Segundo historiadores, o diferencial da obra de Cézanne é justamente a atmosfera de silêncio e concentração na qual os jogadores estão inseridos, característica que vai na contramão da escola francesa de pintura, acostumada a retratar jogos de cartas de forma frívola, com personagens ruidosos em torno de uma mesa, bebendo, tocando, discutindo.
“Se olharmos para a história de arte, veremos que o baralho sempre esteve presente. Picasso e Matisse foram alguns dos pintores que exploraram esse elemento. Em suas pinturas de natureza morta, Vicente do Rego Monteiro sempre inseria uma carta de baralho sobre a mesa”, aponta o artista plástico Paulo Bruscky. Ele é responsável, junto com os jornalistas Mário Hélio e Ronildo Maia Leite, pela reedição do livro Cartomancie, de Vicente do Rego Monteiro, que traz pequenos poemas visuais em papel e formato de cartas de baralho.
A iniciativa do trio foi uma radicalização da ideia que já estava prevista por Rego Monteiro desde a edição princeps(primeira impressão de uma obra), lançada em Paris, em 1952: a correlação da poesia com a visualidade. Para Bruscky, a reedição reforça não só a influência concretista do amigo poeta, como também a vocação do carteado tanto para o jogo como para a arte.
“As cartas de baralho têm essa magia para além do jogo. São graficamente riquíssimas. Tanto é que a proposta de Vicente era que os poemas fossem lidos enquanto se jogava com as cartas. Eles não tinham uma sequência lógica de leitura”, diz o artista pernambucano, que também teve seu momento de criação influenciado pelo carteado. No final dos anos 1970, Bruscky encontrou na rua um ás de ouro, considerada a carta de maior valor no jogo de pôquer, do qual é jogador assíduo.
A tendência do baralho para a contemplação artística tem suas raízes desde que as cartas chegaram à Europa, no século 15. Feitas à mão, elas eram pintadas em várias cores e enriquecidas com ouro e relevo. A diplomação do mestre de cartas, tido como responsável pela pintura manual, só vinha após o aspirante ter criado um desenho que os guardiões do ofício julgassem uma obra-prima. Um exemplar de grande popularidade naquele período foi o de Visconti-Sforza, considerado um dos mais completos e antigos baralhos de tarô de que se tem notícia.
Seus cartões eram pintados com guache em cores brilhantes e traziam ornamentações baseadas em manuscritos medievais. O exemplar foi produzido por encomenda do Duque de Milão, Filippo Maria Visconti, para celebrar a união de sua família com os Sforza, por meio do casamento de Bianca Maria Visconti com o Duque Francesco Sforza. A maioria dos estudiosos credita a autoria da carta ao pintor Bonifácio Bembo, atuante em várias cidades italianas na época e contratado para trabalhar na corte Sforza. Uma de suas características era o uso abundante de folhas de ouro e prata. Hoje em dia, parte do baralho Visconti-Sforza se encontra na Academia Carrara de Bérgamo e outra parte na Morgan Library, de Nova York.
BARALHOS FANTASIA
É grande o número de artistas, ilustradores e gravadores que fazem da carta de baralho um suporte para sua criatividade, transformando-a numa verdadeira peça de arte gráfica. Projetados fora do padrão internacional, esses carteados são conhecidos como baralhos fantasia, por serem feitos com total liberdade e desprendimento, tanto na estrutura dos naipes como nas ilustrações, além de se prestarem a várias finalidades. “Tais baralhos superam o objetivo de servirem a um determinado jogo, correspondendo ao registro do talento individual de artistas que contribuíram para novas concepções de baralho”, aponta Armando Serra Negra, no livro O que é baralho.
Outra particularidade dos baralhos fantasia é que cada edição é única. Com exceção das reedições, seu desenho não é repetido, por se tratar, na maioria das vezes, de concepções relativamente complexas, ao contrário dos baralhos no modelo padrão, fabricados com o propósito de serem usados para jogos e, por isso, terem seus desenhos copiados por vários fabricantes, que usam as mesmas características básicas.
Em alguns casos, os baralhos artísticos são tidos como itens de colecionador, não apropriados para manipulação pelo seu valor histórico. É o caso do EPOC, releitura artística do baralho internacional criada pela arquiteta e artista plástica paulistana Leonor Décourt, em 2004. Considerado um best-seller mundial, o EPOC é peça recorrente no acervo dos museus de baralho da Europa. Leonor batizou o exemplar com as inicias de cada naipe do sistema francês: Espadas, Paus, Ouro e Copas. Uma das referências de Leonor, que elaborou o design em fundo preto, foram os baralhos de transformação. Trata-se de uma modalidade de baralho ilustrado que se tornou comum no século 19, no qual os símbolos dos naipes se integram à ilustração de cada carta. Um artifício parecido com esse também foi utilizado em algumas ilustrações do livro Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll.
