponto de partida de Le Bon, Freud também analisa a coesão das massas à luz de filósofos como Nietzsche, Kierkegaard e Platão. “Para compreender o fenômeno dos grupos através de duas instituições, a Igreja e o Exército, a reflexão freudiana superava as teses sociológicas e psicológicas vigentes, que depositavam na sugestão e na hipnose as fontes do poder dos chefes sobre as massas”, explica a psicanalista lacaniana Bianca Coutinho Dias, coordenadora do Núcleo de Investigação em Arte e Psicanálise do Instituto Figueiredo Ferraz.

Para Freud, segundo ela, os vínculos se davam através de outro processo, o da identificação, que poderia ser vertical ou horizontal. “O eixo vertical – preponderante para Freud – tratava das relações entre a multidão e um líder, quando os indivíduos se identificam com um objeto colocado no lugar de seu ideal do eu – no caso, o líder. O eixo horizontal, não tão valorizado por ele, podia ser observado nas relações entre indivíduos de um mesmo grupo, pressupondo relações simétricas de identificação de uns com os outros.”

EGOS E MÁSCARAS
Uma das críticas recorrentes a grupos que se aproveitam da multidão para praticar a violência é exatamente a oportunidade do anonimato, da dissolução do sujeito na identidade sem rosto de centenas ou milhares de pessoas reunidas, não necessariamente com idênticos propósitos violentos. A multidão, de algum modo, injeta força e inculte sensação de imunidade em manifestantes, por exemplo, dispostos a cerrar fileiras com os polêmicos black blocs.


Uma das críticas ao uso da máscara é o anonimato, que permite a ocultação do indivíduo na massa. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Bianca Coutinho Dias recorda que o cientista político grego Yannis Stavrakakis baseia-se em Lacan para afirmar que “o indivíduo encontra o outro como uma força que limita sua autonomia subjetiva”, o que faz com que “o sujeito torne-se um mero efeito da construção discursiva e ideológica do outro”. E essa é a via de mão dupla da massa. “Para ele, toda identificação mobiliza os afetos e aumenta as possibilidades de que o sujeito abra mão de sua consciência crítica e submeta-se, sem perceber, a um sistema de dominação.” É nesse contexto que as máscaras aparecem, e, para Bianca Dias, seu exame passa por processos identificatórios de difícil dissolução. “Existe uma identificação com a multidão, mas também um apagamento do sujeito. Por outro lado, é preciso perder algo desse ‘gozo da identidade’, renunciar ao eu para que se possa pensar num coletivo – uma corda bamba delicada e que não nos chega de maneira simples.”

Assim também a solidão, nunca simples, ganha radicalidade e contraste no meio de um mar de sujeitos concentrados em espaço delimitado. Contraste que já integra o imaginário sobre o isolamento humano, especialmente depois dos fluxos populacionais espremendo a vida urbana. Um sentido político pode advir da escolha do ser solitário em plena metrópole pulsante. Dessa forma, a solidão “pode representar o sujeito que escolheu andar na contramão e optou pela radicalidade da singularidade, como um Flávio de Carvalho enfrentando a multidão da procissão a partir de um ponto absolutamente singular e único – pura invenção. A solidão, para a psicanálise, pode ser terreno fecundo, o encontro com uma verdade que está para além do partilhável socialmente”, acredita a pesquisadora do Instituto Figueiredo Ferraz.

É a afirmação da diferença que sobressai no comportamento destoante da massa, ou no desconforto que promove quase um resgate da individualidade. “Dessa opção radical, pode-se inscrever no mundo, a partir do laço social, algo dessa solidão que Lacan vai nomear estilo”, diz Bianca Dias. A psicanalista ressalta um equívoco histórico, na atribuição de suposta desimportância do problema do coletivo para a psicanálise, quando tanto Freud quanto Lacan discorreram sobre a incidência do social como fundamental para a constituição do sujeito.

“Freud, em 1921, afirma que a psicologia individual é, ao mesmo tempo, de grupo. E Lacan, em 1964, que o sujeito advém como separação de sua alienação, necessária, ao outro. Novamente uma mão dupla de constituição do sujeito: para se compor, ele precisa passar pelo outro e, para encontrar algo de sua singularidade e de seu estilo, ele precisa, em alguma medida, abandonar o outro. Da contradição entre a multidão e o mais impartilhável de si é que nos fazemos. Desafio ético que nos interroga cotidianamente.”

Um desafio que atira o sujeito num campo minado de pânico e força, isolamento e compartilhamento extremos. Ali, entre hesitações e ímpetos, recuos e avanços, o sentimento ancestral de união e guerra pela sobrevivência se depara com a herança da elaboração cultural que tenta, através dos séculos, tirar da imagem da multidão a essência da contradição que nela transborda, espelho de multifaces.

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