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O que aconteceu com o urbanismo?

TEXTO Guilherme Wisnik

01 de Janeiro de 2011

O projeto Cheonggyecheon, em Seul, tornou em passeio público córrego há mais de 50 anos soterrado por obras viárias

O projeto Cheonggyecheon, em Seul, tornou em passeio público córrego há mais de 50 anos soterrado por obras viárias

Foto Divulgação

[conteúdo vinculado ao especial de "Cidades" | ed. 121 | janeiro 2011]

O que aconteceu com o urbanismo?
Essa é uma pergunta que tem sido feita insistentemente por pensadores nas áreas das ciências sociais, dado o descrédito que a disciplina conheceu desde a crise do Movimento Moderno, nos anos 1970, e o crescimento caótico das cidades que se seguiu. Enquanto, por um lado, o urbanismo estatal era acusado de cientificista e autoritário, face à tentativa de controlar nos mínimos detalhes a vida das pessoas através do espaço (veja-se Brasília), por outro, as cidades passaram a crescer de forma descontrolada, pelas mãos “livres” da iniciativa privada e especulação imobiliária.

Criou-se assim uma situação paradoxal: o urbanismo desaparece justamente no momento histórico em que era mais necessário. Como se sabe, dada a urbanização acelerada das últimas décadas – desde os anos 1970 na América Latina, e desde os anos 1990 na Ásia e na África –, chegamos a um estágio de desenvolvimento em que, após 5 mil anos de História, a população mundial se tornou predominantemente urbana. As cidades, no entanto, foram entregues ao deus-dará. Segundo o polêmico arquiteto holandês Rem Koolhaas, a culpa por essa situação não é só do mercado, ou do neoliberalismo. É também dos próprios arquitetos e urbanistas, que, durante o Pós-Modernismo, pretenderam redescobrir a cidade clássica em um momento impróprio, retirando-se da discussão sobre os problemas reais da cidade no capitalismo avançado. Enquanto desenhavam vielas e belas pracinhas para o passeio de pedestres, as cidades explodiam em favelas e subúrbios cada vez mais distantes, induzidos pela mobilidade do automóvel individual. Esse foi o “ponto de não retorno”, segundo Koolhaas, o momento de “fatal desconexão”, que transformou os urbanistas em “especialistas em dores-fantasmas: doutores discutindo as complicações médicas de um membro amputado”.

O diagnóstico fica ainda mais sinistro quando lemos o importante livro Planeta favela, do pensador americano Mike Davis. Apoiado em pesquisas das Nações Unidas, Davis descreve um cenário alarmante para as próximas décadas, no qual a favelização crescerá a um ritmo galopante, combinado à precarização do trabalho. É que a lógica excludente do atual estágio do capitalismo (“tardio”, ou “avançado”) constrói subliminarmente cidades – sobre o cadáver já exumado do urbanismo moderno – profundamente dualizadas. Isto é, marcadas pela divisão crescente entre os setores ricos (os condomínios de luxo e as áreas de negócios), conectados a redes globais, e a massa informe de pobreza que permeia esses enclaves cada vez mais fechados e fortificados.

Quando falamos hoje em “cidades globais”, estamos na verdade nos referindo a setores de cidades que se conectam a uma rede mundial de circulação de bens e de informações – isto é, de capital. São as suas faces integradas que precisam de marcos arquitetônicos espetaculares para colocá-las na rota internacional do “city markenting”. Trata-se de uma nova lógica de organização geográfica da produção em uma economia terciária, na qual os Estados Nacionais perderam força diante do desenvolvimento autônomo das cidades.

Acontece que se você passeia por Nova York – talvez a cidade mais “global” do mundo, situada no coração do capitalismo, e berço da liberdade individual –, não sente nem de perto as mazelas das nossas metrópoles da periferia, que seguiram o modelo de Los Angeles. Em Nova York, com o eficiente serviço público de transporte, vai-se com rapidez a qualquer lugar, e as ruas não são desertificadas pela falta de calçadas e de comércio local, muito ao contrário. Para não falar do Central Park...

Nas cidades brasileiras, como em muitas outras do mundo, entupimos as ruas de carros, os terrenos adjacentes de estacionamentos e de garagens, e o que resta das calçadas é tomado por muros e guaritas. Onde está a cidade? Em vias de desaparecimento, elas vão se aproximando daquilo que a antropologia urbana definiu como “não lugar”: espaços de passagem, que não são apropriados por ninguém.

No entanto, alguns exemplos positivos surgem na contramão dessa tendência predatória. O caso mais notório é o projeto Cheonggyecheon, em Seul (Coreia do Sul), onde foi recentemente demolida uma trama dupla de viadutos com extensão de aproximadamente cinco quilômetros, e destapado um córrego que há mais de 50 anos se encontrava soterrado por obras viárias. Com a reforma, foi criado um agradável passeio público dotado de jardins, escadarias, fontes, quedas d’água e iluminações ornamentais. Sem qualquer solução viária paliativa, a opção local foi incentivar o transporte público, barateando o preço do metrô.

Outro exemplo fundamental é o da cidade de Medellín, na Colômbia, que – graças a uma iniciativa inteligente e continuada da prefeitura na construção de equipamentos públicos, infraestrutura e habitação social – conseguiu, em menos de uma década, deixar de ser uma cidade violenta e dominada pelo tráfico de drogas, e se tornou um exemplo mundial de civilidade. Quer dizer, se por um lado a vocação totalizante do urbanismo moderno está de fato ultrapassada historicamente, por outro, a eficácia da vontade política em ações estratégicas nas áreas de infraestrutura é, ainda, não apenas bem-vinda como urgentemente necessária. Um certo urbanismo precisa renascer das cinzas para que as cidades não morram. 

GUILHERME WISNIK, arquiteto e crítico, mestre em História Social. Autor de Estado crítico: à deriva nas cidades.

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