“Procurei a Copag para saber quanto seria o custo de uma edição e, para minha surpresa e alegria, a própria empresa se ofereceu para editar e distribuir o baralho. Durante oito anos, o EPOC foi distribuído no Brasil e no exterior. Ele parou de ser editado em 2012, quando terminou o nosso contrato. Foi um tempo grande de edição”, conta Leonor, que já havia desenvolvido um baralho artístico em 1976. “Meu relacionamento e manejo com as cartas de baralho sempre foi muito fácil. Desde pequena ele esteve entre meus brinquedos favoritos. Meu pai era mágico, e fazia truques com baralho.”
CARTAS ASSINADAS
Uma iniciativa que tem enchido os olhos dos jogadores apaixonados por arte é o Projeto 54, idealizado pela loja de camisetas El Cabriton, localizada em São Paulo. Trata-se de um jogo de cartas ilustrado por 54 designers brasileiros convidados, com impressão da Copag. Cada carta é desenhada por um artista diferente, de forma totalmente livre e autoral. Desde a primeira edição, em 2010, já participaram do projeto, que acontece anualmente, mais de 270 ilustradores, designers e artistas plásticos.
Entre eles, esteve a dupla de ilustradores pernambucanos Raone Ferreira e Fernando Moraez, que assinava artisticamente como Imarginal, alcunha que hoje pertence somente a Fernando. Na época, os artistas criaram o ás de paus, espelhados no significado que a carta adquiriu no baralho de tarô, misturando o Surrealismo às técnicas de pontilhismo e tracejado monocromático que lhe são peculiares. “Fizemos um desenho que simboliza a dualidade e o reinício humano, já que, no tarô, o ás de paus representa um reinício de ciclos ou novas ideias”, comenta Raone Ferreira.
Muitas versões artísticas de baralhos foram desenvolvidas com inspiração nas cartas de tarô, por se tratar de um carteado cuja imagem tem grande apelo simbólico. A linguagem metafórica e a subjetividade com que o tarô interpreta a realidade atrai os artistas que se afinam com o Simbolismo, corrente artística que privilegia o imaginário e a fantasia, a ligação entre o mundo material e o espiritual, sendo uma das precursoras do movimento surrealista. Assim, as cartas de tarô acabam sendo terreno fértil para a criação artística por meio do Simbolismo, que se caracteriza, sobretudo, pelo estilo decorativo e ornamental.
Um dos registros mais icônicos dessa influência é o baralho de tarô criado por Salvador Dalí, em 1971, considerado um estojo de luxo, com cartas ilustradas com guache e aquarela, e as bordas douradas. “Cada carta é composta por colagens, atributos de outros quadros, pinceladas enérgicas e pela própria assinatura do artista. É um trabalho estupendo, mostrando ao mesmo tempo a técnica e o conhecimento simbólico do autor. O próprio Dalí está representado nestas lâminas, como um autorretrato simbólico atestando sua genialidade. Vemos o artista no Mago (Arcano I) e no Rei de Ouros. As demais cartas misturam quadros e retratos em colagens arrojadas e vanguardistas como o próprio autor. Adquirir esse baralho é adquirir uma obra de arte em 78 imagens, e desafiar-se a conhecer um arcabouço simbólico sem fronteiras”, descreve a apresentação ao deck do catalão.
Não se pode perder de vista o Toth Tarot, ilustrado por Lady Frieda Harris, a pedido do ocultista Aleister Crowley, tido como o responsável por difundir o caráter esotérico dessas cartas. O exemplar levou cinco anos para ser concluído, de 1938 a 1943, devido ao perfeccionismo e à intensa pesquisa desenvolvida pelos dois. Diz-se que algumas das cartas foram refeitas oito vezes. Harris explorou extensivamente nas lâminas um modelo artístico conhecido como traçado de bordas, sugerindo estética surrealista baseada no misticismo e no uso de oráculos. Para atingir esse resultado, abriu mão de expressões faciais humanas e deixou a cargo de símbolos, cores e formas a transmissão dos conceitos. A forte composição e combinação de cores é uma das características marcantes das cartas criadas por Harris. Os originais foram desenhados em aquarela com materiais de baixa qualidade, por causa da dificuldade que predominava na época devido à Segunda Guerra Mundial.
Outro exemplar de rara beleza é o Gaignières Tarot, considerado valiosíssimo, que hoje se encontra no Museu da Biblioteca Municipal de Paris, com apenas 17 peças remanescentes.
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