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Para que aqueles caras iam querer tanto dinheiro, afinal?

TEXTO Adriana Dória Matos

01 de Janeiro de 2011

Último piso de uma casa de três pavimentos, que pertencia a um dos chefes do tráfico, onde crianças se divertem na piscina

Último piso de uma casa de três pavimentos, que pertencia a um dos chefes do tráfico, onde crianças se divertem na piscina

Foto Folha Press

[conteúdo vinculado ao especial de "Cidades" | ed. 121 | janeiro 2011]

Foi uma barulheira danada em torno
das chamadas “mansões do tráfico”, quando a polícia invadiu e ocupou as favelas do Complexo do Alemão, naquele fim de novembro. Todo mundo tomou conta. Todo mundo quer dizer: policiais, jornalistas e moradores. Principalmente as crianças, que era dia de muito calor e elas aproveitaram para se esbaldar nas piscinas privês recém-franqueadas. Um jornalista atento aos detalhes teria ouvido uma conversa entre um policial e um meninote na qual – tendo o primeiro “dado” a casa com piscina ao outro – este teria aceitado imediatamente o presente e afirmado “Vou morar aqui!”, antes de se largar num estrondoso mergulho na água azul.

O que todo mundo viu naquelas fotografias e nos VTs das “mansões” do Alemão é o que se vê todo dia nas novelas, nos filmes e nas propagandas de TV: casas bem-montadas, com varandas com vista, piscina e churrasqueira, quartos de casal com cama box, banheira com hidromassagem, ar-condicionado split (“Rio 40 graus, cidade maravilha purgatório da beleza e do caos”, zune Fernandinha Abreu) , TV plasma LCD, quartos infantis decorados com os ídolos da vez (agora, por insistência, o garotinho loiro Justin Bieber; antes, podia ter sido Xuxa ou Ivete, também por insistência, claro), cômodos com revestimentos bacanas, como mármore, porcelanato e blindex. Tudo certinho e da moda. Sim, é verdade que naquelas residências havia umas extravagâncias, tipo discoteca e academia de ginástica, mas isso era porque os moradores eram um povo jovem, que gostava de malhar e se divertir.

O único problema, graça ou espanto, é que esses marcos da sociedade de consumo, da cultura urbana e midiática encontrados por ali pertenciam à bandidagem, aos traficantes mais procurados do Rio de Janeiro. A imprensa destacava que todo esse cenário de luxo se escondia sob fachadas simples, de casas como quaisquer outras do lugar. Ou os proprietários não queriam dar na cara – o que seria bem justificável, no caso de uma fiscalização do IR – ou ainda não tinha dado tempo de reformar a frente do imóvel também (sem dúvida, uma atitude sábia, pois devemos privilegiar o conforto interno, depois, as aparências).

Estando aqueles imóveis tão de acordo com as normas da sociedade de consumo, do gosto pelo prazer imediato e dentro dos padrões do bem-decorar e viver, numa clara demonstração de savoir vivre de seus proprietários, por que o espanto, meu Deus, diante das “mansões” do Alemão? Afinal, inquire-se: para que aqueles homens se envolveriam no mundo do crime, entrariam com tudo na economia subterrânea, arriscariam diariamente a vida, nutririam uma existência de violência se não fosse para esbanjar e sorver rapidamente? Que outras expectativas os traficantes deveriam criar para suas vidas de ricaços do crime?

Ah, não, claro, eles deveriam investir na própria educação, o bem maior, o futuro da nação. Abrir mão dos prazeres fugazes da vida, montar em casa uma sala de aula com equipamentos de última geração (é para isso que serve dinheiro, ora) e contratar o melhor educador da cidade para aulas particulares e intensivas de todas as disciplinas. Daí, quem sabe?, em dois anos aqueles rapazes empedernidos estariam em dia com os conhecimentos necessários para concluir um supletivo, encarar o Enem (que naquele ano não pode ser fraudado de jeito nenhum!) e batalhar por uma vaga num curso como o de Administração, Economia, Arquitetura de Interiores, Educação Física ou Relações Internacionais, para os quais eles parecem vocacionados. Pensando bem, talvez fosse um investimento mais seguro, rentável e duradouro preparar-se para um concurso público; não há nada mais vantajoso que um emprego público hoje em dia.

Mas é preciso levar em conta que muitos desses jovens senhores já haviam se comprometido com a instituição família, alguns tinham filhos e, quase todos, namorada, mulher, amante, e isso custa tempo e dinheiro – vocês sabem como filhos e mulheres são. Desse modo, nem todos poderiam se dedicar com o mesmo rigor aos estudos, precisando trabalhar, inclusive, para sustentar os mimos de suas amadas, ou “fiéis”, como disseram ser o termo normalmente usado para se referir às mulheres dos traficantes. Ou vocês não viram as joias que elas ostentavam? Pesadíssimas e de ouro puro reciclado (porque boa parte das peças era uma associação de um bocado de outras, colhidas por aí). Entre os adornos das namoradas sobressaíam-se os colares de design apropriadamente classificado por especialistas como no estilo gangsta, que nos evoca claramente o rap norte-americano. Um mix fascinante de culturas.

Nas fotografias que a imprensa divulgou sobre as joias das “fiéis”, não pudemos deixar de reparar nos corpões sarados e milimetricamente bronzeados daquelas mulheres, fossem loiras ou morenas. Imagens que nos remetem de volta às piscinas e academias de ginástica privês das “mansões” do Alemão.

Dando de cara com a hidromassagem do luxuoso quarto de casal de uma daquelas residências erguidas sob os auspícios da delinquência, um policial teria desabafado: “Assim vale a pena ser vagabundo!”. Enquanto isso, na cobertura, o menino se refestelava na piscina, certamente dando graças à ação militar que lhe permitia aquele lazer aquático inesperado. Foi quando ele ouviu a voz da mãe, da rua, gritando: “Vem-te embora, menino, tá na hora de ir pra escola!”. A vida tem dessas coisas... 

ADRIANA DÓRIA MATOS, editora-chefe da revista Continente.

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